RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26. (Suppl.1) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20160011

Voltar ao Sumário

Artigos de Revisão

Influência do bloqueador neuromuscular em cirurgia cardíaca envolvendo circulação extracorpórea em relação a bloqueio neuromuscular residual em adultos: revisão da literatura

Influence of neuromuscular-block drug on cardiac surgery involving cardiopulmonary by-pass in respect of residual neuromuscular blockade in adults: literature review

Luis Gustavo Torres dos Santos1; Marcel Andrade Souki2

1. Médico Especializando em Anestesiologia. Centro de Ensino e Treinamento (CET) da Santa Casa de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico Anestesiologista. Instrutor do Centro de Ensino e Treinamento (CET) da Santa Casa de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Luis Gustavo Torres dos Santos
E-mail: luisgtorres@gmail.com

Instituiçao: Santa Casa de Belo Horizonte Centro de Ensino e Treinamento Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

O advento da modalidade fast-track em cirurgias cardíacas resultou do uso de fármacos em doses mais baixas ou de ação mais curta e com menos potencial de acúmulo. O manejo do bloqueio neuromuscular também é passível de sofrer alteração decorrente da escolha do agente utilizado. Este estudo é uma revisão da literatura acerca da influência do tipo de bloqueador neuromuscular nas cirurgias cardíacas com circulação extracorpórea (CEC) na população adulta e da incidência de bloqueio neuromuscular residual no pós-operatório. A extubação precoce é um dos pilares do fast-track. Existe nova tendência a se usar agentes de intermediária duração e há recomendação de que o grau de bloqueio seja monitorizado tanto no intra como no pós-operatório, no momento da extubação. Há benefícios para o sistema cardiovascular e respiratório, quando se reassume a ventilação espontânea, tais como melhora na função sistólica, aumento do índice cardíaco e redução no shunt intrapulmonar e atelectasias. Pacientes submetidos a uma segunda operação cardíaca relatam que extubação traqueal precoce é uma experiência muito superior em comparação com 12-24h de intubação pós-operatória.

Palavras-chave: Procedimentos Cirúrgicos Cardíacos; Bloqueadores Neuromusculares; Circulação Extracorpórea.

 

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é revisar a hipótese de influência da escolha do bloqueador neuromuscular nas cirurgias cardíacas com circulação extracorpórea (CEC) na população adulta em relação à incidência de bloqueio neuromuscular residual (BNMR) no pós-operatório e ao tempo de ventilação mecânica (VM), bem como eventuais consequências relevantes relacionadas.

O trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica para revisar a literatura, tendo como base:

artigos científicos sobre o tema, acessados nas bases de dados do MEDSCAPE, MEDLINE, COCHRANE, Portal CAPES, sem restrição quanto ao ano de publicação;

livros didáticos disponíveis em acervo próprio.

Para inclusão na revisão foram consideradas as referências que abordassem cirurgia cardíaca, circulação extracorpórea, fasttrack, bloqueio neuromuscular, bloqueio residual, tempo de ventilação mecânica na unidade de tratamento intensivo (UTI) e complicações pós-operatórias. Após a seleção, realizou-se leitura analítica e pormenorizada a fim de se obter e organizar dados que permitissem responder ao questionamento do trabalho.

 

CONTEXTO TEORICO

Em meados da década de 1990, com o objetivo de reduzir custos hospitalares sem alterar a segurança do cuidado ao paciente, teve início uma abordagem na qual foram reduzidas as doses de opioides, hipnóticos e agentes voláteis na anestesia para cirurgia cardíaca.1-3 Essas mudanças fazem parte do entao chamado "programa fast-track". Incluída nele ainda está a tentativa de extubação traqueal tao cedo como nas primeiras 8 a 10 horas após a admissão na unidade de tratamento intensivo (UTI), alta da unidade intensiva durante as primeiras 24 horas de pós-operatório e alta hospitalar no sexto dia pós-operatório, ou antes.4

Durante a cirurgia, a CEC e a solução utilizada para o priming conferem modificações farmacodinâmicas e farmacocinéticas. A hemodiluição ocasionada pode acarretar diminuição da concentração total de fármaco livre, bem como na quantidade de proteínas circulantes. Assim, pode haver desequilíbrio entre as frações livres de fármacos e aquela ligada às proteínas plasmáticas, apesar de que isso parece não ser alteração significativa no que se refere a agentes bloqueadores neuromusculares.

A hipotermia durante a CEC leva a alterações no metabolismo, diminuindo a atividade enzimática, podendo, com isso, diminuir funções de tecidos como o muscular, hepático, renal e cerebral. A diminuição da taxa de eliminação durante a hipotermia provoca lentificação no declínio da concentração plasmática do BNM ao longo do tempo, consequentemente, maior quantidade de fármaco fica disponível na junção neuromuscular.5,6 Quando se dá o reaquecimento, pode haver o retorno para a circulação de fármacos que porventura ficaram depositados nos tecidos, fazendo com que sua concentração plasmática se altere.

Ademais, os efeitos da redução da temperatura corpórea induzida durante a CEC têm impacto relevante em todo o organismo e na duração dos efeitos dos agentes bloqueadores neuromusculares, uma vez que existe relação direta entre a temperatura corporal central e o grau de resposta muscular, que pode ser estimada por meio da medição da temperatura do sangue central. Assim, pequenas alterações na temperatura corporal total (> 2°C) podem causar considerável prolongamento da duração dos efeitos desses fármacos.7

Esse fato pode ser explicado porque a constante de velocidade de equilíbrio plasma-sítio efetor (Ke0) diminui com a redução da temperatura corporal central. Assim, o equilíbrio entre a droga na circulação e a junção neuromuscular é ligeiramente prolongado durante a hipotermia. A implicação clínica é que o tempo de latência do relaxante muscular está aumentado em pacientes hipotérmicos e o tempo de recuperação pode ser prolongado.5

Mudanças nas concentrações de alguns íons durante a CEC ainda podem interferir na ação dos agentes neuromusculares, em particular a diminuição das concentrações plasmáticas de magnésio e cálcio resulta em diminuição da contratilidade muscular.8 A hipotermia pode reduzir a sensibilidade dos miofilamentos ao Ca2+, o que explicaria a redução da contratilidade, como referem alguns estudos em animais.9-11

A extubação traqueal tao cedo como nas primeiras oito horas após a admissão na UTI é considerada um dos objetivos-chave do fast-track. O uso de BNM de curta/intermediária duração e a recuperação da transmissão neuromuscular a valores normais mostram-se necessários para esse fim. É possível que o uso de bloqueadores de longa duração, como tradicionalmente se faz recorrendo ao pancurônio, estivesse associado ao prolongamento do bloqueio muscular e do tempo em ventilação mecânica. Pesquisa realizada por Murphy et al.12 revelou que o pancurônio ainda era o principal BNM utilizado nas cirurgias cardíacas, o que parece ir em direção contrária à prática atual anestesiológica: evitar o uso de BNMs de longa duração.8,12

Murphy et al. realizaram estudo comparando pancurônio e rocurônio e a influência deles no tempo necessário para extubação traqueal. Foram usadas como parâmetro as medidas de trainof four (TOF) e sinais e sintomas de paralisia residual 15 min após a extubação. O valor médio do TOF foi de 0,99 para o grupo do rocurônio e de apenas 0,26 no grupo de pancurônio, na quarta hora após admissão na UTI.13

Sobre o resultado negativo do bloqueio neuromuscular residual pós-operatório, sabe-se que o BNMR está associado a várias complicações pós-operatórias: obstrução da via aérea superior, hipoventilação, atelectasia, disfunção faríngea com aumento do risco de aspiração, diminuição da resposta ventilatória à hipóxia e colapso das vias aéreas durante a inspiração forçada7. O uso prolongado de BNMs durante a internação na UTI pode levar a neuromiopatia e fraqueza muscular.

Graus moderados de bloqueio neuromuscular levam à diminuição da sensibilidade de quimiorreceptores à hipóxia. No estudo realizado por Berg14 para avaliar BNMR como fator de risco para complicações pulmonares pós-operatórias, notou-se maior incidência dessas complicações no grupo que recebeu pancurônio em contraste com aqueles que receberam atracúrio ou vecurônio. Paralisia parcial dos músculos ventilatórios e o funcionamento incompleto dos músculos da faringe e esôfago superior por período prolongado provavelmente levaram o grupo que recebeu pancurônio a alto índice de complicações.14

Sempre que bloqueadores neuromusculares são utilizados, ou tenham sido utilizados, deve ser feito monitoramento estrito. Titulação para um acompanhamento objetivo pode reduzir a quantidade de bloqueadores, evitar BNM profundo desnecessário e permitir a titulação do fármaco para necessidades específicas. Qualquer agente com o risco de acúmulo, como o pancurônio, deve ser abandonado8, pelo impacto negativo no desfecho por atrasar extubação traqueal, prolongar tempo de ventilação mecânica e, devido a isso, estar associado a complicações pulmonares.

 

BENEFICIOS DE EXTUBAÇÃO PRECOCE

Além das complicações citadas anteriormente, o uso de bloqueadores neuromusculares de duração intermediária contribuiria para a diminuição do tempo de ventilação mecânica. Essa redução na duração de intubação traqueal resultaria em inúmeras vantagens para o paciente, já que há benefícios potenciais, inclusive quando o tempo de desmame e de extubação traqueal é reduzido, mesmo para tao pouco quanto 1 a 3h. A transição da ventilação controlada para ventilação espontânea e extubação resulta em melhorias rápidas no desempenho cardíaco. Ocorrem aumentos significativos no diâmetro ventricular esquerdo no final da diástole, na função sistólica e índice cardíaco. Extubação precoce traqueal também pode reduzir a demanda por sedativos e analgésicos, permitir mobilização precoce do paciente e melhorar a função pulmonar, reduzindo shunt intrapulmonar e atelectasias. Finalmente, extubação traqueal precoce pode produzir melhorias na percepção da experiência perioperatória dos pacientes. Há relato de pacientes submetidos a uma segunda operação cardíaca de que extubação traqueal precoce é uma experiência muito superior em comparação com 12-24h de intubação pós-operatória.6

Existem algumas divergências nos resultados do fast-track em relação ao tempo de permanência na UTI, bem como na duração total de internação hospitalar.3,4,6,15Algumas hipóteses para que não haja diferenças significativas nesse quesito são, por exemplo, horários predefinidos pela enfermagem para troca de plantao, o que atrasaria a transferência dos pacientes para tipos diferentes de unidade de internação quando há proximidade com o horário limite entre turnos. Além disso, pode haver interferência do número reduzido de funcionários, tanto de médicos quanto da enfermagem, no período noturno, podendo ser fator de adiamento da alta para outras unidades no turno seguinte.

 

CONCLUSÃO

Anestesia geral baseada no uso de opioides em baixa dose e protocolos dirigidos para o fast-track têm riscos similares de mortalidade e principais complicações pós-operatórias quando comparados aos do tratamento convencional (não fast-track) e, portanto, parece ser segura em pacientes considerados de risco baixo a moderado.

Embora não tenha havido redução no tempo de permanência hospitalar no tipo de cirurgia analisada, conforme se demonstrou na presente revisão de literatura, o fast-track reduziu o tempo de extubação e encurtou o tempo de permanência na unidade de terapia intensiva.

A alta incidência de paralisia residual pós-operatória em cirurgia cardíaca pode também ser devida ao fato de que muitos anestesiologistas ainda se concentram mais no manejo hemodinâmico durante a cirurgia, nem sempre considerando o fast-tracking para o pós-operatório como a sua prioridade de atendimento.8 Com isso, é frequente o uso de BNM de ação prolongada como o pancurônio, com potencial de acúmulo, não levando em consideração os potenciais benefícios de uma extubação precoce no melhor desfecho para o paciente. Ocorre que uma das bases do programa de fasttrack é a seleção da "melhor prática" entre as diferentes opções de manejo.

Tendo em vista o exposto, é possível que seja de grande relevância para o manejo anestésico de cirurgia cardíaca com uso de CEC a monitorização do bloqueio neuromuscular tanto no intraoperatório, como no pós-operatório durante tentativa de extubação. Assim, o BNM seria usado de forma racional e na quantidade adequada, de acordo com a necessidade de cada fase da cirurgia. E, para isso, a melhor opção seria adotar preferencialmente agentes de intermediária duração, como cisatracúrio ou rocurônio.

Para que se possa afirmar categoricamente os benefícios decorrentes do uso de BNM de intermediária duração nas cirurgias cardíacas, são necessárias mais pesquisas que ratifiquem a hipótese apresentada.

 

REFERENCIAS

1. Bainbridge D, Cheng DCH. Postoperative cardiac recovery and outcomes. In: Kaplan JA, Reich DL, Savino JS. Kaplan's cardiac anesthesia: the Echo Era. 6th ed. Missouri: Elsevier; 2011. Chap.33, p. 1010-24.

2. Zhu F, Lee A, Chee YE. Fast-track cardiac care for adult cardiac surgical patients (Review). Hong Kong: Cochrane Database of Systematic Reviews, 2012. nº 10. p. 1-73.

3. Cheng DC, Karski J, Peniston C, Raveendran G, Asokumar B, Carroll J, et al. Early Tracheal Extubation after Coronary Artery Bypass Graft Surgery Reduces Cost and Improves Resource Use. A Prospective, Randomized Controlled Trial. Anesthesiology. 1996;85:1300-10.

4. Kogan A, Ghosh P, Preisman S, Tager S, Sternik L, Lavee J, Kasiff I, Raanani E. Risk factors for failed "Fast-Tracking" after cardiac surgery in patients older than 70 years. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2008 Aug; 22(4):530-5. doi: 10.1053/j.jvca.2008.02.001.

5. Heier T, Caldwell JE. Impact of hypothermia on the response to neuromuscular blocking drugs. Anesthesiology. 2006; 104:1070-80. [Citado em 2015 ago 23]. Disponível em: http://anesthesiology.pubs.asahq.org/pdfaccess.ashx?url=/data/Journals/JASA/931070/.

6. Murphy GS, Szokol JW, Marymont JH, Avram MJ, Vender JS, Rosengart TK. Impact of shorter-acting neuromuscular blocking agents on fast-track recovery of the cardiac surgical patient. Anesthesiology. 2002 Mar; 96(3):600-6. [Citado em 2015 maio 21]. Disponível em: http://anesthesiology.pubs.asahq.org/pdfaccess.ashx?url=/data/Journals/ JASA/931221/

7. Fernandéz P, Aandruskevicius M. ¿Esnecesario utilizar relajantes musculares eninfusión continua durante la anestesia en pacientes sometidos a cirugía cardíaca? Uruguay Anest Analg Reanim. 2011;24:13-9.

8. Hemmerling TM, Russo G, Bracco D. Neuromuscular blockade in cardiac surgery: An update for clinicians. Ann Cardiac Anaesth. 2008 jul/dec; 11(2):80-90.

9. Nakae Y, Fujita S, Namiki A. Isoproterenol enhances myofilamentCa(2+) sensitivity during hypothermia in isolated guinea pig beating hearts. Anesth Analg. 2001;93:846-52.

10. Schioetz-Thorud H, Verburg E, Lunde P, Stroemme T, Sjaastad I, Sejersted O. Temperature dependent skeletal muscle dysfunction in rats with congestive heart failure. J Appl Physiol. 2005;99:1500-7.

11. Stowe DF, Fujita S, An J, Paulsen RA, Varadarajan SG, Smart SC: Modulation of myocardial function and [Ca2+] sensitivity by moderate hypothermia in guinea pig isolated hearts. Am J Physiol 1999;277:H2321-32.

12. Murphy GS, Szokol JW, Vender JS, Marymont JH, Avram MJ. The use of neuromuscular blocking drugs in adult cardiac surgery: Results of a national postal survey. Anesth Analg. 2002 Dec;95(6):1534-9.

13. Murphy GS. Szokol JW, Marymont JH, Vender JS, Avram MJ, Rosengart TK, Alwawi EA. Recovery of neuromuscular function after cardiac surgery:pancuronium versus rocuronium. Anesth Analg. 2003 May;96(5):1301-7.

14. Berg H, Roed J, Viby-Mogensen J, Mortensen CR, Engbaek J, Skovgaard LT, Krintel JJ.. Residual neuromuscular block is a risk factor for postoperative pulmonary complications. A prospective, randomised, and blinded study of postoperative pulmonary complications after atracurium, vecuronium and pancuronium. Acta Anaesthesiol Scand. 1997 Oct;41(9):1095-1103.

15. Michalopoulos A, Nikolaides C, Antzaka C, Deliyanni M, Smirli A, Geroulanos S, et al. Change in anaesthesia practice and postoperative sedation shortens ICU and hospital length of stay following coronary artery bypass surgery. Respir Med. 1998;92(8):1066-70.