RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26. (Suppl.1) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20160012

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Artigos de Revisão

Novos bloqueadores neuromusculares

New neuromuscular blocking drugs

Héctor Yuri de Souza Ferreira1; Vinicius Caldeira Quintao2; Carlos Alexandre de Freitas Trindade3

1. Médico Residente em Anestesiologia. Centro de Ensino e Treinamento-CET/Sociedade Brasileira de Anestesiologia-SBA. Santa Casa de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico Anestesiologista. Título Superior em Anestesiologia-TSA/SBA. Corresponsável pela Residência em Anestesiologia. Santa Casa de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médico Anestesiologista. Título Superior em Anestesiologia-TSA/SBA. Santa Casa de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Gustavo Henrique Silva
E-mail: gustavohenrique_s@yahoo.com.br

Instituiçao: Hospital Júlia Kubitschek da FHEMIG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Os bloqueadores neuromusculares (BNM) estao no cotidiano dos anestesiologistas e fazem parte de um arsenal terapêutico amplo na prática médica. Entretanto, a succinilcolina permanece como única droga de ação ultracurta e segura em relação a bloqueio residual para a maioria dos pacientes. O bloqueio neuromuscular residual está associado a aumento da morbimortalidade peroperatória, principalmente devido às complicações pulmonares pós-operatórias. Diante disso, deu-se início à criação dos novos BNMs gantacúrio e seu sucessor CW002 que, associados à cisteína, molécula reversora do bloqueio, podem diminuir os riscos de bloqueio residual. Nesse cenário, o sugammadex vê o calabadion, fármaco com mecanismo de ação similar, superar e ampliar seus desfechos relacionados à reversão do bloqueio neuromuscular profundo.

Palavras-chave: Bloqueio Neuromuscular; Bloqueadores Neuromusculares; Anestesia; Ações Farmacológicas; Drogas em Investigação.

 

INTRODUÇÃO

Mais de 400 milhoes de pacientes recebem bloqueadores neuromusculares (BNM) anualmente com o objetivo de facilitar a intubação orotraqueal, melhorar a exposição do campo cirúrgico ou nas unidades de terapia intensiva e centros cirúrgicos para controle da ventilação mecânica nos casos de assincronia paciente-ventilador.1

Após mais de 70 anos da introdução do doxacúrio no ambiente cirúrgico, a succinilcolina, introduzida em 1951, permanece como o único BNM com rápido início de ação e duração ultracurta (menos de 10 minutos). A indústria farmacêutica continua à procura da droga ideal que suplante os efeitos adversos da succinilcolina2,3 e mantenha suas características farmacocinéticas ideais, tais como chance remota de efeito residual e ótimas condições de intubação em 60 segundos.4

Nos últimos anos, após mais disponibilidade e estudo da monitorização da junção neuromuscular5, grande preocupação foi direcionada para o bloqueio neuromuscular residual, responsável por boa parte das complicações pulmonares pós-operatórias, principalmente em pacientes suscetíveis, tais como idosos, obesos e cirurgias de abdome superior.6,7

Nesse sentido, tornou-se necessária a criação de bloqueadores neuromusculares de ação ultracurta ou a utilização de reversores mais eficazes e com menos efeitos colaterais. Portanto, essa revisão aborda a criação do gantacúrio e seu sucessor - CW002 -, ambos fumaratos, como futuros BNMs que aumentariam a segurança do procedimento anestésico associado à reversão do bloqueio neuromuscular profundo pela cisteína. Além disso, o artigo traz à tona o fenômeno de encapsulamento molecular dos BNMs pelo calabadion em modelos animais, fenômeno este primeiramente descrito com o uso de sugammadex e rocurônio.

 

GANTACURIO E CW002 VERSUS CISTEINA

O gantacúrio (dose eficaz DE95: 0,19 mg/kg), um alfafumarato e protótipo molecular de duração ultracurta, trouxe ao cenário anestesiológico um novo paradigma: a inativação do bloqueio neuromuscular pela cisteína.3

Inicialmente foi levantada a hipótese de rápida hidrólise plasmática, mas observações posteriores evidenciaram interação do gantacúrio com a L-cisteína endógena. Ficou demonstrado que essa interação era bem rápida (meia-vida em torno de 15s) e terminava na produção de um adulto com pouquíssima afinidade pelo receptor nicotínico. A inativação molecular é feita por mecanismos não enzimáticos. Envolve interação entre o grupo tiol da cisteína com o centro olefínico do fumarato. O átomo de Cloro, presente no gantacúrio, aparentemente facilita essa reação. Estudos em animais, utilizando altas doses desse bloqueador (até 25 vezes a DE95), não mostraram evidencias de broncoespasmo e repercussão hemodinâmica advinda da liberação de histamina.8,9 Entretanto, quando utilizado para sequência rápida de intubação em humanos (acima de 2,5 DE95: 0,3 mg/kg), libera histamina em moderada quantidade, trazendo repercussão hemodinâmica, evidenciada pela diminuição de 17% da pressão arterial média (PAM).9 Nos ensaios clínicos em humanos também foi determinado o início de ação com 2 minutos utilizando uma DE95 e duração de 12 a 14 minutos, evidenciado pelo retorno do train of four acima de 90%.

A experiência com gantacúrio fez surgir o mecanismo de inativação pela cisteína, cuja interação não parece ser transitória, já que se misturando as duas drogas e injetando-as em caes houve rápida recuperação do bloqueio neuromuscular, mesmo se utilizando doses altas de gantacúrio. Além disso, sua base molecular - fumarato - serviu de modelo para a criação do CW002, molécula mais estável (com a retirada da molécula de Cloro) e que mantém o mecanismo de inativação pela cisteína.10

Desse modo, o CW002 foi intencionalmente modificado para que a interação com a cisteína endógena fosse mais lenta, o que possibilita duração de ação intermediária ou pelo menos superior à do gantacúrio.11 Os estudos pré-clínicos em animais trouxeram mais variabilidade na dose-padrao com a mudança das espécies avaliadas se comparado ao gantacúrio. Independentemente disso, o aumento de duas a três vezes da DE95 demonstrou um bloqueador de duração intermediária, a despeito da espécie, o que era o objetivo inicial da modificação molecular.12 Os ensaios clínicos em humanos de fase 1 iniciaram em 2012 e mostraram uma DE95 de 0,07 mg-kg, com duração de 55 min. Aumentando a DE em 50% ou dobrando-a, o início de ação seria de 2 minutos, semelhante à do gantacúrio, mas sem diminuição da PAM. Não houve evidência de liberação de histamina.13,14 Mais estudos estao sendo conduzidos para garantir a segurança do CW002 em humanos.

A cisteína é um aminoácido essencial e seu uso já está consagrado na dieta enteral para recém-nascidos, sem efeitos adversos graves.15 Também é muito útil nos casos de intoxicação por paracetamol nos EUA, onde é utilizada a N-acetilcisteína em altas doses com boa tolerância.16 Entretanto, estudo realizado em caes procurou estimar a dose ideal e avaliar o perfil de neurotoxicidade da mesma.17-19 A molécula tem potencial neuroexcitatório e parece contribuir para processos neurodegenerativos. Todavia, nesse estudo, caes receberam doses repetidas de cisteína e não tiveram alterações de comportamento ao longo de quatro semanas de seguimento. Ao contrário do binômio sugammadex-rocurônio, em que há um encapsulamento, o CW002-cisteína envolve mudança na molécula, o que diminui 60 vezes a afinidade pelo receptor nicotínico. Na pesquisa com caes, não houve diferença estatística significativa entre 50 e 100 mg-kg para a reversão, ficando 50 mg-kg como dose prototípica da droga até estudos pré-clínicos em humanos mostrarem a verdade.20

 

REVERSÃO DO BLOQUEIO NEUROMUSCULAR: NOVOS CONCEITOS

A neostigmina, amplamente utilizada no nosso meio como principal reversora do bloqueio neuromuscular, não é isenta de efeitos colaterais. Sialorreia, bradicardia, náuseas, vômitos e até perfuração intestinal são descritos.21,22 Além disso, carece de efeito rápido e ainda pode causar bloqueio por dessenbilização quando utilizada em altas doses. A despeito disto, ela também consegue acelerar a recuperação do BNM quando associada ao CW002 em bloqueios superficiais. Entretanto, a L-cisteína exógena foi capaz de reverter bloqueios profundos e com mais rapidez se comparada à neostigmina.23

Diferentemente desses mecanismos, o sugammadex - uma ciclodextrina que possui alta afinidade pelo rocurônio (e menos intensa pelo vecurônio) - pode reverter o bloqueio neuromuscular sem chance de bloqueio residual, como demonstrado em cirurgias abdominais num estudo prospectivo e randomizado.24 Também pode atuar em bloqueios profundos tornando-se uma opção nos casos de via aérea difícil não prevista se utilizado na dose de 16 mg-kg, inclusive com ampla vantagem sobre o uso de succinilcolina.25

O calabadion é um membro acíclico do grupo dos cucurbit(n)uril que, comparado ao modelo de ação do sugammadex, forma complexos com moléculas de tamanho bem variáveis.

Esse encapsulamento químico é uma técnica crescente, com pesquisas constantes sobre o tema. As ciclodextrinas funcionam como um "container", inativando a molécula ao captá-la para a cavidade lipofílica. Os cucurbit(n)urils como o calabadion são superiores às ciclodextrinas porque se ligam a uma variedade de espécies neutras e catiônicas com alta seletividade e afinidade, além de estarem disponíveis em uma variedade de tamanhos.26,27

Foram necessários um a dois minutos para reversão do rocurônio na dose 3,5 mg/kg utilizando o calabadion na dose de 90 mg/kg. Essa reversão foi mais rápida que o sugammadex, na dose de 16 mg/kg, nas mesmas espécies e em condições experimentais. Foi mais rápido que a neostigmina no retorno da amplitude da contração tanto para o rocurônio quanto para o cisatracúrio. Não houve alterações significativas na PAM, frequência cardíaca ou nos parâmetros da gasometria arterial. Além disso, a grande vantagem do calabadion é que esse composto cobre os sítios de amina quaternária tanto dos benzilisoquinolínicos quanto dos aminoesteroides, tornando seu uso amplo na reversão do bloqueio e com potencial redução da morbimortalidade associada às complicações pulmonares pós-operatórias.

A Tabela 1 resume os principais reversores do BNM e suas características.

 

 

CONCLUSÃO

A procura pelo bloqueador neuromuscular não despolarizante isento dos efeitos adversos da succinilcolina ainda continua. Gantacúrio e seu sucessor CW002, ambos benzilisoquinolínicos (ou também denominados de fumaratos por alguns autores), são promissores, mas ainda carecem de ensaios clínicos com pacientes de várias idades e com diferentes comorbidades. Além disso, não existem estudos de longo prazo para estabelecer o perfil de segurança dos mesmos. Mais conservadora, a agência americana Food and Drug Administration (FDA) aprovou somente em 2015 o sugammadex, lançado no mercado em 2009.

Já existem dois candidatos fortes para a substituição da neostigmina como droga de reversão do BNM. A associação do CW002 - bloqueador de duração intermediária - e a cisteína carregam a possibilidade de extinção do bloqueio neuromuscular residual como complicação anestésica. Além disso, o calabadion tem amplo espectro de atuação, uma vez que reverte tanto o bloqueio neuromuscular proporcionado pelos aminoesteroides quanto pelos benzilisoquinolínicos. Esse conceito de reversão rápida do bloqueio neuromuscular, ainda que profundo, levanta um questionamento sobre a real necessidade do bloqueador de ultracurta duração, tao procurado pela indústria farmacêutica.

 

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