ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Obesidade e bloqueadores neuromusculares
Obesity and neuromuscular blocking agents
Laura Aparecida Lacerda e Louzada1; Ananda Ferreira Fialho Alencar1; Jaci Custódio Jorge2; Monique Corrêa e Castro de Sá3
1. Médica Residente em Anestesiologia do Centro de Ensino e Treinamento-CET do Instituto da Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais - IPSEMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico Anestesiologista. Título Superior em Anestesiologia - TSA/Sociedade Brasileira de Anestesiologia - SBA. IPSEMG; Coordenador do Serviço de Anestesiologia do Hospital Vera Cruz. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médica Anestesiologista. Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais e Hospital Joao XXIII da Fundaçao Hospitalar do Estado de Minas Gerais - FHEMIG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Monique Corrêa e Castro de Sá
E-mail: moniquecorreaecastro@hotmail.com
Instituiçao: Instituto da Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais - IPSEMG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
A crescente prevalência de obesidade na população mundial exige que o anestesiologista esteja familiarizado com as diferenças anatômicas, fisiológicas, metabólicas e farmacológicas associadas ao aumento de peso. A utilização adequada de bloqueadores da junção neuromuscular é fundamental para o correto manejo intraoperatório e para a redução das complicações nesse grupo de pacientes. O presente artigo objetiva revisar o uso dos relaxantes musculares, sua interação com a função respiratória e as complicações pós-operatórias, bem como sua adequada monitorização e reversão no paciente obeso.
Palavras-chave: Obesidade; Bloqueadores Neuromusculares; Bloqueio Neuromuscular; Monitoramento.
INTRODUÇÃO
O consenso de que o paciente obeso necessita de cuidados específicos diferentes dos da população não obesa é amplamente aceito. Características que incluem a elevada prevalência de comorbidades, tais como a síndrome plurimetabólica e a apneia do sono, a alta incidência de via aérea tecnicamente difícil, bem como de complicações tromboembólicas, somam-se às modificações na fisiologia cardiovascular e respiratória e às diferenças na farmacocinética e farmacodinâmica das drogas, tornando o manejo perioperatório desse tipo de paciente particularmente desafiador para o anestesiologista.
Sendo um dos maiores problemas de saúde pública no mundo atualmente, a obesidade (IMC>30) é reconhecida como preocupação crescente e atinge hoje cerca de 15% da população mundial.1 Dados do Ministério da Saúde demonstram que 16% dos homens e 18% das mulheres eram obesos no Brasil em 2014.2 Estima-se que aproximadamente um terço (33,8%) da população norte-americana é obesa. A previsão é de que essa doença atinja 50% de prevalência em 2030.3
A Organização Mundial de Saúde classifica a obesidade em três categorias (Tabela 1).
ALTERAÇÕES DA FISIOLOGIA RESPIRATORIA NO OBESO
As alterações na fisiologia respiratória no obeso determinam especial atenção no período perioperatório. É de vital importância empregar técnicas anestésicas que sejam capazes de manter a oxigenação e volume pulmonar adequados.
O paciente obeso apresenta múltiplas alterações dos volumes e capacidades do sistema respiratório. Tais alterações são mais pronunciadas quando o padrao de distribuição do tecido adiposo é predominantemente abdominal, ocorrendo redução da capacidade vital e pulmonar total, do volume de reserva expiratório e da capacidade residual funcional. A capacidade de fechamento pode superar o volume residual funcional e se aproximar do volume corrente, determinando o fechamento de pequenas vias aéreas, alterações da relação ventilação-perfusão, shunt e hipoxemia. A posição supina e o relaxamento muscular durante a anestesia aumentam a redução da capacidade residual funcional e potencializam as alterações respiratórias típicas do obeso. Tanto a complacência pulmonar quanto a do sistema respiratório estao reduzidas graças às alterações dos volumes pulmonares, da parede torácica e do aumento do conteúdo abdominal. Existe aumento da demanda metabólica, que se correlaciona diretamente com o aumento do IMC, determinando mais trabalho respiratório, consumo de oxigênio e produção de dióxido de carbono. Como mecanismo compensatório à redução do volume corrente, verifica-se a elevação da frequência respiratória basal no obeso.4 Estudo revelou que as mudanças nos volumes pulmonares ocorrem em estágios precoces da obesidade e não são restritas aos pacientes com o IMC muito elevado.5
Paralelamente às alterações dos volumes pulmonares e da taxa metabólica, o obeso possui disfunção da musculatura respiratória, o que aumenta a possibilidade de complicações ventilatórias no período perioperatório.6 Apesar do trabalho respiratório elevado e da necessidade constante de vencer a baixa complacência da parede torácica para respirar adequadamente, quando comparado com a população normal, o obeso produz pressões inspiratórias mais baixas.7
Como resultado das alterações fisiológicas e principalmente da pronunciada redução na capacidade residual funcional, a dessaturação rápida da hemoglobina é mais provável durante períodos de apneia. A reduzida tolerância à apneia associada à alta incidência de via aérea tecnicamente difícil torna a indução anestésica especialmente complicada nos pacientes obesos. Apneia do sono, circunferência do pescoço maior que 40 cm, sexo masculino, aumento do tecido mole entre a pele e a traqueia visto pela ultrassonografia e classificação de Mallampati III e IV são possíveis fatores preditores de via aérea difícil nos obesos, especialmente quando não há correto posicionamento para laringoscopia. O colapso alveolar que segue a intubação traqueal pode progredir durante todo o ato anestésico caso manobras para melhorar a oxigenação e restaurar os volumes pulmonares - a exemplo da pressão positiva ao final da expiração (PEEP) - não forem empregadas.
Existe correlação direta entre o índice de massa corpórea (IMC) e a distribuição de gordura abdominal com a redução da capacidade residual funcional, tendência ao fechamento das pequenas vias aéreas e formação de atelectasias e shunt, tanto no intraoperatório como no período pós-operatório imediato.8
Doenças respiratórias podem potencializar as alterações da fisiologia respiratória no paciente obeso. A influência da obesidade nas doenças respiratórias é complexa, indo além das alterações mecânicas e fisiológicas do excesso de peso, associando-se a disfunções metabólicas, imunológicas e inflamatórias. O tecido adiposo é atualmente considerado um órgao endócrino, metabolicamente ativo, cujos hormônios, citocinas e outros mediadores inflamatórios atingem órgaos e tecidos, agravando doenças e intensificando modificações na homeostase típicas da obesidade.9
A obesidade é um importante fator associado à apneia obstrutiva do sono (AOS), a qual se caracteriza por obstrução periódica (parcial ou completa) da via aérea superior durante o sono. Embora possa ocorrer devido às alterações no sistema nervoso central, a causa mais comum está relacionada ao excesso de tecidos moles na orofaringe e na regiao cervical. A incidência de via aérea tecnicamente difícil é maior em pacientes portadores de AOS. Os episódios frequentes de hipoventilação e hipoxemia associam-se à elevada sensibilidade desses pacientes aos opioides, aumentando o risco de depressão respiratória.10 Se não reconhecida e tratada, a apneia obstrutiva do sono está associada a hipertensão pulmonar, disfunção de ventrículo direito e aumento das complicações respiratórias e cardiológicas no período pós-operatório.
BLOQUEADORES NEUROMUSCULARES E OBESIDADE
É de fundamental importância que o obeso retorne rapidamente à sua função respiratória basal. Nesse contexto, o uso de drogas anestésicas de curta duração e com poucos efeitos depressores da ventilação, tais como a dexmedetomidina, torna-se especialmente indicado. Sedativos e opioides de longa duração devem ser evitados sempre que possível.11
Objetivando evitar a superdosagem, os anestésicos venosos raramente têm suas dosagens baseadas no peso corporal total. Para a grande maioria das drogas anestésicas utilizam-se o peso corporal magro, peso ideal ou peso ideal corrigido, titulando-se cuidadosamente a dose de acordo com o efeito desejado.12
Alguns autores afirmam que o uso do peso ideal para cálculo de doses de medicamentos não reflete as alterações da composição corporal típicas da obesidade. Embora haja aumento da massa magra, que pode atingir até 20 a 40% do excesso de peso no obeso, há aumento desproporcional do tecido adiposo em relação à massa muscular.13 Outra crítica ao uso do peso ideal como base para o cálculo das dosagens dos anestésicos é que todos os pacientes com a mesma altura receberiam a mesma dose, o que constitui uma generalização perigosa e pode gerar concentrações subterapêuticas em alguns casos. Nessa perspectiva, o uso da massa magra ou peso ideal corrigido parece ser mais razoável, já que é na massa corporal magra que a maioria das reações metabólicas e o clearance das drogas ocorrem.14 O importante é que o cálculo das doses leve em consideração outros fatores não relacionados ao peso, a exemplo do sexo, da idade e de comorbidades. Existem diversas equações para o cálculo do peso magro, a maioria apresentando resultados semelhantes. Uma das fórmulas mais usadas é a equação de Janmahasatian, reproduzida na Tabela 2.15
Existem poucas informações e estudos científicos sobre os efeitos da obesidade na farmacologia dos anestésicos. A maioria dos estudos envolvendo a farmacocinética e a farmacodinâmica de medicamentos trata a obesidade como um fator de exclusão. A maior parte do excesso de peso no obeso é tecido adiposo, que possui menos fluxo sanguíneo relativamente aos outros tecidos. É sabido que drogas lipofílicas terao mais volume de distribuição quando comparadas a drogas hidrofílicas, mas alterações do volume de distribuição de drogas na população obesa são droga-específicas e não há respaldo na literatura médica para generalizações.16 Quanto à farmacodinâmica, sabe-se que as disfunções respiratórias e cardiológicas associadas à obesidade podem potencializar efeitos adversos e reduzir a janela terapêutica de diversas drogas.17
O volume de distribuição dos anestésicos no obeso é alterado por diversos fatores, tais como quantidade relativa reduzida de água corporal total, aumento do tecido adiposo, aumento da massa magra, alteração da concentração e da ligação de drogas às proteínas plasmáticas, aumento do volume sanguíneo, do fluxo sanguíneo renal, esplâncnico e do débito cardíaco, aumento do tamanho dos órgaos e elevação das concentrações plasmáticas de ácidos graxos, triglicérides, colesterol e alfa-1 glicoproteína. A elevação no volume de distribuição dos medicamentos aumenta a duração de seus efeitos, mesmo quando o clearance das drogas permanece inalterado ou aumentado. A elevada prevalência de disfunção renal e hepática também contribui para alterações na farmacologia dos anestésicos utilizados na população obesa.
Drogas com fraca ou moderada lipofilidade, a exemplo dos bloqueadores neuromusculares, podem ter suas dosagens calculadas com base no peso magro. Uma regra prática consiste em saber que o peso magro raramente ultrapassa 70 quilos em mulheres e 100 quilos em homens.17
Devido a alterações fisiológicas do obeso, a tolerância a períodos de apneia durante a indução anestésica reduz em proporção direta ao aumento do IMC. Nesse contexto, o uso de drogas relaxantes musculares de rápido início de ação é fundamental para o manejo apropriado da via aérea. Quando não há disponibilidade do sugammadex para a rápida reversão do rocurônio, a succinilcolina, devido à sua velocidade de ação e curta duração, é recomendada para intubação orotraqueal em pacientes obesos, devido à possibilidade de via aérea difícil, alto risco de hipoxemia ou aspiração pulmonar. Os principais determinantes da duração de ação da succinilcolina, o volume extracelular e a atividade da pseudocolinesterase plasmática são maiores em obesos. Para o completo relaxamento muscular e obtenção de condições ideais de intubação preconiza-se a dose de 1 mg/kg de peso corporal total.18
Usado como alternativa à succinilcolina para a indução em sequência rápida, o rocurônio não apresenta diferenças marcantes em sua farmacocinética no que diz respeito à obesidade. Mesmo quando são administradas doses calculadas de acordo com o peso corporal ideal, não há atraso significativo do início de ação.19
Bloqueadores musculares de ação intermediária são sempre preferíveis em obesos porque propiciam recuperação mais rápida da função respiratória. Os relaxantes musculares adespolarizantes, como rocurônio e vecurônio, devem ter a dose inicial calculada conforme o peso ideal ou peso magro. As doses adicionais devem ser administradas de acordo com a necessidade determinada pela monitorização do bloqueio neuromuscular. A farmacocinética dessas drogas não se altera no obeso, mas quando o cálculo da dose é baseado no peso corporal total o tempo de recuperação do bloqueio muscular é prolongado porque passa a ser dependente do metabolismo e da eliminação da droga e não de sua redistribuição.20 Em contraste, quando a dose é determinada de acordo com o peso ideal, a duração do efeito clínico é reduzida sem aumento do tempo de início de ação.21,22
Atracúrio e cisatracúrio possuem a mesma correlação entre a duração prolongada de ação e as doses administradas de acordo com o peso corporal total. Essas drogas não apresentam diferenças na meia-vida de eliminação, volume de distribuição ou clearance quando se comparam obesos e não obesos.23 O fato de que o cálculo da dose do atracúrio e do cisatracúrio baseado no peso corporal ideal pode evitar a recuperação prolongada do bloqueio muscular se explica pelo volume de distribuição e massa corporal magra semelhantes em obesos e não obesos.24
Bloqueio neuromuscular profundo em obesos é necessário não apenas para propiciar melhores condições cirúrgicas e segura manipulação dos instrumentos laparoscópicos, mas também para facilitar a ventilação mecânica. Outra vantagem da associação entre cirurgia videolaparoscópica e bloqueio neuromuscular profundo é que possibilita a utilização de menos pressões intra-abdominais durante o pneumoperitônio, minimizando as alterações hemodinâmicas e respiratórias da técnica e reduzindo, assim, a intensidade da dor pós-operatória e o consumo de analgésicos.25 O tipo do relaxante muscular utilizado não é tao importante quanto a profundidade do bloqueio anestésico.26
MONITORIZAÇÃO DO BLOQUEIO NEUROMUSCULAR
A monitorização do bloqueio neuromuscular é obrigatória quando são utilizadas drogas relaxantes musculares no obeso. Os principais métodos de monitorização utilizados atualmente fundamentam-se em duas características farmacológicas específicas dos agentes bloqueadores musculares não despolarizantes: fadiga e facilitação pós-tetânica.
O método mais comumente utilizado de monitorização do bloqueio neuromuscular na sala de cirurgia é a sequência de quatro estímulos (train-of-four, TOF), o qual consiste de quatro estímulos supramáximos com intervalos de 0,5 milissegundos (2Hz) entre eles. A intensidade da resposta muscular aos estímulos é diretamente proporcional ao grau de bloqueio neuromuscular, o que torna a sequência de quatro estímulos o padrao-ouro para monitorização. Seu uso reduziu significativamente a frequência do bloqueio neuromuscular residual durante a recuperação anestésica.27
Mesmo quando o bloqueio neuromuscular é profundo e a sequência de quatro estímulos é igual a zero, podem-se obter informações adicionais a respeito da intensidade do relaxamento muscular. Para tanto, utiliza-se a contagem pós-tetânica (PTC), mensurada após estímulo de 50Hz com duração de 5 segundos, seguido por uma pausa de 3 segundos e 20 estímulos de 1 Hz. O número de respostas aos estímulos é o valor da contagem pós-tetânica. Geralmente, quando próxima de 10, tal contagem coincide com o aparecimento da primeira resposta na sequência de quatro estímulos (TOF).
Testes clínicos - por exemplo: elevação da cabeça por mais de 5 segundos, elevação das pernas, abertura palpebral sustentada e protusão da língua são menos confiáveis e podem ser executados por pacientes com bloqueio neuromuscular residual significativo. A capacidade de oferecer resistência à remoção de objetos posicionados entre os dentes, como um abaixador de língua ou tubo orotraqueal, aparentemente é um sinal mais confiável de recuperação da musculatura que protege a via aérea superior, mas não deve substituir a monitorização do relaxamento muscular.28
No paciente intubado e respirando espontaneamente, o volume-minuto e a capnografia dentro da normalidade não garantem a completa recuperação dos músculos. Pacientes intubados e que apresentam troca gasosa e função respiratória normais podem sofrer completo colapso e obstrução ventilatória alta quando extubados. Isso ocorre porque o diafragma é um dos primeiros músculos a se recuperar do bloqueio neuromuscular não despolarizante, exigindo concentrações plasmáticas elevadas de drogas relaxantes musculares para a manutenção da paralisia. Já a musculatura que protege a via aérea superior é muito mais sensível, com recuperação mais prolongada.29
Tendo em vista que os diferentes grupos musculares possuem diferentes sensibilidades aos agentes bloqueadores neuromusculares, realiza-se a monitorização do relaxamento muscular em diversos locais. O músculo mais utilizado na prática clínica para monitorização do relaxamento é o adutor do polegar. Seu tempo de recuperação correlaciona-se bem com a recuperação da musculatura faríngea, responsável por evitar o colapso e a obstrução da via aérea superior, sendo um bom indicador do momento seguro e adequado para a extubação. Apesar do adutor do polegar ser confiável para a monitorização da recuperação do bloqueio, não é tao confiável para monitorização de seu início. O diafragma e a musculatura laríngea exibem relaxamento muscular adequado para realização da intubação orotraqueal após o adutor do polegar manifestar sinais de bloqueio neuromuscular profundo. Muitos autores argumentam que o uso do músculo corrugador do supercílio é preferível como sítio de monitorização neuromuscular durante a indução anestésica, já que se correlaciona melhor com a musculatura das cordas vocais e diafragma.
COMPLICAÇÕES PERIOPERATORIAS RELACIONADAS AO USO DE BLOQUEDORES NEUROMUSCULARES NO OBESO
O período pós-operatório é marcado por alterações na fisiologia respiratória, ocorrendo redução de todos os volumes e capacidades pulmonares. Essas alterações são mais expressivas em cirurgias abertas realizadas no andar superior do abdome, mas também ocorrem frequentemente em cirurgias torácicas, cirurgias laparoscópicas e procedimentos realizados no abdome inferior. Quanto mais prolongada a duração do procedimento cirúrgico, mais marcante o comprometimento da função pulmonar no pós-operatório.30 MacKay comprovou, em estudo publicado recentemente, que pacientes obesos têm atraso na recuperação dos reflexos protetores das vias aéreas quando submetidos à anestesia prolongada com os agentes inalatórios sevoflurano e desflurano, agravando o risco de complicações pós-operatorias.31
Os bloqueadores neuromusculares, apesar de serem drogas amplamente utilizadas em anestesiologia, não são isentas de problemas. É no período de recuperação da anestesia geral que as complicações associadas ao uso de tais medicações representam mais significado clínico, potencializando as alterações na mecânica ventilatória típicas do período pós-operatório. As complicações incluem, mas não se limitam à hipoxemia, atelectasias, obstrução das vias aéreas superiores, tempo de recuperação pós-anestésica prolongado, tempo de ventilação mecânica prolongado e complicações pulmonares em geral.32
Bloqueio neuromuscular residual é a mais frequente complicação neuromuscular observada em pacientes em cuidado pós-anestésico. É definido como uma relação entre a quarta e a primeira resposta no TOF inferior a 0,9. Cada caso varia em gravidade e conta com múltiplos fatores interferindo em seu desfecho. Alguns derivam do tipo de bloqueador neuromuscular utilizado (mecanismo e duração de ação), outros da reversão ineficiente do bloqueio e/ou monitorização inadequada durante o procedimento cirúrgico.27 O bloqueio neuromuscular residual pode estar presente até 4 horas após o uso de um agente bloqueador neuromuscular de duração de ação intermediária.33
Um dos principais músculos afetados pela paralisia residual é o genioglosso. Quando esse músculo não recupera totalmente sua função, ocorre estreitamento da faringe durante a inspiração, com consequente obstrução ventilatória. A capacidade inspiratória, a resposta ventilatória à hipóxia, a deglutição e a tosse também são prejudicadas pelo bloqueio neuromuscular residual, aumentando a chance de complicações respiratórias e aspiração traqueal.38
Outra complicação que se correlaciona fortemente com o uso de agentes relaxantes musculares no obeso é a consciência intraoperatória. Em 2014 foi publicado grande estudo que avaliou a incidência de consciência intraoperatória no Reino Unido. Nesse trabalho os autores concluíram que o despertar intraoperatório é quatro a cinco vezes mais comum em obesos quando comparado com a população em geral, sendo o uso de agentes bloqueadores da junção neuromuscular e da anestesia venosa total fator independente de risco para tal complicação.35 A monitorização da profundidade da anestesia é importante para a individualização e a titulação das doses das medicações anestésicas, devendo ser obrigatoriamente utilizada sempre que o uso de bloqueadores neuromusculares for considerado em obeso.11
ANTAGONISMO DO BLOQUEIO NEUROMUSCULAR
No momento da extubação orotraqueal o obeso deve estar desperto e com a paralisia muscular completamente revertida. Existe grande variabilidade individual na sensibilidade aos relaxantes musculares. Similarmente, a duração do efeito clínico também é bastante variável, mesmo quando são administradas doses semelhantes em indivíduos saudáveis com o mesmo peso corporal. Idosos e portadores de doenças que interfiram no metabolismo hepático ou renal das drogas apresentam diferenças ainda mais pronunciadas na farmacocinética. Tal fato é especialmente verdadeiro no que se relaciona a bloqueadores adespolarizantes aminoesteroides como rocurônio e vecurônio.36
A acetilcolina compete com as moléculas dos relaxantes musculares adespolarizantes pelo receptor nicotínico. Anticolinesterásicos como neostigmine e edrofônio impedem a degradação e aumentam a concentração de acetilcolina na fenda sináptica, deslocando as moléculas do bloqueador neuromuscular e revertendo a paralisia muscular. Uma vez que a acetilcolinesterase seja totalmente inibida, doses subsequentes de anticolinesterásicos não gerarao efeito adicional. Por outro lado, não há um limite para a concentração de bloqueador neuromuscular na fenda sináptica caso doses maiores sejam inadvertidamente administradas. Em termos práticos, a profundidade máxima do bloqueio neuromuscular que pode ser rapidamente antagonizada pelos anticolinesterásicos corresponde ao aparecimento da quarta resposta na sequência de quatro estímulos (TOF).37
Se a relação entre a quarta (T4) e a primeira resposta (T1) no TOF é superior a 0,9, nenhuma reversão do relaxamento muscular é necessária, visto que os anticolinesterásicos e anticolinérgicos não são drogas isentas de efeitos adversos. Existem evidências de disfunção muscular causada por anticolinesterásicos. Tal fato ocorre especialmente quando essas drogas são administrados em pacientes com ausência de bloqueio neuromuscular residual (TOF>0,9).
O sugammadex é uma ciclodextrina desprovida de afinidade a proteínas plasmáticas, que se liga de forma permanente às moléculas dos relaxantes musculares rocurônio e vecurônio, formando um complexo estável que é eliminado pelos rins. Essa droga possui perfil de ação mais favorável que as tradicionais drogas anticolinesterásicas, porque promove reversão mais rápida, mais confiável e com menos risco de recuperação incompleta da função neuromuscular, se for utilizada na dosagem correta. Uma característica notável do sugammadex é que a reversão do bloqueio pode ser realizada mesmo para graus mais profundos de relaxamento (TOF 0). Sua dosagem correta ainda é objeto de controvérsia, mas deve ser suficiente para capturar todas as moléculas remanescentes do bloqueador adespolarizante, afetando o gradiente entre os compartimentos central e periférico. Caso contrário, pode haver bloqueio residual.38 Apesar de ser uma droga com pequeno volume de distribuição (aproximadamente 0,16 L/kg), a recomendação atual do fabricante é de que a quantidade de sugammadex a ser administrada seja baseada no peso corporal total. Le Corre et al. identificaram alta incidência de bloqueio residual (até 40%) quando a dose de sugammadex foi baseada no peso ideal.39 Outro estudo demonstrou que existe grande variabilidade interindividual no tempo de recuperação quando o sugammadex é utilizado de acordo com o peso ideal.40 Uma abordagem alternativa, defendida por alguns autores e preconizada no guideline de 2015 da Society for Obesity and Bariatric Anaesthesia (SOBA), é que a dose do sugammadex deva ser baseada no peso corporal corrigido (peso ideal + 40% do excesso de peso).11,25
Quando não houver disponibilidade do sugammadex e o nível de relaxamento muscular não for profundo (aparecimento da segunda resposta no TOF), a neostigmine pode ser utilizada para reversão dos agentes adespolarizantes. Sua dose é baseada no peso corporal total, mas deve levar em conta a quantidade administrada e o tempo decorrido desde a última infusão do relaxante muscular, bem como a profundidade do bloqueio neuromuscular residual. Doses acima de 5 mg não devem ser administradas porque não geram efeito clínico adicional e aumentam a ocorrência de complicações.41 A administração de altas doses de neostigmine pode isoladamente induzir fraqueza muscular. O mecanismo fisiopatológico não está totalmente esclarecido, mas se acredita que seja multifatorial e que envolva a adenosina, a dessensibilização e o bloqueio dos receptores colinérgicos.42 Sabe-se que a neostigmine não deve ser utilizada sem o acompanhamento de monitorização quantitativa do bloqueio neuromuscular.43 É importante que pacientes com recuperação espontânea do bloqueio neuromuscular não recebam agentes reversores. Fuchs-Buder demonstrou que quando o grau de relaxamento muscular for mais superficial (T4/T1 próximo a 0,6), doses tao baixas quanto 10 mcg/kg de neostigmine são efetivas para a reversão do bloqueio.44 Todavia, mesmo quando utilizada adequadamente, existem evidências de que a neostigmine não é tao efetiva quanto o sugammadex na prevenção da ocorrência de bloqueio neuromuscular residual no período pós-operatório.45 Em estudo recente, Sasaki et al. identificaram o uso de neostigmine como importante fator associado ao aumento de complicações respiratórias, especialmente a formação de atelectasias.42
O calabadion é um novo antagonista do bloqueio muscular que possui a capacidade de reverter até mesmo níveis profundos de relaxamento muscular causado tanto por drogas do grupo benzilisoquinolina quanto do grupo aminoesteroides. Entretanto, ainda não está disponível para comercialização.46
CONCLUSÃO
Os obesos constituem um grupo especial de pacientes que exigem cuidados específicos no período perioperatório. Compreender as diferenças anatômicas, fisiológicas, metabólicas e farmacológicas associadas à obesidade é essencial para diminuir complicações e melhorar o desfecho em procedimentos cirúrgicos nessa população. A utilização de bloqueadores da junção neuromuscular facilita o manuseio das vias aéreas e propicia adequadas condições operatórias, mas não é isento de problemas. Se usadas de forma incorreta, tais drogas potencializam alterações da função respiratórias típicas do excesso de peso e aumentam a incidência de complicações pós-operatórias. O emprego de doses baseadas no peso corporal ideal, a adequada monitorização do relaxamento muscular e sua correta reversão são fundamentais para o adequado manejo anestésico do obeso.
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