ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Lesão de Morel-Lavallée: relato de caso
Morel LavalléeLesion: case report
Cássio da Cunha Ibiapina1; Rachel Aparecida Ferreira Fernandes2; Sergio Ribeiro de Andrade3; Ana Luisa Neves4; Ana Luiza Bessa4; Carolina Martinelli Mascarenhas de Lucena Carvalho4; Fernanda Moreira e Leite4
1. Médico Pediatra. Pós Doutorado em Educaçao. Professor Associado I. Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina-FM Departamento de Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médica Pediatrica. Mestrado em Hematologia Pediatríca. Professora. UFMG/FM, Departamento de Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Radiologista. UFMG, Hospital das Clínicas; CONRAD; CDI. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Acadêmica do curso de Medicina. UFMG/FM. Belo Horizonte, MG - Brasil
Cássio da Cunha Ibiapina
E-mail: cassioibiapina@terra.com.br
Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Horizonte, MG - Brasil
Resumo
A lesão de Morel-Lavallée, descrita inicialmente no século XIX pelo cirurgiao francês Victor Auguste François Morel-Lavallée, constitui lesão de partes moles, sobretudo nas áreas que revestem as protuberâncias ósseas. Sua fisiopatologia consiste no deslocamento da pele e do tecido celular subcutâneo sobre a fáscia muscular, provocado por forças tangenciais súbitas e intensas, secundárias a traumatismos. No espaço criado pela avulsão dos tecidos, acumulam-se sangue, linfa e debris gordurosos. O diagnóstico é baseado na história clínica, no exame físico e nos exames de imagem. O tratamento geralmente é conservador e o prognóstico é bom, nas lesões menores. Em casos de lesões extensas podem ocorrer graves complicações. O diagnóstico diferencial inclui bursite, hematoma, abscesso, tumores benignos e neoplasias malignas. O presente relato visa alertar o pediatra sobre a possibilidade diagnóstica de lesão de Morel-Lavallée, garantindo-se sua abordagem precoce e adequada, especialmente quando se considera a prática de esportes cada vez mais comum entre crianças e adolescentes, além do risco da sua ocorrência por traumas associados às atividades lúdicas próprias da faixa etária pediátrica.
Palavras-chave: Neoplasias de Tecidos Moles; Crianças; Esportes; Traumatismos em Atletas.
INTRODUÇÃO
A lesão de Morel-Lavallée (LML) foi descrita inicialmente em 1848, pelo cirurgiao francês Victor Auguste François Morel-Lavallée1, e constitui-se em lesões que ocorrem nos tecidos moles, entre a pele e a fáscia muscular, sobretudo nas áreas de revestimento das protuberâncias ósseas (regiao dos joelhos, anterolateral das coxas, glútea, lombodorsal e escapulares), sem rompimento da superfície cutânea.
A fisiopatologia da lesão de Morel-Lavallée consiste no descolamento traumático do tecido celular subcutâneo da fáscia muscular profunda. O traumatismo deve ser agudo, intenso e com forças tangenciais capazes de provocar avulsão do tecido celular subcutâneo sobre a fáscia muscular, como num movimento de desenluvamento, que leva à ruptura de vasos sanguíneos perfurantes fasciocutâneos e musculocutâneos e subsequente extravasamento de sangue, linfa e esfacelamento de tecido adiposo.
O diagnóstico da LML é baseado na história clínica, no exame físico e nos exames complementares de imagem.
Embora o traumatismo seja evento essencial para a ocorrência da lesão, em um terço dos casos o paciente não se recorda de trauma significativo e, por isso, a obtenção da história clínica deve ser minuciosa para se fazer um diagnóstico preciso da MLL.
As características clínicas da LML podem variar conforme a quantidade de sangue e fluido linfático acumulados no local da lesão e do tempo transcorrido desde o acidente. De modo geral, a lesão surge como uma tumoração de conteúdo flutuante, dentro de algumas horas ou dias após um traumatismo. Quando se forma agudamente, é dolorosa e, com frequência, acompanhada de alterações da pele como equimoses, hipermobilidade e diminuição da sensibilidade cutânea. Em até 30% dos casos, no entanto, a percepção da tumoração com alteração da sensibilidade cutânea pode ocorrer vários meses ou até anos após o trauma. As lesões mais crônicas podem ser indolores e, muitas vezes, com aspecto de encapsulamento à palpação.
Os exames de imagem são essenciais para o diagnóstico da LML. A ultrassonografia, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética identificam uma massa de tecido mole não calcificada. O aspecto radiológico varia com o tempo de evolução da lesão, bem como com a composição do conteúdo da lesão (predominância de sangue ou predominância de linfa). A ressonância magnética tem se mostrado padrao-ouro para o diagnóstico por imagem da LML, com capacidade de visualização com realce de contraste de tecidos moles.
O tratamento varia conforme a extensão da lesão.2 De modo geral, é conservador e o prognóstico é bom. Todavia, quando a lesão é extensa e o conteúdo linfo-hemático acumulado muito volumoso, pode haver grave comprometimento dos tecidos superficiais, levando à necrose e à necessidade de desbridamento cirúrgico, com alta morbidade, risco de infecção local e/ou cicatrização inestética.
O diagnóstico diferencial da LML inclui várias condições, a saber: a) bursite, que geralmente não está associada a traumas diretos, mas a movimentos cronicamente repetidos; b) hematoma agudo, sem avulsão de tecidos; c) abscessos, geralmente acompanhados por quadro febril e comprometimento do estado geral; d) lipomas, assintomáticos, exceto pela presença de tumoração; iv) neoplasias-sarcomas de partes moles e osteossarcomas, de localização mais profunda que a LML e consistência endurecida. A possibilidade de diagnóstico diferencial com neoplasias pode causar grande impacto negativo no paciente e em seus familiares.
Embora a LML seja relativamente incomum, o presente artigo relata e discute um caso da afecção em adolescente, com o intuito de alertar o pediatra para que a considere no diagnóstico diferencial de tumorações superficiais, sobretudo quando localizadas sobre protuberâncias ósseas e em crianças e adolescentes mais expostos a traumatismos (praticantes de esporte ou hiperativos, por exemplo).
RELATO DE CASO
Paciente de 12 anos, sexo masculino, previamente hígido, comparece à consulta com queixa de tumoração e dor na regiao superior e lateral da coxa esquerda, com cinco dias de evolução. Paciente e familiares não sabiam informar sobre possíveis fatores desencadeadores da lesão. Embora com prática regular de esportes, goleiro do time escolar de handball, o adolescente negava evento de traumatismo precedendo o aparecimento da lesão. Negava ainda antecedentes de distúrbios hemorrágicos ou uso de anticoagulantes. Sem quaisquer outras queixas associadas, tais como: febre, queda do estado geral, alteração do apetite.
Ao exame físico observou-se tumoração na regiao do trocânter maior do fêmur esquerdo, dolorosa à palpação, com diâmetro aproximado de 3,0 cm, sem contornos definidos, consistência amolecida e aspecto flutuante. A pele suprajacente apresentava coloração amarelo azulada.
Foi aventada a hipótese diagnóstica de lesão neoplásica, gerando extrema ansiedade nos familiares. Foi solicitada a ressonância magnética para esclarecimento diagnóstico.
O exame evidenciou área focal de hiperintensidade de sinal nas sequências sensíveis à água (Figuras 1 e 2), com sinal intermediário em T1 (Figuras 3 e 4) no subcutâneo na altura do grande trocânter femoral esquerdo medindo aproximadamente 1,2 x 1,3 x 0,5 cm e comprometendo pontualmente a tela subcutânea entre a superfície do trato iliotibial e a derme, sem coleção líquida encapsulada/organizada. Os ventres musculares glúteos e demais músculos da coxa mantinham as características normais preservadas. Elementos ósseos, articulação coxofemoral e feixes vasculoneurais sem alterações detectáveis pelo método.
Com base nos aspectos clínicos e de imagem foi diagnosticada lesão de Morel-Lavallée. Optou-se pelo tratamento conservador com regressão completa da lesão após quatro semanas de seguimento.
DISCUSSÃO
Embora rara, a lesão de Morel-Lavallée, decorrente da avulsão do tecido celular subcutâneo sobre a fáscia muscular com subsequente acúmulo hemolinfático e de tecido gorduroso necrosado no espaço formado, tem se tornado mais frequente na faixa etária pediátrica, em função da prática de esportes entre crianças e adolescentes. Infelizmente, a afecção é pouco conhecida pelos pediatras e a literatura referente à sua ocorrência em crianças é escassa.2
No caso relatado, ainda que o paciente fosse desportista e, portanto, mais exposto a traumatismos, o diagnóstico de LML não foi inicialmente aventado e a possibilidade de neoplasia foi considerada. O diagnóstico da LML foi possível pelos achados clássicos da referida afecção ao exame de ressonância magnética.
Em um terço dos casos de LML, os pacientes não se recordam de traumatismos e a história clínica deve ser muito minuciosa, garantindo-se adequada abordagem. Relatos de casos pioneiros correlacionam a ocorrência da LML em crianças a quedas e colisões automobilísticas associadas a fraturas pélvicas e de acetábulo. Entretanto, mais recentemente, a LML tem sido relacionada, por alguns autores, a pequenos, mas sucessivos, impactos durante a prática de esportes. Nesse contexto vale ressaltar a atuação do adolescente do caso relatado como goleiro de time de handball, sujeito, entao, a quedas repetidas da própria altura.
Mukherjee et al. 3 relataram um caso de um adolescente de 14 anos com massa de tecido mole no trocânter maior direito, de tempo de evolução desconhecida e sem passado de traumatismo. O diagnóstico da LML foi baseado unicamente nos exames de ultrassonografia e ressonância magnética.
O método padrao-ouro para o diagnóstico é a ressonância magnética da regiao afetada. Geralmente a lesão apresenta hipossinal nas imagens ponderadas em T1 e hipersinal nas imagens ponderadas em T2.4 Em alguns casos, a LML crônica pode evoluir com formação de cápsula fibrosa ou de septos em seu interior, podendo ter aspecto lobulado.
Mesmo quando há traumatismo prévio, a ressonância magnética pode ser essencial para o diagnóstico mais precoce da LML e imediata instituição terapêutica específica. Weiss et al.5 descreveram um caso de lesão de Morel-Lavallée na articulação do joelho em um paciente de 22 anos, cujo diagnóstico inicial havia sido de contusão do quadríceps e o tratamento específico postergado. Os autores concluíram que o atraso no tratamento da LML, em alguns casos, favorece o aumento do volume da lesão, a ocorrência de dor crônica e de infecções secundárias.
No caso em questao, na carência de história de traumatismo prévio, a hipótese diagnóstica inicial foi de neoplasia óssea. O temor do diagnóstico de doença maligna em um adolescente saudável causou extrema ansiedade nos familiares, que poderia ter sido poupado pelo maior conhecimento do pediatra em relação à possibilidade do diagnóstico de LML, mesmo na ausência de traumatismo prévio declarado. Outro dado a se considerar para a menor possibilidade de diagnóstico de neoplasia foi a rapidez com que a lesão surgiu (cinco dias de evolução), sua superficialidade nos planos anatômicos e seu aspecto de conteúdo flutuante. Classicamente, nos osteossarcomas, as lesões dolorosas têm mais tempo de evolução, são mais profundas e de consistência endurecida.6
O tratamento da LML varia conforme o volume da lesão.2 Quando as lesões são de reduzido volume, como do caso relatado, a conduta é expectante e conservadora. Algumas vezes, pode haver necessidade de intervenção cirúrgica, sobretudo em coleções serossanguinolentas de grandes volumes ou na eventualidade de encapsulamento da lesão. Estudo retrospectivo realizado em 2013 concluiu que coleções com volume de mais de 50 mL, com aspiração percutânea, tendem a recidivar. E preconiza a drenagem cirúrgica associada a dreno de sucção.5
CONCLUSÃO
A lesão de Morel-Lavallée, secundária a traumatismos, é relativamente rara em crianças e pouco conhecida pelos pediatras. Entretanto, com a prática de esportes cada vez mais comum entre as crianças e adolescentes, a LML tem sido mais frequente, tornando-se essencial que os pediatras estejam alerta para o diagnóstico dessa afecção. Assim, evita-se o retardo no seu diagnóstico e tratamento, bem como a inevitável ansiedade e sofrimento que podem ocorrer, no paciente e em seus familiares, quando se considera o diagnóstico diferencial de processo neoplásico maligno.
REFERENCIAS
1. Cheong SCW, Wong BST. Clinics in diagnostic imaging. Singapore Med J, 2016;50(11):45-9.
2. Eun Young Rha, Dae Ho Kim, Ho Kwon, Sung-No Jung. Morel-lavallee lesion in children. World J Emerg Surg. 2013; 8:60.
3. Mukherjee K, Perrin SM, Hughes PM. Morel-Lavallée lesion in an adolescent with ultrasound and MRI correlation. Skeletal Radiol. 2007;8(1):43-5.
4. Tresley J, Jose J, Saraf-Lavi E, Sklar E. Sacral Morel-Lavallée lesion: A not-so-rare diagnosis. Neurological J. 2014;27(6):755-8
5. Weiss NA, Jonhson J, Anderson SB. Morel-Lavallée lesion iniatially diagnosed as quadriceps contusion: Ultrasound, MRI, and importance of early intervention. West J Emerg Med. 2015;169(3):438-41.
6. Isakoff MS, Bielack SS, Meltzer P, Gorlick R. Osteosarcoma: current treatmentand a collaborative pathway to success. J Clin Oncol. 2015 Sept 20;33(27):3029-35
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