RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26. (Suppl.6) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20160052

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Educação Médica

Dinâmica de desenvolvimento do raciocínio clínico e da competência diagnóstica na formação médica - sistemas 1 e 2 de raciocínio clínico

The dynamics of the development of clinical resoaning (system 1 and 2) and diagnostic competence in medical training

Rachel Aparecida Ferreira Fernandes1; Cássio da Cunha Ibiapina1; Alberto Pena Pereira Timóteo2; Leandro Fernandes Malloy-Diniz3

1. Médico(a) Pediatra. Professor(a). Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina-FM, Departamento de Pediatria - PED. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Acadêmico do Curso de Psicologia. UFMG, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médico. Professor. UFMG/FM, Departamento de Saúde Mental-SAM. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Rachel Aparecida Ferreira Fernandes
E-mail: rachelhemato@gmail.com

Instituiçao: Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A expertise médica constitui um dos principais determinantes da qualidade da assistência médica prestada ao paciente. Desenvolve-se ao longo do curso de graduação e da capacitação profissional, dependendo tanto da aquisição de conhecimento quanto da forma como esses conhecimentos são utilizados quando da abordagem do caso clínico. Ao processamento dos conhecimentos acumulados para adequada aplicação na clínica é dado o nome de raciocínio clínico, que é categorizado, por alguns autores, como raciocínio clínico não analítico ou automático (sistema 1) e raciocínio clínico analítico ou reflexivo (sistema 2). O sistema 1, comumente utilizado nos casos rotineiros, caracteriza-se por requerer pouco ou nenhum esforço mental na solução do caso, sendo rápido e intuitivo. O sistema 2, por sua vez, utilizado para solução de casos menos comuns ou complexos, é elaborado, consciente e lento. Embora ambas as formas de raciocínio clínico sejam igualmente eficazes na solução dos casos, o médico deve estar capacitado para utilizar uma ou outra, de acordo com a sua própria experiência prática e com a complexidade do caso abordado, para garantir maior acurácia diagnóstica e melhor abordagem ao paciente.

Palavras-chave: Educação Médica; Sinais e Sintomas; Diagnóstico Clínico; Tomada de Decisão Clínica; Terapêutica; Qualidade da Assistência à Saúde.

 

INTRODUÇÃO

A competência diagnóstica constitui um determinante da qualidade da prática médica1 e está intimamente relacionada à aquisição de conhecimentos teóricos e práticos pelo profissional e à forma como esses conhecimentos estao organizados na sua memória e são acionados quando da solução de um caso clínico.2 A essa forma de organização mental e utilização dos conhecimentos médicos denomina-se raciocínio clínico.

É por meio do raciocínio clínico que o profissional define o diagnóstico e a conduta a ser tomada frente a um caso clínico. Essa conduta poderá promover a cura ou o alívio dos sintomas, se o diagnóstico estiver correto, mas poderá causar danos, incluindo a morte, se o diagnóstico for equivocado. Sabe-se que erros diagnósticos constituem substancial fonte de complicações evitáveis, determinando prejuízos clínicos e financeiros ao paciente, aos familiares e à nação3 e ocorrem em 5 a 15% dos casos.4

Evidências, produzidas em grande parte em estudos experimentais, deixam claro que o desenvolvimento do raciocínio clínico e a acurácia diagnóstica estao intimamente relacionados ao estágio de aprendizagem teórico-prática em que se encontra o aluno da graduação ou o profissional em aprimoramento.5,6 A expertise médica, entendida como competência diagnóstica, é, portanto, resultado de um processo dinâmico que se desenvolve com o tempo.

Embora individual, a evolução da capacidade de acerto diagnóstico de um estudante para a qualidade de expert ocorre, como será visto a seguir, numa sequência de fases ou estágios distintos2 que culminam na formação de dois modelos específicos de raciocínio clínico: o raciocínio clínico não analítico, baseado em reconhecimento de padroes e para solução de casos rotineiros; e o raciocínio clínico analítico ou reflexivo, utilizado para a solução de casos novos, pouco usuais ou complexos.7

Em ciência cognitiva, diversos autores argumentam sobre a existência de duas formas de processamento de informação - uma automática, implícita, heurística que demanda pouco ou nenhum esforço mental e outra analítica, explícita e baseada em deliberações.8,9 Tais processos são referidos na literatura como processos de tipo 1 e tipo 2, respectivamente.10 O processo diagnóstico tende a ser concebido como predominantemente relacionado aos processos deliberados. No entanto, como salientado por Crosskerry11, existem diversos processos automatizados que permeiam o raciocínio do clínico durante a avaliação de um paciente. Esses processos, em grupo, são chamados de disposição cognitiva para resposta e incluem diversos vieses de interpretação, como viés de disponibilidade (tendência a enxergar mais frequentemente um diagnóstico quando se trabalha mais com tais quadros clínicos) e o viés de confirmação (tendência a enxergar e concordar com o diagnóstico já atribuído a um paciente).

Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é descrever como se processa a dinâmica de desenvolvimento do raciocínio clínico e da competência diagnóstica na formação médica, apresentando os conceitos de sistemas 1 e 2 de raciocínio clínico.

 

FASES DE DESENVOLVIMENTO DA COMPETENCIA DIAGNOSTICA

Primeiros anos do curso médico

Durante os primeiros anos do curso médico, caracterizados pela aquisição de conhecimentos básicos em Medicina, os estudantes desenvolvem estruturas cognitivas que podem ser descritas como "redes causais", explicando causas e consequências das doenças em termos dos mecanismos biológicos e fisiopatológicos subjacentes.

Nessa fase inicial da formação, quando expostos a um caso clínico, os estudantes concentram sua atenção em cada sinal e sintoma de forma isolada, tentando explicar cada um deles separadamente em acordo com os conhecimentos básicos recentemente adquiridos. Não é possível o reconhecimento das relações existentes entre as manifestações clínicas apresentadas por um paciente e nem é possível relacioná-las a um determinado grupo de doenças.12 Assim, o processo de raciocínio clínico para a determinação de um diagnóstico específico é lento, trabalhoso e ineficaz.

Inserção do aluno na prática clinica

Com a inserção do aluno na prática clínica, ocorre uma mudança na estrutura desse padrao inicial do conhecimento médico. Paulatinamente, a rede causal de conhecimentos se torna "encapsulada" em rótulos diagnósticos ou modelos diagnósticos simplificados. No conhecimento encapsulado, embora o aluno utilize seus conceitos de relações causais fisiopatológicas para análise das manifestações das doenças, estes estao "submersos"2 e são utilizados de forma menos consciente. A avaliação das manifestações clínicas de um caso específico é feita de maneira mais integrada e relacionada às manifestações clínicas de quadros sindrômicos ou grupos de doenças.13 Claramente, verifica-se avanço na capacidade de elaboração de um diagnóstico, entretanto, assim como na fase mais inicial de formação, o processo ainda é moroso e de exaustivo esforço mental.

Incremento do treinamento do aluno

Com o incremento do treinamento clínico do estudante, constata-se mais uma mudança na forma de estruturação de seus conhecimentos. A exposição repetida a casos rotineiros e diversificados faz com que surjam e se acumulem na memória do médico em formação modelos simplificados de doença, similares a quadros descritos em livros-textos, como verdadeiros "scripts de doença".14 Esses "scripts de doença", guardados como em um arquivo de metal, contêm relativamente pouca informação sobre os mecanismos fisiopatológicos causais, porém são ricos em conhecimentos clínicos que relacionam um grupo particular de sinais e sintomas a uma determinada doença e às condições sob as quais essa doença pode emergir.2,7

Profissionais com mais experiência clínica

A medida que se somam novas experiências clínicas às experiências prévias, os "scripts de doença" passam a conter não apenas informações sobre os achados clássicos que são esperados em pacientes com determinada doença, mas também variações individuais possíveis em relação à apresentação típica dessa doença. Assim, profissionais com mais experiência clínica têm vasta e diversificada coleção de "scripts de doença".7,14

Com os "scripts de doença" formados, ao se defrontar com um caso, o médico é capaz de reconhecer padroes clínicos e de correlacioná-los com um ou mais dos "scripts de doença" que tem arquivado em sua memória. A determinação final do diagnóstico correto dependerá da experiência do profissional e da complexidade do caso e poderá se concretizar de forma imediata e automática (raciocínio clínico não analítico ou sistema 1) ou de forma mais lenta, analítica e reflexiva (raciocínio analítico/reflexivo ou sistema 2)7, descritas a seguir.

 

RACIOCINIO CLINICO NÃO ANALITICO (SISTEMA1) E RACIOCINIO ANALITICO/REFLEXIVO (SISTEMA 2)

Como visto, para se tornar um expert o estudante de Medicina deve passar pelo processo de aquisição de conhecimentos e ter oportunidades repetidas de aplicá-los na prática. Ao longo da sua formação, o profissional deve ser exposto a um número cada vez maior de pacientes, para criar e ampliar progressivamente o seu arquivo mental de "scripts de doença", contemplando não só os casos de apresentação clássica como as possibilidades de variações clínicas individuais da doença.2

O Sistema 1 ou raciocínio clínico não analítico

Com vasto arquivo de scripts de doença formado, quando da abordagem de um paciente, o profissional mais experiente já nos primeiros minutos da consulta percebe "pistas" na história clínica do paciente, que imediatamente ativam um ou mais "scripts de doença" arquivados e geram uma ou mais hipóteses diagnósticas. A partir daí, a investigação de novas informações clínicas e/ou de exames complementares será objetiva e direcionada para reforçar ou descartar a(s) hipótese(s) diagnóstica(s) inicialmente considerada(s). Essa estratégia de raciocínio clínico por "reconhecimento de um padrao" é automática, intuitiva, inconsciente e rápida. A repetição e a formação de hábitos facilitam a automatização do raciocínio e sua ocorrência em ocasioes futuras.

Embora o sistema 1 seja altamente eficaz na solução de casos rotineiros ou clássicos, ele pode predispor a erros em determinadas situações.15 Raciocínios clínicos equivocados derivados de vários tipos de vieses cognitivos têm sido extensamente associados, na literatura médica, ao raciocínio não analítico. Alguns autores demonstram que erros diagnósticos podem estar associados, por exemplo, ao excesso de confiança do profissional no uso do sistema 1.16

Sistema 2 ou raciocínio analítico ou reflexivo

Para a solução de casos considerados complexos, quer seja pela parca experiência do profissional ou pela variação das manifestações clínicas que fogem ao padrao clássico da doença, a elucidação diagnóstica exige mais participação de processos relacionados ao sistema 2, ou seja, uma forma de raciocínio clínico mais trabalhoso, elaborado e consciente. Os processos do tipo 2 são a base de nosso comportamento intencional e por isso estao relacionados às funções executivas. Eles envolvem o estabelecimento de um objetivo, seleção de hipóteses, avaliação das mesmas, implementação de procedimentos e monitoramento dos mesmos ao longo do tempo.

No raciocínio clínico analítico/reflexivo, diagnósticos diferenciais são sempre considerados e a escolha do diagnóstico mais provável, entre os considerados, dependerá de análise criteriosa e exaustiva, em busca de evidências clínicas que favoreçam ou refutem cada um deles.

Embora laborioso e lento, existem evidências de que o sistema 2 pode evitar erros, pelo menos em algumas circunstâncias. Quando residentes em Clínica Médica foram solicitados a solucionar problemas clínicos complexos, o uso de uma abordagem reflexiva estruturada levou à melhor performance, quando comparada ao uso do raciocínio clínico não analítico sistema 1.17

Apesar de ser didática a ideia de explicar o processo do raciocínio clínico a partir da teoria dos sistemas 1 e 2, acredita-se que na prática frequentemente esses sistemas trabalhem em paralelo e interagindo entre eles.18 O sistema 2 é capaz de monitorar a qualidade das respostas do sistema 1 e pode, dessa forma, corrigir os erros de intuição.

Portanto, parece essencial que o médico desenvolva a habilidade de usar ora o raciocínio clínico automático ora o reflexivo, de acordo com a necessidade de cada caso, garantido maior acurácia diagnóstica e assistência de qualidade ao paciente.19

 

CONCLUSÃO

As decisões médicas envolvem diferentes processos cognitivos que atuam de forma paralela, podendo facilitar a prática clínica assim como propiciar ao clínico erros de interpretação. Além do conhecimento teórico-metodológico, a formação do médico deve fomentar a compreensão dos mecanismos de processamento de informação que influenciam o processo decisório. Tal compreensão é de crucial relevância para a aquisição de conhecimentos e prática clínica do estudante ou profissional de Medicina.

 

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