ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Riscos do subdiagnóstico da demência em condutores de veículos
Risk of dementia misdiagnosis among car drivers
Ulisses Gabriel de Vasconcelos Cunha1; Débora Pereira Thomaz2
1. Coordenador da Residência Médica em Geriatria do Hospital dos Servidores do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Geriatra. Hospital dos Servidores do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil
Ulisses Gabriel de Vasconcelos Cunha
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30130-008
Email: ugvc@terra.com.br
Recebido em: 09/06/2010
Aprovado em: 16/03/2011
Recebido em: 09/06/2010
Aprovado em: 16/03/2011
Instituição: Hospital dos Servidores do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
A demência e outros distúrbios cognitivos aumentam o risco de acidente automobilístico duas a seis vezes. A identificação de idosos portadores de demência que não mais mantêm a capacidade de direção veicular segura constitui crescente preocupação em saúde pública. Os condutores com déficit cognitivo devem ser identificados precocemente, antes que se envolvam em acidentes. Determinar a habilidade do indivíduo para a direção veicular segura constitui um desafio. No nosso meio não foi possível acessar informações acerca do número de indivíduos com 60 ou mais anos que se habilitam pela primeira vez e/ou que renovam a sua carteira de habilitação. Assim, é desconhecido o número de indivíduos com 60 anos ou mais que mantêm a direção veicular. Não há, também, até o momento, avaliação padronizada básica de função cognitiva realizada por psicólogos e/ou médicos nas diversas clínicas de exame de aptidão física e mental para condutores e candidatos a condutores de veículos automotores. De modo que, possivelmente, muitos portadores de demência não são identificados. Esta revisão objetiva alertar para a importância do diagnóstico precoce das demências a partir de testes básicos de avaliação cognitiva a todos os candidatos e/ou condutores de veículos com 60 anos ou mais.
Palavras-chave: Demência; Idoso; Veículos Automotores; Condução de Veículo; Acidentes de Trânsito; Exame para Habilitação de Motoristas.
INTRODUÇÃO
A direção veicular é função complexa que requer a integração dos órgãos sensoriais, da função cognitiva e da atividade psicomotora. Os condutores devem, de forma contínua, perceber as mudanças no seu meio, tomar as decisões baseadas nessas percepções e executar as respostas apropriadas. Essas funções podem estar precocemente afetadas nas demências.
A demência e outros distúrbios cognitivos aumentam o risco de acidente automobilístico duas a seis vezes.1
A identificação dos idosos portadores de demência, que não mais mantêm a capacidade de direção veicular segura, constitui crescente preocupação em saúde pública.2
Os condutores com deficiência cognitiva devem ser identificados precocemente, antes que se envolvam em acidentes. Constitui desafio constante a determinação da habilidade do indivíduo para a direção veicular segura.
Vários consensos internacionais3-6 sugerem que a direção veicular se torna impeditiva diante de demência moderada a grave.
Trobe et al.7 mostram que pessoas com demência leve não exibem taxas de acidentes automobilísticos mais altas que os condutores sem deficiência cognitiva, o que não justificaria, a princípio, a interrupção da direção veicular.
No nosso meio não foi possível acessar informações acerca do número de indivíduos com 60 anos ou mais que se habilitam pela primeira vez e/ou que renovam a sua carteira de habilitação. Assim, é desconhecido o número de indivíduos com 60 anos ou mais que mantêm a direção veicular.
Não há, também, até o momento, avaliação padronizada básica de função cognitiva realizada por psicólogos e/ou médicos nas diversas clínicas de exame de aptidão física e mental para condutores e candidatos a condutores de veículos automotores. De modo que, possivelmente, muitos condutores portadores de demência não são identificados.
METODOLOGIA
A pesquisa bibliográfica foi realizada na base de dados Medline por meio do Pubmed. O período de pesquisa restringiu-se aos trabalhos publicados a partir de 1988. Foram usadas na introdução do assunto publicações mais antigas para a abordagem, principalmente de sinais e sintomas, diagnóstico e epidemiologia das demências. Foram selecionados 25 artigos. As palavras-chave que nortearam a busca foram: driving, dementia, elderly, crashes. O idioma inglês compôs a base de referência.
DISCUSSÃO
A demência constitui-se em síndrome caracterizada pela deterioração das funções mentais no paciente que mantenha a consciência. É processo progressivo e, ocasionalmente, reversível8, interferindo no desempenho das atividades da vida diária, laborais e sociais.
A demência de Alzheimer (DA) é, usualmente, a forma mais frequente, seguida pelas demências vascular (DV) e mista (combinação da DA e da DV). Outras demências irreversíveis menos prevalentes incluem a demência frontotemporal e a demência por corpos de Lewy.
As taxas estimadas de incidência e de prevalência para a DA, segundo o Estudo Longitudinal de Baltimore (1958-1978), demonstram que a sua incidência aos 60 anos é de 10% e dobra a cada cinco anos, com prevalência aumentando geometricamente a partir dos 60 anos e ultrapassando os 50% aos 95 anos de idade.9 No Brasil, estudo realizado em Catanduva10, São Paulo, informou prevalência de demência de 7,1%. A DA, a DV e a DA associadas à DV foram responsáveis por 54,1, 9,3 e 14,4%, respectivamente.
Existem três tipos básicos de manifestações da demência que podem variar de um indivíduo para outro:
Alterações cognitivas;
manifestações neuropsiquiátricas;
perda da capacidade de realizar as atividades de vida diária.
As manifestações cognitivas mais comuns são caracterizadas pelas alterações na memória, linguagem, funções executivas e capacidade de integração visõespacial. A direção veicular sem a competência visõespacial, por exemplo, torna-se difícil ou impossível.11
A deficiência visuoespacial é frequentemente detectada nos estágios iniciais e intermediários da DA. Os pacientes podem se perder em locais familiares, pode ocorrer desorientação espacial e incapacidade para operar máquinas complexas como veículos automotores.
É crescente a preocupação em saúde pública de identificar idosos com demência incapazes de manter a direção veicular de maneira segura.12
Os condutores com deficiência cognitiva devem ser identificados antes que se envolvam em acidentes. No entanto, existem dificuldades, já que as doenças demenciais, especialmente a DA, surgem de forma insidiosa. Além disso, as pessoas afetadas usualmente não se reportam ao médico em estágios iniciais e, se o fazem, nem sempre é identificada a deficiência cognitiva inicial.
A determinação da habilidade do indivíduo para a direção veicular constitui cada vez mais um desafio para os que lidam com pacientes com demência.
A perda da carteira de habilitação pode implicar consequências importantes. Manter a direção veicular equivale a ter independência e liberdade bem como manter acesso social e em atividades de lazer que constituem importantes fatores que previnem o isolamento de idosos. Constitui, ainda, fator de risco independente, diminuindo a chance de institucionalização13 e de depressão.14,15
Existem evidências de que os condutores idosos se envolvem em acidentes fatais de forma desproporcional comparado a condutores adultos; e isto se deve basicamente a dois fatores:
Aumento da taxa de acidentes por quilômetro dirigido;
aumento na taxa de fatalidade desses acidentes.16
Outra hipótese provável, no entanto, seria a deficiência cognitiva não detectada.
Os resultados de exames neuropatológicos de 98 condutores com 65 anos ou mais, mortos em acidentes de trânsito na Suécia e na Finlândia, enfatizaram que 33% deles preenchiam critérios diagnósticos definitivos para DA à autópsia e que outros 20% tinham achados sugestivos de DA. É possível que 47 a 53% dos condutores mortos apresentassem DA inicial.2 A prescrição comum de drogas psicotrópicas (antidepressivos, antipsicóticos, benzodiazepínicos) a pacientes com demência constitui, ainda, fator adicional agravante em aumentar o risco de acidentes automobilísticos até aproximadamente 50%.17-19
Existem fortes evidências de que a DA se associa à incapacidade progressiva na capacidade de direção veicular.20
Esses pacientes manifestam alguns comportamentos que os colocam em risco aumentado:
Dirigir em baixa velocidade inapropriada;
erros mais frequentes em cruzamentos;
reduzida atenção a outros condutores;
mais dificuldade no controle da pista;
freadas mais frequentes e sem explicação.
O estudo longitudinal de Duchek et al.21 forneceu evidências acerca do declínio na performance na direção veicular, que ocorre ao longo do tempo em pacientes com DA inicial.
A maioria dos condutores portadores de DA foi julgada impedida para a direção veicular em primeira avaliação ou em seguimento após dois anos. Isto é consistente com estudos observacionais22 que demonstraram que condutores com DA interrompem a direção veicular dentro dos primeiros três anos do diagnóstico, presumivelmente pela inabilidade de fazê-la com segurança. Esse estudo demonstrou que pacientes com demência em estágios iniciais requerem avaliação da sua capacidade para a direção veicular assim como reavaliações mais frequentes.
Comparado a condutores de meia-idade, os condutores idosos são três vezes mais propensos a se envolverem em acidentes por quilômetro dirigido com risco de morte três vezes mais alto, como consequência direta desses acidentes.23,24 Contudo, existe tendência a que os condutores idosos utilizem menos o veículo, dirijam em velocidades menores, evitem as viagens noturnas e restrinjam a direção veicular quando se sintam inseguros, o que resulta em risco similar de envolvimento em acidentes comparado a condutores de meia-idade.
No entanto, esse comportamento protetor pode não ser observado nos portadores de deficiência cognitiva que podem persistir na direção veicular mesmo que de forma insegura.25 Considerando que a DA afeta a autocrítica, as pessoas com demência não reconhecem as próprias limitações e existem evidências de que aquelas com perda funcional e/ou de suas habilidades físicas não restrinjam a direção veicular.
Vários grupos de consenso internacionais3-6 sugerem que na demência moderada a grave a direção veicular se torna impeditiva. Os pacientes com alterações na memória a curto prazo, desorientação têmporo-espacial e perda do julgamento certamente não estão mais aptos para a direção veicular.
Alguns estudos referem que pessoas com demência leve não apresentam taxas de acidentes automobilísticos mais altas que condutores sem deficiência cognitiva, o que não justifica a interrupção da direção veicular. Para esses condutores, esses autores sugerem que reavaliações mais frequentes com pro-vas práticas realizadas por profissional de saúde são a maneira mais apropriada para se avaliar a aptidão para se manter a direção veicular.7,26
Vale ressaltar, no entanto, que embora muitos condutores portadores de demência inicial possam manifestar desempenho adequado em situações rotineiras, o mesmo já não acontece em situações que são menos previsíveis, precisamente aquelas em que ocorrem os acidentes.
Essas evidências indicam que, em nosso meio, em especial pelas dificuldades de vigilância a esse grupo de pacientes, a direção veicular deve ser impedida a partir do momento em que se faça o diagnóstico de demência, independentemente da etiologia, mesmo que em fase inicial.
As sugestões propostas por Trobe et al.7 e Rebok et al.26 de se manter a direção veicular para pacientes com demência inicial desde que sejam monitorados com reavaliações frequentes não se aplicam à nossa realidade.
CONCLUSÃO
O envelhecimento populacional, apesar de ser conquista da sociedade, gera várias preocupações, uma delas sobre a condução de veículos automotores por idosos.
A demência constitui doença tipicamente da idade avançada, que prejudica sobremaneira a capacidade de direção veicular segura, aumentando o risco de acidente automobilístico. À medida que a população envelhece, espera-se que o número de condutores de veículos automotores com demência aumente progressivamente.
Esta revisão objetiva chamar a atenção para a necessidade da detecção precoce de condutores de veículos portadores de deficiência cognitiva, evitando-se alto risco de acidentes automobilísticos.
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