RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26. (Suppl.5)

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Artigo Original

Ensaios de acolhimentos a família doadora de órgaos e tecidos para transplante

Tests warm welcomes family donor organ and tissue for transplant

Aline Luiza de Carvalho

Psicológa. Doutoranda em Psicologia PUC/MG. Psicóloga Clínica. Fundaçao Hospitalar do Estado de Minas Gerais - FHEMIG, Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Aline Luiza de Carvalho
E-mail: al.carvalho@bol.com.br

Apoio FAPEMIG.

Instituiçao: Hospital e Pronto Socorro Joao XXIII / MG Transplantes Fundaçao Hospitalar do Estado de Minas Gerais - FHEMIG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

As mudanças que ocorrem no âmbito da saúde em ações na busca da qualidade de vida da sociedade têm sido constantemente repensadas e descobertas. Tais inovações podem ser vistas principalmente no sucesso dos resultados pós-transplante, bem como no aumento mundial do número de desse tipo de intervenção. Em Minas Gerais, a Central que coordena as ações do Estado traz como proposta a captação de órgaos e tecidos, o trabalho de capacitação de profissionais e acolhimento dos familiares dos pacientes doadores. Durante as escutas dessas pessoas, algumas questoes foram expostas, tais como a necessidade de atenção neste processo de luto ao atendimento oferecido, bem como as expectativas dos parentes ante a doação em que descrevem suas fantasias e anseios frente à dualidade da perda e a continuidade da vida que se proporciona. Diante do exposto, este artigo busca, por meio de uma história elaborada com a condensação de falas comuns a familiares, indicar sentimentos e interpretações durante o processo de doação.
MÉTODOS: As informações são resultados das observações em diário de campo realizadas após os primeiros contatos com familiares entrevistados para doação de órgaos durante o ano de 2015 quando foram realizadas 58 contatos.
CONCLUSÕES: Observou-se que os familiares baseiam suas decisões sobre a doação considerando o desejo do paciente doador em vida ou subjetivações do sujeito ou das suas experiências de perda.

Palavras-chave: Doação de Orgaos e Tecidos; acolhimento; família; Morte Encefálica.

 

INTRODUÇÃO

Para os profissionais que lidam diariamente com atividades que envolvem o tema "morte" observa-se constante tensão ante o serviço prestado e as demandas emocionais que ocorrem, porém é admirável quando há profissionais preparados que podem oferecer meios de conforto e acolhimento durante esse processo. Esta possibilidade permite que os pacientes e familiares deem vazao a demandas comuns deste momento.

Nos estudos de Ariès1, as mudanças de padroes de comportamento social são notáveis: saem de um aspecto sócio familiar, para uma perspectiva privada, dentro de um ambiente hospitalar, com profissionais que buscam incansavelmente a manutenção da vida do paciente. Esta mudança de certo traduz a forma contemporânea de lidar dificultosamente com a dor e com os sinais que trazem a luz a limitação existencial dos indivíduos, a exemplo da morte.

Kovácks2 e D'Assumpção et al.3 também trazem em diversas publicações estudos que apontam dificuldades não só para os familiares, mas também a profissionais da saúde que precisam lidar e conviver com diversas experiências de perda, contatando constantemente as próprias limitações, medos e representações sobre a morte. Prepará-los, com isso, torna-se de suma importância para uma atuação pertinente as perspectivas do trabalho. Profissionais orientados, acolherao seus pacientes e familiares para que compreendam e dêem novo significado a doença e as perdas mais adequadamente possível.

Estar disponível e atento para auxiliar os familiares emocionalmente na elaboração da perda, ao mesmo tempo, apoiá-los diante da responsabilidade de escolha sobre a autorização para retirada dos órgaos com fins de transplante deve ser especialmente avaliado e, se possível, acompanhado a fim de ajudá-los na consciência da decisão e repercussões futuras. É neste momento, do acolhimento, que o preparo do profissional ajuda na real consciência de todos os acontecimentos, facilita a apresentação das expectativas, emoções, lembranças e sentimentos que nortearao a conversa familiar e serao relevantes para a justificar suas decisões.

Trabalhar em um setor responsável pela regulação de transplantes no Estado de Minas Gerais, traz a responsabilidade de acolher constantemente esta demanda, assim como a possibilidade de contatar com várias histórias de perdas, os limiares entre a dor e a alegria solidária, a desesperança e a esperança, assim como as diferentes formas de relação com a morte.

Diante dessa complexa realidade e das repercussões desse momento, propoe-se com este artigo refletir sobre as justificativas e expectativas dos parentes quanto à decisão de doar órgaos e tecidos nos dias atuais, além de apresentar alguns dos principais relatos durante o processo de captação e enfatizar o acolhimento proporcionado pelos profissionais ao público apresentado.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo retrospectivo realizado por meio condensação de falas comuns a familiares entrevistados por profissionais do MGTransplantes no último ano, em 2015, período o qual foram acolhidos familiares que receberam a notícia de morte encefálica de parente e da possibilidade da doação de órgaos. Foram consentidas cinquenta e oito autorizações para doação e anotados em diário de campo, as principais justificativas e explanações familiares sobre a decisão tomada naquele momento.

O diário de campo ainda é um recurso pouco comum para a área de saúde, porém bastante útil para iniciar pesquisa, organizar dados e ideias sobre o que o pesquisador se interessa. Segundo Symon4 e Alaszewski5, eles podem ser utilizados para registros variados (descrição de emoções, sentimentos, comportamentos, eventos ou interações) em período específico. Nele, a pessoa pode administrar dados de seu interesse com certa regularidade, em momentos específicos vivenciados pelo pesquisador e que contenham dados de interesse para ser analisados de forma peculiar a este.

Com este instrumento, anotei as falas e ideias que demonstravam as motivações que mais apareciam durante as entrevistas com os familiares de potenciais doadores de órgaos. Com elas pude concentrá-las em categorias que explanarei posteriormente a exemplo da categoria tempo, opiniao do paciente em vida, crenças e atendimento hospitalar anterior.

Apesar deste artigo não se encaixar em estudo de casos por não se tratar de análise de entrevistas específicas, mas sim do interesse pessoal de compreender as motivações comuns para a decisão pela doação de órgaos, foi submetido projeto de pesquisa aos Comitês de Ética e Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG e da FHEMIG, ambos aprovados com o parecer de número 1.628.336 que permitirá pesquisar ainda mais a fundo o tema em doutoramento.

Será apresentada entao a história do doador Luís, um personagem fictício elaborado para condensar as falas comuns e contextualizar as situações as quais ocorreram, mas que exemplificam situações, dúvidas, emoções e relações durante as entrevistas realizadas por mim e por outros profissionais do mesmo setor que vivenciaram situações semelhantes as descritas no diário de campo.

 

CASO LUIS

Logo no início do plantao, o setor foi informado pelos colegas profissionais do Centro de Tratamento Intensivo - CTI de um hospital da regiao metropolitana de Belo Horizonte o interesse da família na doação de múltiplos órgaos do jovem Luís - de 23 anos de idade, vítima de traumatismo cranioencefálico (TCE) por acidente automobilístico. O paciente tinha dado entrada há três dias no hospital e no segundo dia de internação, foram iniciados os procedimentos para avaliar a atividade cerebral e o protocolo de morte encefálica do jovem, além do estado de saúde, definindo-o naquele dia como um potencial doador.

Após a confirmação e a informação aos familiares, os profissionais (Médico e Psicólogo) apresentam-se a fim de iniciar o primeiro contato. A família foi orientada e acordou a doação, mas logo começou a demonstrar certo desconforto diante da demora do processo cirúrgico - início e término - e da prorrogação do funeral, prolongando ainda mais o tempo de espera, o cansaço e a dor a qual relatavam sentir. Diante das orientações passadas quanto a todo o processo, aceitaram o procedimento, mas logo a seguir expuseram a questao do tempo como o principal dificultador para estender o processo caso fosse necessário. Poucas horas depois, as equipes médicas realizavam a cirurgia e a família doadora, em sua casa, era acompanhada pelo psicólogo do plantao.

Antes do final da cirurgia de retirada dos órgaos, e dentro do prazo médio estipulado, a mae do jovem Luís, a qual chamaremos de Ana, ligou para o setor em buscar de informações sobre o término da cirurgia. Relatou que estavam angustiados para realizar brevemente o velório. Ao tentar passar as orientações para que ela se tranquilizasse com a pontualidade, a mae se queixou do desespero do seu filho mais novo, irmão de Luís, e do pai, nomeado aqui de Joao.

Ana relatou que estava processando a ideia do distanciamento e "aceitando a morte do filho" com relativa tranquilidade, afinal de contas "são coisas que só Deus explica". Demonstrava em sua fala uma compreensão e aceitação relativa da perda de seu filho diante de tanta dor?

A opção pela doação geralmente é bem descrita em palavras como as utilizadas pelos familiares de Luís como uma forma de "acalentar a dor e prolongar a vida de outras pessoas que estavam sofrendo por tempos por uma falha do corpo que não as deixam viver bem", e estar "dando a vida a outras pessoas" (sic). A medida que conversava, por telefone, tentava avaliar se realmente a mae compreendia a perda deste filho ou se apresentava uma defesa para negar tal informação. Ao final da ligação, ela tomou coragem para dizer da dificuldade de acalmar o marido, inconformado com a perda. Solicitei, entao, caso fosse de seu interesse, uma breve conversa para que pudesse tirar algumas dúvidas e acompanhá-lo ao que necessitasse.

Sem receio, Joao atendeu e logo demonstrou sua angústia com o embargo na voz, certo atordoamento, choque pela perda do filho e, em decorrência disso, a dificuldade em aceitar esta perda. Falava da sua experiência de ser pai, das boas lembranças com o filho, da dor que estava sentindo e da imagem que gostaria que todos (familiares, amigos, colegas de trabalho) guardassem das boas ações dele. Joao tinha visto o filho pela última vez no hospital e esta decisão gerava uma angústia ainda maior de "ter que esperar para estar ao lado do filho pela última vez", "quero acabar logo com essa dor, enterrar logo".

Demonstrava estar bastante impressionado com a última cena do filho e solicitava que "cuidássemos bem dele", principalmente do seu rosto, pois "as pessoas deveriam vê-lo como antes, um bom rapaz". Nota-se que a última imagem até aquele momento tinha marcado significativamente a sua memória e destoava de tudo aquilo que tinha construído desde o seu nascimento. A partir deste momento, começou a apontar que "é uma decisão que ia agradar o filho, ele é um menino do bem e ficaria feliz por ter ajudado pessoas".

Joao relatou que seu filho nunca falou do interesse em doar órgaos, mas pela ideia apresentada sobre o Luís, seus comportamentos solidários, grande afetividade com os seus familiares e amigos o faz crer que a decisão pela doação de órgaos reflete a escolha que teria feito caso pudesse responder ainda em vida.

Neste momento, observa-se que a questao tempo é um fator preponderante para que considerasse a cancelar a doação quando aponta a espera pelo processo cirúrgico o traz ainda mais angústia e dor, porém receia não satisfazer o desejo do filho e a decisão o proporciona, de maneira simbólica, continuar em parceria com o Luís, respeitando o que compreende "ser seu último desejo". Continuamos a conversa com seus relatos sobre a relação com o filho e suas lembranças.

A aproximadamente uma hora de diálogo ao telefone, Joao agradeceu o apoio e fez a solicitação de que pudesse conhecer os receptores dos órgaos doados, recebendo, neste momento, as mesmas orientações passadas pela equipe do plantao anterior de que não poderíamos identificar os receptores. Foi acolhido, mas logo expressei as limitações e as dificuldades que encontrariam em relação ao seu desejo naquele momento.

Expressa estar contente de que o coração do filho estará ajudando a outra pessoa e que "meu filho estará vivo em alguém". "de lá de cima", ele ficará feliz" além da ideia de que Deus acolherá pelas benfeitorias que ele fez em vida e pela última ajuda com a doação de órgaos.

 

DISCUSSÃO

Não se pode pensar em doação de órgaos, sem considerar aspectos socioculturais sobre a morte. Estudos como realizados por Aries1, Elias6 e Freire7 trazem descrição e análises sobre as mudanças culturais frente a esta temática. Eles enfocam mudanças de comportamento importantes, as vezes até contraditórias que dificultam a elaboração simbólica social e pessoal: o que antes era socialmente partilhado e expressado afetiva e emocionalmente, a partir do século XX, é escondido em zonas periféricas da vida social a exemplo das casas de apoio, hospitais e dos asilos.

Sem o objetivo de aprofundar a análise das mudanças neste artigo, temos que atentar a características sociais que traduzem as dificuldades contemporâneas. Decerto, a sociedade atual traz características bem específicas operadas pela necessidade de consumo, liberdade e ideais de felicidade sustentados por outros ideais que mascaram muitas outras contradições sociais, a exemplo das relações amorosas, comportamentos que deterioram a saúde e a própria desvalorização/interdição da morte.

A morte hoje está exilada da vida social o que dificulta a sair de uma experiência de grande transtorno e a qual se busca evitar. Este comportamento impossibilita transformar uma experiência simbólica e subjetiva importante que possibilitaria o desenvolver-se dentro de um processo de elaboração conceitual e subjetivo. Não havendo o contato, não há possibilidade de trocas, de conhecer e assim, o vazio e a tensão que se estabelecem.

Os hospitais que eram apontados por estes e outros autores como responsáveis pela manutenção biológica do moribundo, com as demandas e os encargos que lhes foram impostos, começam a preocupar-se com as dificuldades do luto familiar e do paciente, com a ausência do preparo e de sentido que isso representa, principalmente quando ela impoe sua presença inesperadamente.

Não é raro que durante a realização do protocolo de morte encefálica profissionais da medicina sintam-se receosos em realizar exames diagnósticos com este fim, assim como de explicar de forma segura e tranquila aos familiares o processo. Por isso, durante todo o processo, os profissionais do transplante precisam estar disponíveis para esclarecimentos e apoio a ambos.

O caso Luís traz algumas falas que nos remetem a alguns dos medos, receios, angústias que cercam a compreensão do processo diagnóstico e ideias existenciais sobre a morte, particularmente as repercussões da perda para o grupo. O que não foi discutido, pensado ou sequer imaginado, certamente encontrará maior dificuldade de compreensão e estabelecerá maior angústia entre eles. O interesse central com isso, é integrar uma qualidade existencial de quem antecipa a própria morte, como aponta Verdade8, mas também trazê-la aos que observam a sua chegada.

A experiência em setores como UTI, CTI ou transplantes, traz este tipo de experiência de maneira constante. Este último, mais especificamente, depende de que o diagnóstico de morte esteja estabelecido e comunicado para realizar o seu papel. Entao como estabelecer uma relação menos aflitiva entre os profissionais das centrais de transplante e os familiares de potenciais doadores de órgaos entrevistados?

Sabe-se que cada pessoa responde de maneira peculiar às situações de medo, perda, estresse e conflitos de toda ordem, o que não a faz diferente no momento em que adoece ou morre, trazendo consigo uma representação simbólica para cada vivência. Certamente, a forma de existir, de se relacionar, os papéis, as expectativas sociais e próprias, os desejos, as fantasias vao corresponder às ações em cada situação.

As falas dos familiares traduzem o nível de angustia que estao sentindo e isso não se apresenta de maneira uniforme, mas individualmente traumática e intensa. Deste modo, a preocupação com a saúde mental e o apoio emocional são necessários para os que conviviam com o paciente e que lidam com a terminalidade naquele momento.

Estudos sobre abordagem e entrevistas familiares a exemplo das realizados por Dell Agnolo, Belentani, Zurita, Coimbra e Marcon8, além de Sadala9, apontam que a atenção hospitalar prestada aos familiares e ao paciente, bem como uma assertiva comunicação de morte atendem as angústias e criam condições favoráveis de relações entre profissionais e usuários, amenizam as angústias e trabalha as concepções subjetivas sobre o momento. Ações como estas abrem espaço para discussões abertas e claras sobre os sentimentos de perda, ideias sobre terminalidade e compreensões sobre diagnóstico de morte encefálica e, com isso, dispoes aos entes de pensar sobre o processo de doação de órgaos.

No acolhimento é de suma importância que se observe as reações e relações que se estabelecem com a notícia, seja com o profissional assim como ao que se estabelece entre os familiares. O luto e as reações emocionais se manifestarao de formas diversas e será afetada pela forma como ocorreu, a ligação afetiva com o ente ou mesmo se o apoio social que possui no momento.

Se o ambiente de internação propicia acolhimento adequado, estabelecido por um contato seguro e esclarecedor, dá condições para considerar atitudes solidárias no momento de dor aos parentes, bem como a possibilidade de ações a favor da vida e da saúde do próximo como nos casos da doação de órgaos. Este aspecto está entre os principais a serem lembrados pelos familiares quando são entrevistados sobre o processo de autorização para doação de órgaos.

Se a comunicação sobre a morte tiver se estabelecido de maneira clara e objetiva, o mesmo deve continuar com a equipe que fará a entrevista. O ambiente deve ser propício a exposições sobre dúvidas sobre específicas do caso, assim como facilitador para a compreensão do diagnóstico de morte encefálica, os cuidados prestados após a avaliação e aspectos que sejam de interesse sobre os procedimentos possíveis naquele momento.

As falas dos familiares no momento da entrevista de autorização para doação de órgaos trazem seus conhecimentos sobre o assunto, geralmente superficiais ou inexistentes, além do sentido que a decisão pode provocar a si, aos outros parentes e a pessoas que podem receber os órgaos. Uma decisão baseada nas construções existenciais de cada pessoa, em um momento doloroso de perda, mas que repercute simbolicamente na elaboração da morte de todos os envolvidos.

O fator tempo é outro ponto constante e firmemente apresentado nos momentos da entrevista: "demora demais, a gente já está muito cansado", "queremos acabar logo com isso, e enterrar logo", são algumas das expressões apresentadas por eles para que os profissionais possam compreender a dificuldade que têm em decidir em consentir pela doação.

Observa-se que pensar que ao adiantar o funeral será uma forma de dar fim a angústia que os envolve no momento, é de certa maneira negá-la como um acontecimento universal e natural, e uma tentativa simplificá-la como um acontecimento de sentimentos provisórios e controláveis. Neste sentido, aos depararmos com justificativas que tentam poupar o estresse e do cansaço, a exemplo da variável tempo, decerto estaria aí um motivo significativo da discordância entre parentes ou mesmo o não consentimento.

A desordem que se estabelece com a morte, dissocia muitas vezes as ações das ideias, das coisas ou sentidos. É comum e até previsível que isso aconteça, pois refletem os valores e referências atuais sobre o assunto como já foi abordado anteriormente. Ressalta-se com isso que, quanto melhor orientados e acolhidos, maior o a compreensão de sentido e segurança da disposição familiar.

Verdade10 traz que "se a fala da alma é ignorada ou desmerecida, perdas na qualidade da vida mental e social são muito profundas", portanto fica difícil de descobrir as suas referências e reconstruir as ideias estabelecidas e promover mudanças sem atentar-se a isto. Deste modo, o acolhimento adequado deve proporcionar uma escuta dos sentidos e promover um momento de reflexão ante as ideias estabelecidas e realidade que se apresenta.

Outro aspecto importante que apresentam nas entrevistas são as crenças e a religiao. Kovácks2 e Freire7 apontam, junto com os familiares entrevistados, que é nela que muitas vezes encontram forças, valores e princípios que os sustentam ou acalentam suas dores. Na fé de algo que eles encontram um sustento a questoes que a ciência ainda não conseguiu esclarecer. É por meio dela que as pessoas fortalecem sua decisões: "de lá de cima, ele ficará feliz. É uma decisão que ia agradar o filho, ele é um menino do bem e ficaria feliz por ter ajudado pessoas", são ideias de valores sobre a escolha a fazer.

Outro aspecto importante e que está intimamente ligado à categoria dos valores e crenças é o consideração ao desejo do doador, seja ele anunciado anteriormente, ou caso não tenha sido feito, interpretado pelos entes quanto aos valores que a pessoa expressava em vida. A informação do desejo em vida apresentou-se como o fator mais importante e frequente nas verbalizações da família. A decisão apresenta-se como uma homenagem, respeito e continuidade da ideia estabelecida das relações entre eles e sobre a morte para si.

O consentimento, como podemos ver nas entrevistas e no caso apresentado, pode dar o sentido de continuidade, seja pela ideia de realização de desejo do outro (o morto), seja pelas próprias necessidades de continuá-las, mesmo que imaginariamente: "meu filho estará vivo em alguém", ou, "de lá de cima, ele ficará feliz". Não podemos descartar o processo de negação desta morte, faz parte da elaboração da perda, mas pensar também como uma possibilidade de ressignificá-la com ideias e sentimentos considerados nobres e com isso, tentar compensar ou manterem-se em equilíbrio.

A atuação atenciosa durante este momento de extremo sofrimento traz, além da capacidade de compreensão da perda, novas formas de lidar com questoes não resolvidas entre o paciente falecido, vínculos e afetos entre os entes e a compreensão do diagnóstico de morte. Tal proposta harmoniza revisões sobre seus papéis, posturas e ações que aproximam as reais necessidades do indivíduo e seu grupo de convívio, além de resoluções apropriadas a cada fato como também ressaltam Elias6 e Verdade10.

Entao, como isso pode repercutir no processo decisório da doação? Nota-se que as construções subjetivas e o apoio neste processo, podem aproximar as pessoas da compreensão de toda a ação, cirurgia, aspectos legais, implicações como reconstituição do corpo, fantasia dentre outras demandas, auxiliam na compreensão da dimensão do momento. Mesmo diante de tanta dor, e de aspectos reais constituintes da perda, das repercussões da doação, contrabalancear afetos dolorosos, mas acolhidos por uma equipe preparada para tal, permitirao uma decisão concisa quanto aos seus direitos de negar ou doar, como também compreender o real significado do transplante de órgaos em suas vidas e nas das outras pessoas.

O transplante, com isso, propicia novas representações que vao além das expectativas e desejos tao sentidos e vivenciados no campo das fantasias, em realidades elaboradas por todos ao redor, mas que naquele momento saem do campo imaginário para uma condição real e práticas ao que foi sonhado.

Diante de todos os dados com colhidos nesta experiência o imaginário presente no processo de doação, a atenção as demandas apresentadas será de grande valia para que os profissionais da saúde, especialmente aos que trabalham em serviços de captação, para que sejam interpretados pontos que podem ser esclarecidos e fortalecidos para a decisão a tomar.

 

CONCLUSÃO

Com esta breve pesquisa, observou-se que a decisão pela doação de órgaos respeita, na grande maioria dos casos, o desejo do doador em vida ou de percepções sobre o caráter, atitudes e princípios do doador. Se em vida o paciente era uma pessoa participativa e preocupada com o outro, os familiares tenderao a repetir a ação como se respondessem por ele e para ele. Isso os faz suportar todas os incômodos e dificuldades que encontram com o processo.

O tempo e o acolhimento por profissionais durante a estadia hospitalar também são fatores importantes que podem motivar ou não o consentimento. O cansaço e responsabilidades durante todo o tempo de internação, assim como o apoio que esta família encontrou quanto aos cuidados ao paciente e a eles próprios, informações e esclarecimentos, são também apontados como um incentivador para a decisão. A religiao apareceu como outro fator considerado e que também influenciará as suas decisões conforme as interpretações da morte.

Ressalta-se, entao, a necessidade da escuta profissional desses familiares, seja para apoio emocional e compreensão de aspectos diagnósticos. A comunicação bem realizada e acolhimento adequado não só auxiliam na elaboração da perda, mas permite que ultrapassem o universo da morte vivenciada para se aproximar da angústia alheia a espera de um órgao.

 

REFERENCIAS

1. Ariès P. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1977.

2. Kovácks MJ. Morte e existência humana: caminhos de cuidados e possibilidades de intervenção. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008.

3. D'assumpção EA, D'assumpção GM, Bessa HA. Morte e suicídio: uma abordagem multidisciplinar. Petrópolis: Vozes; 1984.

4. Symon G. Qualitative research diaries. In: Cassil C, Symon G. Essential guide to qualitative methods in organizational research. London: Sage; 2004.

5. Alaszewski A. Using diaries for social research. London: Sage; 2006.

6. Elias N. A solidao dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.

7. Freire MCB. O som do silêncio: isolamento e sociabilidade no trabalho do luto. Natal: EDFURN; 2006.

8. Dell Agnolo CM, Belentani LM, Zurita RCM, Coimbra JAH, Marcon SS. A experiência da família frente à abordagem para doação de órgaos na morte encefálica. Rev Gaúcha Enferm. 2009; 30(3):375-82.

9. Sadala MLA. Doação de órgaos: as experiências de enfermeiros, médicos e familiares de doadores. São Paulo: UNESP; 2004.

10. Verdade MM. Ecologia mental da morte: um novo olhar, uma nova escuta para a psicologia da morte. In: Kovácks MJ. Morte e existência humana: caminhos de cuidados e possibilidades de intervenção. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008. p. 162-92.