RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. 2

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Relato de Caso

Psicose associada à tireotoxicose: relato de caso

Psychosis associated with thyrotoxicosis: A case report

Liana David Matos1; Mariana Motta Baeta Salvador Chalup1; Maria Clara Coutinho Pereira1; Nathália Mansur Paz1; Débora Cerqueira Calderaro2

1. Acadêmicas do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Professora do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Mariana Motta Baeta Salvador Chalup
Avenida Professor Alfredo Balena, 190
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30130-100
Email: marisalvadorchalup@yahoo.com.br

Recebido em: 03/03/2010
Aprovado em: 07/04/2011

Instituição: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Pacientes com tireotoxicose podem cursar com alterações psiquiátricas como depressão, mania ou psicose aguda. O objetivo deste trabalho é relatar o caso de paciente com sintomatologia psiquiátrica como manifestação de hipertireoidismo. O diagnóstico correto foi feito após anamnese e exame físico e investigação laboratorial que incluiu a função tireoidiana. Foi realizada breve revisão bibliográfica sobre a ocorrência de alterações psiquiátricas associadas à tireotoxicose. O diagnóstico de doença tireoidiana deve ser considerado sempre diante de alterações classificadas como psiquiátricas agudas.

Palavras-chave: Tireotoxicose; Transtornos Psicóticos; Hipertireoidismo.

 

INTRODUÇÃO

A tireoide, localizada no pescoço, anteriormente à traqueia, produz tri-iodotironina (T3) e tiroxina (T4), hormônios que apresentam ação sistêmica e são importantes para o desenvolvimento adequado e para a homeostase termogênica e metabólica.1,2

Os distúrbios da tireoide podem ser: tireotoxicose ou hipotireoidismo. A tireotoxicose se refere às manifestações clínicas, fisiológicas e bioquímicas que ocorrem em resposta à exposição a doses excessivas dos hormônios tireoidianos.1,2 Pode ser determinada pela superprodução (hipertireoidismo), ingestão exógena ou produção ectópica do hormônio tireoidiano; ou destruição da tireoide, com liberação do seu hormônio estocado.1,2 As manifestações clínicas são: irritabilidade, labilidade emocional, hiperatividade, fadiga, insônia, ansiedade, tremor fino, perda de peso apesar do aumento do apetite, taquicardia sinusal, pele quente e úmida, sudorese e intolerância ao calor, tempo de trânsito intestinal diminuído, aumento dos reflexos osteotendíneos.1-3

A tireotoxicose frequentemente associa-se a irritabilidade, insônia, ansiedade, fadiga e alteração da concentração e da memória, sintomas estes que podem ser episódicos ou evoluir para mania, depressão ou delirium. A psicose tem sido relatada em até 1% dos pacientes com tireotoxicose.1-3 Há mais de 150 anos, Von Basedow descreveu pela primeira vez uma doença psicótica, provavelmente mania, em paciente com bócio exoftálmico.4 Relatos e investigações, em épocas com poucos recursos diagnósticos e terapêuticos, de sintomas psiquiátricos associados à tireotoxicose consideravam que 10 a 20% desses pacientes apresentavam doença mental.1-3 Relata-se o caso de paciente com tireotoxicose e manifestações psiquiátricas.

 

RELATO DO CASO

Paciente feminina, com 39 anos de idade, apresentava delírios paranoides associados à agressividade e agitação psicomotora há um ano. Foi considerada, nessa época, portadora de depressão e tratada com fluoxetina.

Encaminhada a seguir a hospital psiquiátrico devido a delírio durante o qual ameaçou seus familiares verbalmente e os agrediu fisicamente. Foi medicada com quetamina, tendo apresentado rebaixamento do sensório e dificuldade respiratória, sendo encaminhada ao Pronto-Atendimento do Hospital das Clínicas (PA-HC) da Universidade Federal de Minas Gerais.

Admitida no pronto-atendimento em insuficiência respiratória associada a pneumonia aspirativa e edema pulmonar, foi tratada com oxigenioterapia suplementar, furosemida venosa, nitrato sublingual e antimicrobianos. Obteve melhora.

A agressividade e os delírios foram controlados momentaneamente com o uso de haloperidol e clonazepam, mas ainda manifestava episódios de agitação no intervalo entre as medicações.

A tomografia computadorizada do crânio não evidenciou anormalidades.

Havia, concomitantemente ao início das manifestações clínicas, relato de exoftalmia e de emagrecimento não intencional (7 kg), palpitações e taquicardia. Sua história familiar era negativa para psicopatias e positiva para doenças tireoidianas. Não relatava abuso de drogas lícitas ou ilícitas.

O exame físico revelou pele fina, tremor de extremidades, tireoide aumentada de volume difusamente e proptose ocular bilateral. Foi solicitada a dosagem de TSH e T4 livre, cujos resultados foram 0,008 mUI/L (valor de referência: 0,47-4,54 mUI/L) e 4,51 ng/L (valor de referência: 0,71-1,86 ng/L), respectivamente. Não havia outras alterações laboratoriais significativas. Diagnosticada a tireotoxicose, provavelmente por doença de Graves (exoftalmia e bócio difuso), iniciou-se metimazol. O acompanhamento ambulatorial acusou remissão das anormalidades em concomitância com o tratamento da tireotoxicose, sem a necessidade de novas doses de antipsicóticos.

 

DISCUSSÃO

Esta descrição apresenta paciente com manifestações psíquicas, com internação em centro psiquiátrico, associada ao diagnóstico de tireotoxicose.

As características que sugeriam doença orgânica como causa dos sintomas psiquiátricos deste relato incluíram idade tardia do início das queixas, ausência de história pessoal ou familiar de psicopatias, início recente de manifestações psicóticas e sinais de tireotoxicose.3

O diagnóstico de tireotoxicose é feito com a dosagem de TSH abaixo do valor de referência e T4 acima do valor de referência, critérios preenchidos pela paciente.2

Em pacientes psiquiátricos, durante crises agudas, pode haver elevação modesta e transitória dos hormônios tireoidianos, observado durante a primeira semana de internação, sem representar estado tireotóxico.2-4 Para evitar diagnósticos equivocados, a dosagem dos hormônios deve ser repetida, o que foi feito, com confirmação do diagnóstico de hipertireoidismo.2,4

Este relato, somado ao diagnóstico laboratorial, possui outras características clínicas sugestivas de tireotoxicose, como pele fina, tremor de extremidades, tireoide aumentada de volume difusamente, proptose ocular bilateral, história de agitação psicomotora e emagrecimento de 7 kg em um ano.

As reações psicóticas à tireotoxicose são atualmente pouco comuns e, quando presentes, associam-se à tireotoxicose não tratada.2 Aproximadamente 1% dos pacientes com tireotoxicose é primariamente diagnosticado como doença psiquiátrica.4 Os distúrbios de senso-percepção e ilusões podem acompanhar as manifestações clínicas de tireotóxicose4, entretanto, são predominantes os distúrbios de ansiedade.1 A paciente apresentou delírios, irritabilidade e agressividade importantes, semelhante a relatos de caso prévios.2,3 A depressão iniciada coincidentemente com as manifestações sugestivas de tireotoxicose também pode ser consequência do distúrbio hormonal. Quase um terço dos pacientes preenche os critérios diagnósticos para depressão do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder, Ed. N. 3 (DSM-IIIR).4

Os mecanismos responsáveis por essas manifestações ainda não foram elucidados. Esses pacientes apresentam anormalidades inespecíficas ao eletroencefalograma4. Além disso, alguns apresentam história familiar positiva para psicopatia, o que pode caracterizar vulnerabilidade genética.4

Sabe-se também que receptores de T3 são amplamente distribuídos pelo cérebro humano, apresentando maior densidade em estruturas do sistema límbico e hipocampo.3,5 Estas estruturas, responsáveis pelo comportamento emocional, poderiam sofrer ação importante do excesso hormonal.

Outra hipótese fisiopatológica baseia-se no fato de que muitas das manifestações de tireotoxicose parecem estar associadas aos efeitos beta-adrenérgicos (taquicardia, tremor fino, agitação psicomotora) e poderiam ser reflexo de distúrbio do sistema adrenérgico central, por efeito direto (liberação de catecolaminas) ou indireto (ação sobre os receptores) dos hormônios tireoidianos.1 Whybrow e Prange6 acreditavam que o hormônio tireoidiano modulava a resposta adrenérgica central, aumentando a habilidade dos receptores beta-adrenérgicos em sua resposta à noradrenalina.6,7 Esta teoria é reforçada pela eficácia do uso clínico de propranolol no manejo sintomático de pacientes tireotóxicos.

A resolução das manifestações psiquiátricas é alcançada com o tratamento da tireotoxicose.1-4 Sendo assim, medicações antitireoidianas devem ser iniciadas assim que houver a documentação da tireotoxicose. À medida que o eutireoidismo é alcançado, há remissão das manifestações psiquiátricas e o tratamento definitivo do distúrbio hormonal, seja por iodo radioativo ou por ablação cirúrgica, deve ser instituído para evitar sua recorrência.3,4 Neste relato, o metimazole foi introduzido tão logo foram obtidas as dosagens hormonais, o que resultou em regressão das manifestações psiquiátricos. Apesar dos benefícios induzidos pela medicação, alguns pacientes podem desenvolver piora das alterações psiquiátricas após sua introdução, o que tem sido atribuído às mudanças hormonais proporcionadas pelos medicamentos antitireoideanos. Deve-se, portanto, manter a monitoração rigorosa dos pacientes devido à possibilidade de piora dessa sintomatologia.1,4

Devem ser usados psicofármacos para o controle das manifestações psiquiátricas, entretanto, é necessária cautela, uma vez que podem se associar a efeitos colaterais diferentes em pacientes tireotóxicos.1 Há relatos de que o haloperidol, medicação aqui usada, pode se associar à neurotoxicidade, os antidepressivos tricíclicos são associados ao aumento no risco de toxicidade central e o lítio pode exacerbar a oftalmopatia de Graves, porém seu uso deve ser avaliado para controle dos sintomas psiquiátricos até a obtenção do eutireoidismo.1,4

A quetamina é droga depressora do sistema nervoso central, muito usada na sedação pré-anestésica. Em baixas doses, causa sonolência, vertigem, sensação de invulnerabilidade, dissociação do pensamento, perda da noção de tempo e espaço, lentificação das sensações, euforia, alucinações e distorções visuais. Após uso intramuscular, seu efeito inicia-se em cinco minutos e dura 30 a 45 minutos. Os efeitos colaterais relatados incluem elevação da pressão arterial sistêmica, perda de controle motor, rebaixamento do nível de consciência, problemas respiratórios e taquicardia. Trata-se de medicamento que pode ser usado como sedativo, em casos de agressividade e agitação psicomotora importantes, sendo seu uso principal na indução anestésica antes de eletroconvulsoterapia. A paciente recebeu essa medicação provavelmente para o controle de agitação psicomotora. O desenvolvimento de rebaixamento do nível de consciência e de edema agudo de pulmão após o seu uso foram considerados efeitos colaterais, desde que houve melhora rápida após interrupção do seu uso.8

 

CONCLUSÃO

A sintomatologia psiquiátrica pode se associar à tiretoxicose. Apesar dessa associação não ser tão frequente, a comunidade médica deve estar alerta para sua existência, uma vez que o tratamento do hipertireoidismo é essencial para o adequado controle dessas manifestações psiquiátricas. O uso de drogas psicotrópicas não deve ser adiado, mas deve ser feito com cautela.

 

REFERÊNCIAS

1. Geffken G, Ward H, Staab J, Carmichael S, Evans D. Psychiatric morbidity in endocrine disorders. Psychiatr Clin N Am. 1998; 21(2):473-89.

2. Ortega Calonge B, Simón llanes J, Moruno Arena F, Labad Alquézar A. Thyrotoxic psychosis: a case report. Actas Esp Psiquiatr. 2004;32(1):53-5.

3. Marian G, Nica EA, Ionescu BE, Ghinea D. Hyperthyrodism: cause of depression and psychosis: a case report. J Med Life. 2009;2(4):440-2

4. Snabboon T, Khemkha A, Chaiyaumporn C, Lalitanantpong D, Sridama V. Psychosis as the first presentation of hyperthyroidism. Intern Emerg Med. 2009;4(4):359-60.

5. Brownlie BE, Rae AM, Walshe JW, Wells JE. Psychoses associated with thyrotoxicosis - 'thyrotoxic psychosis.' a report of 18 cases, with statistical analysis of incidence. Eur J Endocrinol. 2000;142(5):438-44.

6. Whybrow PC, Arthur J. Prange AJ Jr. A Hypothesis of Thyroid- Catecholamine-Receptor Interaction. Arch Gen Psychiatr. 1981;38(1):106-13.

7. Bauer M, Goetz T, Glenn T, Whybrow PC. The thyroid-brain interaction in thyroid disorders and mood disorders. J Neuroendocrinol. 2008;20(10):1101-14.

8. Luft A, Mendes FF. S. (+) Cetamina em baixas doses: atualização Rev Bras Anestesiol. 2005;55(4):460-9.