RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 27. (Suppl.2) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20170018

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Artigos de Revisão

Hipertermia maligna: revisando aspectos importantes

Malignant hyperthermia: reviewing important aspects

Wanderson Penido da Costa1; Thais Morato Menezes2; Gláucio Gregori Nunes Bomfá1; Rodrigo de Lima e Souza3; Paulo Jacinto Morato Menezes4; Lucas Rodrigues Motta5

1. Hospital Belo Horizonte; Hospital Evangélico. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Fundaçao Educacional Lucas Machado - FELUMA, Hospital Belo Horizonte, Centro de Ensino e Treinamento-CET. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Hospital Madre Teresa; Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais - IPSEMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Hospital Belo Horizonte; Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, Hospital das Clínicas-HC. Belo Horizonte, MG - Brasil
5. UFMG, HC; Fundaçao Hospitalar de Minas Gerais-FHE-MIG, Hospital Joao XXIII. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Wanderson Penido da Costa
E-mail: wandersonpenido@yahoo.com.br

Instituiçao: Hospital Belo Horizonte Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A hipertermia maligna (HM) é uma doença farmacogenética rara, de caráter autossômico dominante, de baixa incidência, porém potencialmente fatal, desencadeada por exposição a agentes anestésicos inalatórios halogenados e/ou succinilcolina. Caracteriza-se por um quadro de hipermetabolismo do músculo estriado esquelético, por hipercalcemia intracelular, com destruição completa deste, associado ao aumento do consumo de oxigênio, hipertermia, alterações cardiovasculares, rigidez muscular, acidose metabólica, falência renal e morte, caso não seja realizado o tratamento específico com o dantrolene. O reconhecimento da crise é baseado nos sinais clínicos que autorizam o início do tratamento e o diagnóstico definitivo é realizado a partir do teste de contratura halotano/cafeína realizado no paciente e em seus familiares com o intuito de descobrir os suscetíveis e protegê-los de possíveis crises.

Palavras-chave: Hipertermia Maligna; Rigidez Muscular; Succinilcolina; Rianodina; Farmacogenética.

 

INTRODUÇÃO

A hipertermia maligna (HM) é uma desordem farmacogenética rara, porém grave, de herança autossômica dominante, latente, que ocorre em indivíduos geneticamente predispostos quando em contato com alguns agentes usados em anestesia geral, principalmente halogenados e succinilcolina.1-10 Caracteriza-se por um estado hipermetabólico com hipercarbia, taquicardia, hipertermia, rigidez muscular, rabdomiólise, acidose mista, instabilidade hemodinâmica e insuficiência de múltiplos órgaos.2,3,6,9-14 Contudo, há uma grande variabilidade na apresentação clínica, havendo desde formas fulminantes, passando por apresentações frustras, atípicas ou mesmo apenas o espasmo de masseter isolado.6

A taxa de incidência da HM é variável: de 1:10.000 em crianças até 1:50.000-250.000 adultos submetidos à anestesia geral, sendo mais comum no sexo masculino e mais rara em idosos e lactentes (média de 18,3 anos).1,2,4-6,10,15-18 Essa grande variação idade =nas taxas de incidência pode estar relacionada à diversidade geográfica, aos diferentes métodos diagnósticos utilizados ou mesmo à subnotificação dos casos.16 Na América do Norte há relatos de que a incidência pode chegar a 1:3.000 procedimentos cirúrgicos e, no Brasil, é estimada em 1:50.000 casos.19 A prevalência real é difícil de se definir, pela existência de indivíduos com ausência de sintomas ou com apenas reações leves, dada a penetrância variável do traço herdado.20 Estima-se que as anormalidades genéticas associadas à suscetibilidade à HM giram entre 1:3.000 - 1:8.500 indivíduos, apesar de já se ter descrito na literatura que uma estimativa recente refira prevalência de 1:400 indivíduos.1 Na década de 70, cerca de 80% dos pacientes com diagnóstico de HM evoluíam para óbito.1,19 Atualmente, nos Estados Unidos, as taxas de mortalidade por HM variam entre 1,4 e 22%, mesmo com todo o tratamento disponível.1,6 Contudo, há uma tendência à redução dessa taxa, tendo em vista a constante qualificação das equipes multiprofissionais nos centros cirúrgicos, o reconhecimento precoce dos sinais de crise e o início rápido do tratamento adequado.19

O objetivo deste estudo é revisar a literatura como forma de atualização acerca da incidência, fisiopatologia e fatores desencadeantes e acerca do manejo seguro do paciente e seus familiares.

 

DISCUSSÃO

Antes da década de 60, a literatura já reportava pacientes, principalmente crianças, que apresentavam hipertermia durante anestesia geral, associada a convulsões, com elevada mortalidade.14 Porém, o primeiro relato de HM, também conhecida como febre maligna ou anestésica, só foi descrito em 1960, por Denborough et al.21, que pesquisando os familiares de um paciente de 21 anos que desenvolveu a doença após ser submetido à anestesia geral com óxido nitroso (NO), oxigênio (O2) e halotano descobriram que 10 dentre 38 familiares submetidos à anestesia geral haviam morrido durante o ato anestésico.2,7,21

Foi sugerido, entao, que esses pacientes poderiam ter herdado o gene dominante que os tornaram predispostos ao desenvolvimento de HM.7 Anestesia espinhal realizada sem complicações em um membro dessa família sabidamente suscetível corroborou a hipótese de que a HM tem relação com os anestésicos usados durante anestesia geral.7 Posteriormente, em 1968, foi descrito um caso de um paciente de 16 anos que desenvolveu HM após indução de anestesia geral para tratamento de fratura de mandíbula.2

A partir desses casos, diversos estudos foram realizados e hoje se sabe que se trata de uma síndrome hipermetabólica que ocorre devido a uma desordem genética hereditária, de caráter autossômico dominante, expressividade variável e penetrância reduzida.5,7,15,16 A literatura descreve seis genes que podem apresentar mutações que predispoem o indivíduo ao desenvolvimento da HM: MHS1 (gene do receptor rianodina - RYR1, locus cromossômico 19q13.1), MHS2 (gene do canal de sódio - Na+ - do musculoesquelético adulto, locus cromossômico 17q11.2-q24), MHS3 (gene da subunidade alfa2/delta do receptor di-hidropiridina - DHPR -, locus cromossômico 7q21-q22), MHS4 (locus cromossômico 3q13.1, gene ainda não identificado), MHS5 (gene da subunidade alfa1 do receptor DHPR, locus cromossômico 1q32) e MHS6 (locus cromossômico 5p, gene ainda não identificado).1,12,20

As mutações nesses seis genes são expressas em cerca de 50% das famílias estudadas, sendo que nas demais famílias o gene responsável pela suscetibilidade à HM ainda é desconhecido.12,20 Cerca de 70% das famílias de pacientes suscetíveis à HM exibem um de 34 tipos diferentes de mutações causais para HM, com muitas outras variantes ainda sendo caracterizadas.1 Essa grande variabilidade genotípica dificulta o diagnóstico da doença com base somente no estudo molecular, pois um teste genético negativo não descarta a suscetibilidade à HM.12,15 Além disso, mesmo que o indivíduo apresente uma mutação genética que o torne suscetível à HM, não significa que essa disfunção será expressa durante o primeiro ou até mesmo após exposição prévia a um agente dito desencadeante, devido à penetrância incompleta inerente a essa desordem.20

Estudos revelam que em até 80% dos casos as mutações ocorrem no nível do cromossomo 19q, no qual já foram descritos 19 tipos diferentes de mutação, que produz alterações nos receptores RYR1, uma proteína encontrada sob a forma de canal iônico no retículo sarcoplasmático (RS) das células musculares, responsável por recapturar o íon cálcio (Ca++) do citoplasma celular.5-7,12,15

Num indivíduo normal, os níveis de Ca++ no mioplasma são controlados pelo receptor RYR1 do RS (canais de cátion de alta condutância), pelo receptor DHPR do túbulo transverso (que ativam os receptores RYR1) e pelo sistema Ca++-adenosina trifosfatase (Ca++-ATPase).17,19 Essa interação funcional entre os receptores DH-PRs e RyR1s é responsável por transformar o impulso elétrico vindo do SNC em estímulo químico, o que é conhecido como acoplamento excitação-contração (E-C).20 Para que haja a contração muscular, o RS libera parte do seu estoque de cálcio, ao passo que a posterior retenção ativa desse íon promove seu relaxamento.18

O defeito genético nos receptores RYR1 da fibra muscular esquelética, que segundo alguns autores poderia chegar a até 1:2.000 pessoas, provoca a desregulação dos fluxos intracelulares do cálcio, causada pelo aumento da sensibilidade aos agentes que ocasionam a abertura dos receptores e redução da resposta aos agentes que inibem seu funcionamento.5,7,12,20 Essa disfunção do receptor RYR1, acarreta liberação excessiva e contínua de Ca++ do RS para o citosol, provocando uma cascata de eventos bioquímicos intracelulares, como o desacoplamento da fosforilação oxidativa, com produção excessiva de calor e falência dos estoques de adenosina trifosfato (ATP); glicólise anaeróbia, com acidose láctica e aumento da produção de dióxido de carbono (CO2); interação actina-miosina, com contração muscular; liberação de potássio e creatinoquinase (CPK), dano à membrana celular e consequente morte da fibra muscular.1,8,12,15,16,20,22 O resultado é uma contração muscular sustentada, associada ao estado de hipermetabolismo das células musculares na tentativa de normalizar a concentração intracelular de Ca++, que se traduz no aumento do consumo de O2, taquicardia, taquipneia, acidose mista, coagulopatia, arritmias complexas, hipertermia, hipercarbia, hipercalemia, mioglobinemia e falência renal.1,5,7,8,18,22 Vale ressaltar que a hipertermia é um sinal relativamente tardio e que pode não ocorrer, principalmente caso haja parada cardíaca logo no início do quadro.5,18,20 Dessa forma, a suspeita diagnóstica baseia-se, inicialmente, no aumento repentino e sustentado do dióxido de carbono expirado (EtCO2), associado à taquicardia, também repentina, causada pela estimulação simpática da acidose, excluídas outras possíveis causas.1,5,20

É importante destacar que essa ativação do metabolismo, que é evidente durante a crise de HM, ocorre também, em menor grau, durante toda a vida do paciente suscetível, acarretando alterações subclínicas da fisiologia e morfologia da fibra muscular esquelética.8,12 Esses pacientes normalmente apresentam algum grau de doença neuromuscular, detectável por meio do exame clínico neurológico (atrofia ou hipertrofia muscular), do nível sérico de enzimas musculares (CPK está alterada em 50% dos casos), da eletroneuromiografia, do estudo anatomopatológico da biópsia muscular, da espectroscopia muscular ou de testes metabólicos musculares.15

A crise de HM pode ser desencadeada pelos anestésicos inalatórios halogenados, principalmente o halotano, mas, também, enflurano, isoflurano, sevoflurano e desflurano e, também, pelo bloqueador neuromuscular despolarizante, succinilcolina.1,6,16,22 Vale lembrar que os outros fármacos normalmente usados na indução e manutenção da anestesia geral, como óxido nitroso, propofol, etomidato, tiopental, cetamina, opioides, benzodiazepínicos e BNMs adespolarizantes, são considerados seguros em pacientes sabidamente suscetíveis à HM.1,8,16,23 Embora a literatura relate alguns poucos casos de HM ligados a anestésicos locais, os mesmos são considerados seguros para serem administrados em pacientes ditos suscetíveis a crises de HM.23

O reconhecimento de um quadro de HM se dá basicamente a partir da clínica do paciente e os exames complementares, apesar de auxiliarem no diagnóstico, têm mais utilidade na avaliação das complicações e da resposta ao tratamento.14,16,17 Larach et al.14 padronizaram uma escala de graduação que compreende critérios clínicos padronizados para o diagnóstico de HM (Tabelas 1 e 2).1,4,14

 

 

 

 

Como quase todos os pacientes suscetíveis à HM não apresentam alterações fenotípicas sem exposição aos agentes desencadeadores, é muito difícil realizar o diagnóstico de suscetibilidade sem qualquer exposição anestésica.1 Os primeiros sinais/sintomas surgem, habitualmente, ainda no peroperatório, mas podem ocorrer também, tardiamente, até cerca de uma hora após a interrupção do agente desencadeante em até 20% dos casos.1,7,20 O paciente começa a apresentar sinais clínicos de instabilidade cardiovascular com o surgimento de taquicardia repentina (96% dos casos) que não responde aos tratamentos usuais, podendo surgir ainda extrassístoles e arritmias ventriculares, fibrilação ventricular ou mesmo parada cardíaca peroperatória.1,4,7

A taquicardia é associada ao aumento, também repentino, do EtCO2, sendo esses os dois sinais que inicialmente sugerem a síndrome.1,4,7 Podem surgir, ainda, alterações ventilatórias que se traduzem em hipóxia, cianose, aumento do consumo de O2 e taquipneia (85% dos casos) e a característica hipertermia - com elevações de até 1,8°C a cada cinco minutos - presente desde o início da crise de HM em até 65% dos pacientes, mas podendo ser um sinal mais tardio.1,7,8,16,17,19,24 O cirurgiao também pode observar aumento da tensão dos planos musculares, que pode chegar a ser uma verdadeira rigidez muscular (80% dos casos), principalmente se exposto à succinilcolina, podendo o paciente, inclusive, assumir posição de opistótono, mesmo sob a ação de bloqueadores neuromusculares (BNMs).1,7,19 O músculo masseter é um dos mais comumente acometidos e normalmente é onde se observa a rigidez de maneira mais proeminente, principalmente quando o BNM usado foi a succinilcolina.8,19,24 Outros sinais que podem estar presentes são: hipoglicemia intensa, diaforese, aumento do lactato sérico e/ou CPK (este, presente em 50% dos casos 12-24 horas após o início da crise), acidose mista, mioglobinúria, colúria e/ou insuficiência renal aguda secundárias a rabdomiólise, alteração das enzimas hepáticas, coagulação intravascular disseminada (causa habitual de morte se temperatura > 41°C), insuficiência cardíaca congestiva, isquemia e síndrome compartimental dos membros secundária ao edema muscular.1,7,16,17,19,20

O diagnóstico definitivo é realizado, desde a década de 70, com base no estudo da contratura do musculoesquelético in vitro em resposta ao halotano e à cafeína, por meio de biópsia muscular (músculo vasto lateral da coxa), cuja sensibilidade é estimada em 99% e especificidade em 94% quando se utiliza o protocolo europeu.1,2,5,12,14,16,18 O protocolo europeu confirma os pacientes suscetíveis (MHS) quando ambos os testes com cafeína e halotano são positivos. E confirma os não suscetíveis (MHN) quando os resultados são ambos negativos e, caso haja resultado positivo a apenas um dos exames, cafeína ou halotano, o paciente é também classificado como suscetível - MHS(c) ou MHS(h).1

Estudos demonstram positividade a pelo menos uma dessas duas substâncias em praticamente 100% dos sobreviventes de um episódio de HM.12 Salienta-se que o teste de contratura muscular é um marcador da anormalidade do metabolismo do cálcio intracelular, não significando, necessariamente, que o paciente tenha determinada mutação genética.12 Por outro lado, o teste de contratura muscular positivo significa que existe anormalidade no funcionamento da fibra muscular que pode levar, com o tempo, a alterações da morfologia da fibra muscular ou até a uma miopatia clinicamente evidente.12 Além disso, alguns trabalhos enfatizam que, mediante um paciente com quadro clínico bastante característico de HM, o teste de contratura torna-se desnecessário, dadas as dificuldades de acesso ao padrao-ouro para o diagnóstico definitivo.4

Entre as situações clínicas associadas à suscetibilidade à HM, comumente citadas na literatura, têm-se doenças musculares, alterações oesteoarticulares (escoliose, luxação crônica, pé torto congênito), os dismorfismos (fenda palatina, ptose palpebral, estrabismo) e miopatias (miopatia do alvo central), além de história de câimbras frequentes, criptorquidia, entre outros.2,5,6 Alguns autores acreditam que o estrabismo seja uma desordem miopática que predisponha o indivíduo ao desenvolvimento de HM.22 Carrol, citado por Elias e Venegas22, publicou estudo demonstrando que, entre 1.468 crianças submetidas à anestesia geral com halotano e succinilcolina, a frequência de espasmo do músculo masseter e a elevação sérica de CPK acima dos níveis esperados era quatro vezes maior nos pacientes submetidos à cirurgia de estrabismo do que nos demais tipos de procedimentos cirúrgicos.22

O diagnóstico diferencial da HM deve ser feito com condições que acarretam hipercarbia (problemas no circuito de ventilação, doenças respiratórias prévias, pneumoperitônio), hipermetabolismo (feocromocitoma, crise tireotóxica, intoxicação exógena por salicitatos, infecção) e/ou em hipertermia (aquecimento iatrogênico do paciente, sepse).1,6,14,17

O sucesso do tratamento de uma crise de HM está associado ao início precoce das medidas efetivas, começando pela interrupção do ato anestésico e, consequentemente, da administração dos agentes desencadeantes, troca dos circuitos do aparelho de anestesia, lavagem do aparelho de anestesia com alto fluxo de O2 (10 litros) durante 15 minutos, aumento do volume-minuto e administração imediata do dantrolene. A dose de ataque desse medicamento é de 2,5 mg/kg, podendo ser necessário repetir o bolus a cada 3-5 minutos por até quatro vezes (10 mg/kg) para o controle do quadro e, em seguida, manter a droga na dose de 1 mg/kg a cada seis horas, por até 48 horas. Há na literatura relatos de recrudescência do quadro em até 25% dos casos nesse período.1,5-7,9,13,15-17,20,23,24 Caso sejam necessárias doses maiores que 10g/kg sem remissão dos sinais de crise de HM, o diagnóstico deve ser questionado.1,9,24

O dantrolene, único agente clinicamente disponível para o tratamento da HM, é um derivado da hidantoína e, apesar de impedir a contração muscular, não possui relação nem química nem estrutural com os relaxantes musculares.24,25 É o fármaco de escolha para o tratamento da HM, por atuar no interior da célula, inibindo a contração muscular esquelética devido à depressão do acoplamento excitação-contração, devido ao bloqueio dos receptores RYR1s do RS, reduzindo a disponibilidade intracelular de cálcio.16,20,25,26

Assim, partindo-se do pressuposto de que cada ampola de dantrolene possui 20 mg, que devem ser diluídos em 60 mL de solvente estéril, num paciente de 70 quilos podem ser necessários até 36 frascos da droga, quantidade que deve estar imediatamente disponível para o anestesiologista, pois, de acordo com uma Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM 1.802/2006), o dantrolene faz parte da lista de fármacos que obrigatoriamente devem estar disponíveis no ambiente onde se realiza qualquer anestesia.6 Tal fato torna-se importante, uma vez que o tempo para diluir o dantrolene pode chegar a quatro minutos por frasco e, de acordo com a literatura, já foi demonstrado que a mortalidade aumenta quando a primeira dose de dantrolene é administrada após 30 minutos do início da crise.6 Atualmente, o Ryanodexr, já aprovado pela Food and Drugs Administration (FDA), é uma alternativa mais eficaz no tratamento da HM, devido à sua apresentação, que é de 250 mg, requer apenas 5 mL de diluente para sua reconstituição e possui solubilidade melhorada, trazendo mais rapidez no combate à crise de HM, uma vez que o tratamento inicial pode ser feito apenas com uma ampola da medicação.1

Além disso, simultaneamente à administração do dantrolene, realiza-se o combate à hipoxemia, com O2 a 100%, o controle da temperatura corporal (se > 39ºC ) a partir do resfriamento da superfície corporal (com compressas frias e gelo) e lavagem de cavidades (com solução resfriada) e o tratamento das possíveis complicações: acidose metabólica (bicarbonato de sódio, 1-2 mEq/kg), acidose respiratória (hiperventilação), hipercalemia (alcalinização - gluconato de cálcio, 10-50 mg/kg, associado à insulina 10 UI e glicose 50%, 50 mL em adultos ou 0,1 UI/kg de insulina simples em 1 mL/kg de glicose a 50% em crianças), arritmias cardíacas (contraindicada a administração de bloqueadores de canais de cálcio em pacientes tratados com dantrolene, por se associarem a hipercalemia e colapso circulatório), choque (volume e vasopressores), disfunção renal (expansão volêmica e diuréticos - manter diurese > 1 mL/kg/h) e coagulação intravascular disseminada.1,7,9,15-17,20,24

Alguns estudos ainda indicam o uso profilático do dantrolene em pacientes com antecedentes pessoais e familiares de HM.7 Entretanto, sabe-se, atualmente, que a administração oral do dantrolene não produz uma concentração plasmática eficaz que iniba o desenvolvimento da crise em suscetíveis.24 Mesmo a terapia profilática endovenosa, hoje, tornou-se obsoleta, uma vez que, realizado um manejo anestésico adequado a pacientes suscetíveis, ou seja, livre de drogas com potencial desencadeador, é improvável que ocorram crises de HM.24 Além disso, como todo fármaco, o dantrolene não é isento de efeitos colaterais tais como: fraqueza muscular transitória por até 48 horas (21% casos), flebite local (9% casos), hepatotoxicidade, tonturas, disfunção gastrintestinal, confusão e sonolência.1,24 Assim, a recomendação atual é de que, ao realizar anestesia geral em pacientes suscetíveis a crise de HM, esta deve ser isenta de agentes ditos desencadeadores e que não seja realizada profilaxia pré ou peroperatória, mas que o dantrolene esteja disponível para uso imediato, caso necessário, mesmo em cirurgias ambulatoriais.24

É importante salientar que, por se tratar de uma enfermidade hereditária autossômica dominante, de penetrância incompleta e expressividade variável, todos os familiares de um paciente com quadro de HM devem ser considerados suscetíveis e devem ser investigados com o intuito de se confirmar tal hipótese, já que parentes de primeiro grau, como irmãos e filhos, têm 50% de chance de terem herdado o gene da HM.16

 

CONCLUSÃO

Assim, dada a gravidade do quadro de HM, que acomete principalmente indivíduos jovens e previamente hígidos, faz-se imperiosa a avaliação pré-anestésica do paciente, com o fito de investigar antecedentes pessoais e familiares que possam estar relacionados à suscetibilidade ao desenvolvimento de HM.2,5,15 Além disso, ao se realizar uma anestesia geral, deve-se ter em mente a importância da monitorização que permita a identificação precoce diante de uma crise de HM, ou seja, uso de halogenados e/ ou succinilcolina inevitavelmente obriga ao uso contínuo da capnografia e termometria ao longo de todo o procedimento.1,10,15 É importante reforçar que onde se realiza anestesia geral deve ter disponível o dantrolene, para que, durante uma eventual necessidade, a droga possa ser usada de maneira imediata.5 Assim, tomando-se as precauções devidas, as cirurgias podem ser realizadas de maneira segura, sem risco de complicações para os pacientes e com tranquilidade para os cirurgioes e anestesiologistas.5

 

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