ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Lesão renal após anestesia: o que há de evidências
Renal injury after anesthesia: what is in evidence
Iuri Ferreira Lopes; Hugo Januário; Célio Gomes de Amorim; Roberto Araújo Ruzi; Beatriz Lemos da Silva Mandim
Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Faculdade de Medicina - FM, Centro de Ensino e Treinamento-CET da Sociedade Brasileira de Anestesiologia-SBA. Uberlândia, MG - Brasil
Endereço para correspondênciaBeatriz Lemos da Silva Mandim
E-mail: mandim@uol.com.br
Instituiçao: Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Hospital de Clínicas, Serviço de Anestesiologia Uberlência, MG - Brasil
Resumo
A lesão renal aguda (LRA) perioperatória é responsável globalmente por grande número de mortes todos os anos, apesar de bastante conhecida, não possui diagnóstico preciso, o que contribui para aumentar a morbimortalidade, pois quando ocorre elevação da creatinina plasmática (CrP), horas ou dias após a cirurgia, essa já está associada à perda considerável da função glomerular. A avaliação do débito urinário durante a cirurgia, embora bastante utilizado, não garante o diagnóstico da mesma, mas permite observar a dissociação entre a filtração glomerular e a elevação da CrP, que ocorrerá tardiamente. No que se refere aos métodos para diagnóstico precoce, novas classificações, mais rigorosas, bem como exames laboratoriais que usam biomarcadores como a cistatina-C, têm sido utilizadas. Idade avançada, cirurgia de emergência, obesidade, hipotensão transoperatória e hipovolemia são condições associadas a elevado risco de lesão renal. O comprometimento da função renal pode ocorrer tanto pré, quanto intra ou pós-renal, como acontece quando há hipoperfusão tecidual, isquemia, contato com nefrotoxinas ou obstrução ao fluxo urinário, entre outras causas. A revisão atual objetiva abordar as questoes relacionadas à LRA, no perioperatório, a partir da evidência científica mais recente, a ser aplicada no cotidiano do anestesiologista.
Palavras-chave: Cirurgia; Anestesia; Lesão Renal Aguda; Assistência Perioperatória; Prática Clínica Baseada em Evidências.
INTRODUÇÃO
Uma vez que os rins são responsáveis pela manutenção do equilíbrio hidroeletrolítico, pela eliminação das excretas nitrogenadas, bem como pelo metabolismo e eliminação dos fármacos, devese buscar a todo custo manter a estabilidade de sua função, sobretudo quando se trata do perioperatório, condição que promove tamanha agressão orgânica.1 Entretanto, manter a função renal o máximo possível isenta do estresse causado pelo procedimento anestésico/cirúrgico, por si só, é um grande desafio para o anestesiologista, além da eventual necessidade de se infundir substâncias com efeito nefrotóxico, em razao das condições clínicas, aumentando a chance de desfecho desfavorável.2 Portanto, a LRA exerce grande impacto na mortalidade por todas as causas, a função renal merece ser acompanhada tal como o é a função cardiovascular, que possui, nos grandes centros, unidades coronarianas específicas e bem estruturadas, algo que, indubitavelmente, melhora a qualidade do atendimento ao paciente crítico, assim como reduz a morbimortalidade perioperatória.3
Dados recentes afirmam que, ao ano, mais de 13 milhoes de pessoas apresentam quadro de LRA, sendo que 85% delas vivem em países em desenvolvimento. E e a doença tem relação direta com doenças agudas como diarreia e desidratação e infecções como malária. Ainda existem populações que vivem condições socioeconômicas tao desfavoráveis que a LRA nem chega a ser diagnosticada, devido à assistência médica deficitária.4 Diferentemente, sua ocorrência em países desenvolvidos, em grande parte, está associada a condições que levam o indivíduo à internação hospitalar, sejam elas clínicas ou cirúrgicas. Os números podem estar subestimados pela dificuldade em definir o problema, entretanto, mostram que a LRA apresenta alta morbimortalidade e elevado custo social. Esse contexto levou a Sociedade Internacional de Nefrologia, associada aos Direitos Humanos, a criar um plano que tem como meta zero morte por LRA não tratada até o ano de 2025.4 De acordo com a Sociedade, a chave para atingir esse objetivo está em delimitar o problema com o mnemônico 5R's: risk assessment, recognition, response, renal support e rehabilitation.3
A LRA é a lesão renal mais comum durante o período perioperatório e extremamente relatada também no pós-operatório, atingindo até 40% dos indivíduos, dependendo da casuística considerada, mesmo em grandes centros.5 Ela pode ser classificada em pré-renal, renal e pós-renal, sendo que cada tipo apresenta uma etiologia mais prevalente. Embora sua terminologia esteja diretamente relacionada à ocorrência de evento agudo, o universo no qual ela se enquadra atinge tanto afecções agudas quanto crônicas.2
Os rins têm muita importância na manutenção de fluidos e eletrólitos, bem como no metabolismo das drogas. Portadores de doença renal crônica (DRC) frequentemente se manifestam no perioperatório com quadro de anemia e déficit qualitativo da função plaquetária, além de poder exibir padrao de hipo ou hipervolemia, condições que tendem a agravar o quadro já deteriorado da função renal, uma vez que, por exemplo, a disfunção plaquetária muda a eficiência da coagulação, propiciando condições para aumento do sangramento, com efeito sobre o status de volume sobre a taxa de filtração glomerular (TFG).6
Criteriosa avaliação deve sempre ser feita no pré-anestésico, buscando fatores relacionados e adequada contextualização das condições clínicas dos indivíduos prestes a se submeterem a tratamento cirúrgico, com valor inestimável para o planejamento da melhor conduta a ser adotada pelo anestesiologista, pois esta pode reduzir a possibilidade de LRA tanto em pacientes com DRC quanto naqueles com função renal alterada. Objetivando auxiliar o anestesiologista a estar munido de argumentações convincentes, embasadas em evidências, a revisão atual tenta oferecer tais elementos.
DEFINIÇÕES E TERMINOLOGIA
Doença renal crônica (DRC) foi definida em 2002 pelo guideline publicado pelo grupo K/DOQI (Kidney Disease Outcomes Quality Initiative), como lesão renal ou diminuição da função renal que perdure por três meses ou mais.7 Sua classificação é baseada na terminologia: glomeruloesclerose diabética, doenças glomerulares (primária ou secundária), doenças vasculares (incluindo hipertensão e microangiopatia), doença tubulointersticial (incluindo as obstrutivas ou nefropatia de refluxo), doenças císticas e doença em receptores de transplante renal (rejeição, toxicidade a drogas, recorrência da doença) .1 Falência renal ocorre quando a TFG está abaixo de 15 mL/min/1,73m2, no entanto, já se considera a função renal prejudicada com valores de TFG abaixo de 30 mL/min/1,73m2.
A classificação de LRA proposta em 2004 pelo grupo Acute Dialysis Qualitiy Initiative (ADQI) foi embasada nos critérios R - risco de disfunção renal; I - injúria ao rim; F - falência da função renal, L - perda da função renal e a letra E - estágio final da doença renal (RIFLE). Seus critérios são baseados na estimação da TFG, nos níveis de creatinina plasmática (CrP) e débito urinário. Em 2007 esses critérios foram revistos pela Acute Kidney Injury Network (AKIN), a qual definiu que LRA está presente quando uma redução abrupta (< 48 horas) na função renal resulta no aumento absoluto da CrP ≥ 0,3 mg/dL, aumento percentual ≥ 50% (1,5 vez o valor basal) ou redução no débito urinário (oligúria de < 0,5 mL/kg/hora por mais de 6 horas). Esses critérios são derivados do critério RIFLE, o qual não contemplava a variável tempo. Por exemplo, aumento na CrP de 1 mg/dL em 24 horas é claramente muito mais significante do que o mesmo aumento em quatro dias. A Tabela 1 compara as duas classificações.
PRINCIPAIS CAUSAS DE LRA NO PERIOPERATORIO
Primeiramente, para a avaliação pré-operatória da função renal, dependendo do estado físico do paciente e do procedimento cirúrgico, pode ser necessária a comunicação entre o nefrologista, anestesiologista e cirurgiao para o melhor planejamento e otimização para a cirurgia. O termo LRA atualmente é o preferido para denominar uma deterioração aguda da função renal e está associado ao declínio da filtração glomerular, resultando na inabilidade dos rins em excretar o nitrogênio e outros resíduos do metabolismo, ocorrendo acúmulo de ureia (Ur) e CrP geralmente associado à diminuição da produção de urina, mas pode se apresentar também com a forma não oligúrica.
A lesão pré-renal geralmente ocorre em pacientes com vasoconstrição renal preexistente (depleção de volume, falência cardíaca ou sepse), por exposição a nefrotoxinas ou redução adicional no débito cardíaco9, enquanto a forma intrínseca é geralmente causada por isquemia, nefrotoxinas e doenças do parênquima renal tais como nefrites e necrose tubular aguda (NTA). Esta última é a lesão isquêmica mais comum no perioperatório e geralmente acomete pacientes críticos, cuja mortalidade chega a 90% quando acompanhada por falência de múltiplos órgaos. A NTA representa a extensão da azotemia pré-renal, cuja necrose cortical levará a um insulto renovascular maciço, como ocorre no clampeamento prolongado da aorta suprarrenal ou na embolia da artéria renal. As nefrotoxinas normalmente atuam levando à hipoperfusão ou a um estado de vasoconstrição renal subjacente, causando danos na microvasculatura e nos túbulos renais.10 Isoladamente a LRA tem mortalidade inferior a 10%.
A lesão pós-renal geralmente é devida à uropatia obstrutiva, geralmente reversível, sendo necessária a realização de ultrassonografia para confirmação do diagnóstico. A obstrução no sistema urinário pode ocorrer em qualquer nível, desde a pelve renal até a uretra distal, sendo que a pressão intraluminal pode ser transmitida retrogradamente para os glomérulos, reduzindo a pressão e a taxa de filtração glomerular .10 Podem também ocorrer obstruções nos sistemas coletores de urina, sendo esee o caminho menos comum para o estabelecimento de LRA pós-renal, contando com menos de 5% dos casos.11
A análise da urina permanece muito importante na diferenciação entre a etiologia renal e pré-renal de LRA. A fração excretada de sódio, o sódio urinário, osmolaridade urinária, a razao entre creatinina urinária e plasmática, bem como o exame de análise do sedimento são utilizados com esse intuito. O balanço hídrico e o restante do contexto clínico também devem ser considerados nessa análise.12,13
FATORES DE RISCO PRÉ-OPERATORIOS ASSOCIADOS A INJURIA RENAL POS-OPERATORIA
Vários estudos têm identificado fatores de risco de LRA após cirurgias cardíacas, sendo que nesse tipo de procedimento a incidência de lesão renal pode alcançar 30%, de acordo com os critérios usados na classificação, sendo o status renal pré-operatório um dos principais determinantes do desenvolvimento de LRA no pós-operatório. Contribuem para esse desfecho: hipotensão intraoperatória, inflamação, hemólise e outros. São fatores de risco independentes: ser do sexo feminino e/ou possuir idade avançada. E os fatores de risco associados são: diabetes, doença vascular periférica, doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência cardíaca congestiva, longo tempo em bypass cardiopulmonar, entre outros. O risco de desenvolver DRC está relacionado a níveis elevados de creatinina no pré-operatório, portanto, para esses pacientes a hipotensão intraoperatória deve ser fortemente evitada e o tempo de bypass cardiopulmonar diminuído, quando possível.14-16
Em cirurgias não cardíacas, uma gama de diferentes fatores de risco para LRA pode ser identificada, como representado na Tabela 2:
ALTERAÇÕES LABORATORIAIS E CLINICAS OBSERVADAS NO PACIENTE COM LESÃO RENAL
Existem importantes limitações para o uso da CrP e clearance de creatinina na identificação precoce de LRA, sendo a CrP uma medida prontamente disponível e deve continuar sendo considerada como o primeiro guia na avaliação da disfunção renal (Tabela 3). Alguns fatores podem afetar a dosagem da creatinina, como massa corporal, estado catabólico, rabdomiólise, fatores dilucionais, drogas e outras substâncias que afetam sua secreção, e devem ser considerados na interpretação dos resultados. A Ur é influenciada por mais fatores que a CrP, mas se correlaciona melhor com complicações urêmicas.17 Equações preditoras podem ser usadas para estimar a taxa de depuração da creatinina endógena (DCE) a partir da CrP, como a proposta por Cockcroft e Gault, corrigida por um fator de 0,85 para mulheres:
Essas fórmulas, contudo, têm sua validade comprometida em contextos de rápida variação da creatinina sérica, em pacientes oligoanúricos ou em obesos.18 Novos biomarcadores de LRA têm sido investigados. A cistatina-C é um inibidor da cisteíno-proteinase, que é produzida por todas as células e está tendo seu papel avaliado como biomarcador. É filtrada livremente pelos glomérulos e, ao contrário da creatinina, não é secretada por células epiteliais renais. Destacadamente, a cistatina-C plasmática tem demonstrado aumento mais precoce do que a CrP em pacientes com LRA. Os biomarcadores urinários gelatinase neutrofílica (NGAL), molécula-1 e interleucina-18 estao sendo avalilados pelo seu potencial em diferenciar as causas pré e pós-renais de LRA, porém seu poder de discriminação não é alto.19
Secundariamente à LRA, a uremia pode acarretar hipercalemia, hiperfosfatemia, hipocalemia, hipoalbuminemia e acidose metabólica. Pacientes urêmicos podem ainda apresentar anemia e disfunção plaquetária e leucocitária, o que os torna mais suscetíveis a hemorragias e infecções no período perioperatório.10
AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO RENAL A PARTIR DO DÉBITO URINARIO
O débito urinário é facilmente mensurado por meio da inserção de uma sonda uretral acoplada a um sistema coletor. A produção diária de 400 a 500 mL de urina é necessária para a eliminação das excretas nitrogenadas. Em adultos, a oligúria é frequentemente definida como uma produção urinária menor do que 0,5 mL/kg/hora. A TFG diminui pelo efeito da anestesia, da atividade simpática, influências hormonais e redistribuição do fluxo sanguíneo, em cenários de vasodilatação sistêmica. Invariavelmente, o débito urinário diminui com a queda da pressão arterial e, dessa forma, a oligúria perioperatória é comum, sendo de origem pré-rena,l e não um reflexo de falência renal aguda. Por outro lado, débito urinário normal não exclui LRA, já que a forma não oligúria é a mais comum.12
FORMAS DE PROTEGER OS RINS DURANTE CIRURGIA E ANESTESIA
A fluidoterapia surge como boa opção terapêutica quando o objetivo é a proteção renal, recurso que se mostra importante naqueles pacientes que têm como etiologia da LRA a hipovolemia ou hipoperfusão renal. Entretanto, muitos pacientes possuem um quadro multifatorial, em que mesmo uma reposição vigorosa não impede o estabelecimento da lesão renal.20
Brochard et al.17 obtiveram, em estudo com pacientes gravemente enfermos, que o tratamento conservador com menor oferta de líquidos está associado a menos tempo de ventilação mecânica e de internação em UTI, apesar da mortalidade em 60 dias não ser diferente entre os dois grupos.17 Isso comprova a importância de se estabelecer indicações mais precisas de reposição de fluidos para minimizar complicações.
Algumas vezes o diagnóstico retrospectivo é a única opção de identificação da lesão renal, no entanto, em outros casos, parâmetros tais como débito urinário, débito cardíaco, ecografia e diferença da pressão de pulso podem auxiliar no diagnóstico da disfunção.21 Quando há a identificação de que o indivíduo se beneficiara da infusão de volume, surge a dúvida sobre qual a melhor solução para ser infundida. De maneira geral, os coloides possuem capacidade de permanecer no leito vascular por mais tempo com melhor resposta hemodinâmica, mas deve-se lembrar de que a albumina possui elevados riscos infecciosos e de reação anafilática. Entre os coloides não proteicos, o hidroxietilamido apresentou maior risco de lesão renal em pacientes sépticos. Há ainda o fator custo, que não pode ser negligenciado: o cristaloide é, em média, 95% mais barato. Atualmente, ambos são considerados seguros, de acordo com os trabalhos atuais, e devem ser usados de forma equilibrada, mas infere-se que mais estudos são necessários .3
As recomendações mais recentes revelam uma otimização hemodinâmica usando volume e drogas vasoativas para atingir débito cardíaco e níveis pressóricos satisfatórios, e a escolha do vasopressor deve ser guiada por características hemodinâmicas do paciente. Na literatura há divergências quanto ao uso da dopamina: o aumento do fluxo sanguíneo renal gera efeitos diuréticos, natriuréticos e de proteção renal, mas também taquicardia e hipertensão, mesmo em doses baixas. Uma pressão média de 65 mmHg é aceita como limite inferior para a maioria dos pacientes, exceto para idosos ou hipertensos, que possuem alvos maiores. A monitorização básica pode ser suficiente para grande parte dos pacientes, mas em alguns casos pode ser necessário o uso de ecocardiografia ou gasometria.3 Com a ecocardiografia pode-se dimensionar adequadamente o débito cardíaco do paciente e sua resposta ao tratamento proposto, além de ser um exame pouco invasivo. A gasometria auxilia a estabelecer parâmetros ideais na ventilação artificial e, quando necessário, orienta na correção de distúrbio acidobásico.
Considerando o conceito mais amplo de medicina perioperatória e dentro das possibilidades que as circunstâncias permitem, o anestesiologista deve orientar a suspensão e/ou manutenção adequada das medicações de uso habitual, corrigir os valores de CrP antes da cirurgia e buscar adequado equilíbrio acidobásico. Drogas nefrotóxicas como anti-inflamatórios, aminoglicosídeos e contrastes devem ser evitados. Se o uso do contraste for de extrema importância ou se houver risco de mioglobinúria, a indicação atual é estabelecer alto fluxo urinário. Fenoldopam é um agonista do receptor dopaminérgico DA1, utilizado como protetor renal, porém mais estudos a respeito desaa droga ainda são necessários para esclarecer seus efeitos. Durante a cirurgia a hiperglicemia necessita ser prevenida, e visando minimizar a diátese hemorrágica que acompanha frequentemente a disfunção renal, indica-se o uso de antifibrinolíticos. Bloqueadores do canal de cálcio devem ser considerados com o intuito de garantir proteção farmacológica ao sistema renal.3.16 Os diuréticos também apresentam efeitos protetores, contudo, não são recomendados na prevenção da lesão renal.2 A Figura 1 ilustra os métodos disponíveis para alcançar o objetivo de proteger o sistema renal.
MEDICAÇÕES E FUNÇÃO RENAL
Ao escolher as medicações a serem utilizadas no paciente com alterações no funcionamento do sistema renal no perioperatório, deve-se ter em mente o local de metabolização e excreção do fármaco e de seus metabólitos. As falhas na indicação das medicações podem levar à intoxicação, não funcionamento ou aumento no tempo de meia-vida da droga.
▪ agentes indutores e sedativos: o propofol, que possui metabolização hepática e excreção renal, tem se mostrado capaz de proteger os rins de injúria por isquemia e reperfusão, evento comum em cirurgia de aorta. O mecanismo ainda é incerto, incluindo regulação do sistema inflamatório e regulação da expressão de genes relacionados à apoptose celular.22 Os benzodiazepínicos devem ser evitados nos pacientes com DRC, uma vez que seus efeitos são potencializados nos mesmos. Etomidato e cetamina não possuem contraindicação nesses pacientes.
▪ opioides: a morfina é metabolizada no fígado e seus metabólitos ativos excretados pelo rim, portanto, deve-se diminuir sua dose em pacientes com doença renal. Devido à metabolização do remifentanil por esterases plasmáticas e ausência de metabólitos ativos como os encontrados no fentanil e alfentanil, esses opióides são bem tolerados pelos pacientes com doença renal. Sulfentanil deve ser evitado, por apresentar farmacocinética variável; e a meperidina, por apresentar metabólito ativo neurotóxico.23
▪ relaxantes musculares: ao administrar a succinilcolina, deve-se estar atento aos níveis séricos de potássio. Se o paciente apresentar hipercalemia ou uremia elevada, a succinilcolina está contraindicada; porém, em valores dentro da normalidade seu uso é seguro. Entre os bloqueadores neuromusculares não despolarizantes, atracúrio e cisatracúrio possuem forte indicação no paciente com insuficência renal. Tais medicações contam com degradação espontânea no plasma (eliminação de Hoffmann), o que leva à baixa excreção renal da dose inicial. Por apresentarem considerável aumento no tempo de duração de ação, pancurônio, vecurônio, rocurônio e mivacúrio devem ser evitados nesses pacientes.10
▪ anestésicos inalatórios: os produtos não voláteis dos anestésicos inalatórios são eliminados pelo rim. Metoxiflurano e enflurano apresentam efeitos nefrotóxicos. Sevoflurano usado em baixo fluxo pode produzir composto A, que possui nefrotoxicidade comprovada em ratos, mas não confirmada em humanos.1
▪ anticolinérgicos e anticolinesterásicos: ambos apresentam clearance diminuído, mas os anticolinesterásicos possuem meia-vida aumentada e deve-se manter a dose normal. Os anticolinérgicos diferem por apresentar meia-vida mais curta.10
MELHOR MANEJO DO PACIENTE COM DOENÇA RENAL CRONICA NO PERIODO PERIOPERATORIO
Atender um paciente com DRC requer atenção especial, uma vez que essa comorbidade é capaz de alterar a farmacocinética e a farmacodinâmica dos anestésicos e medicações. Os pacientes podem apresentar anemia importante, diminuição na fração de ejeção, hipertensão arterial de difícil controle, alterações no sistema de coagulação, diabetes mellitus e alterações eletrolíticas como hipercalemia. Esses indivíduos apresentam esvaziamento gástrico lentificado, devendo-se instituir condutas para prevenir broncoaspiração. As drogas dependentes de metabolização ou excreção renal devem ser evitadas; assim, propofol, remifentanil e cisatracúrio se mostram seguros. Ao usar anestésico inalatório, devese evitar enflurano ou metoxiflurano, pois levam à deterioração da função renal. Como alternativa há o sevoflurano, que embora produza composto A, é considerado seguro quando seguida a orientação de manter o fluxo de gases frescos acima de 1 L/ min. Atenção para proteger o membro que possui a fístula arteriovenosa, evitando-se punção ou uso de aparelho de medição da pressão nesse local.1
MELHOR EVIDENCIA EM PROTEÇÃO RENAL PERIOPERATORIA
No início da década de 2010, a Sociedade Internacional de Nefrologia publicou relevante estudo.2 que analisou dezenas de trabalhos sobre LRA. O resultado foi a criação de um guia clínico prático, apresentado de acordo com níveis de evidência científica, que tem muito a acrescentar à prática do anestesiologista. Esse estudo traz as principais recomendações atualmente em uso para prevenir a LRA. As Tabelas 4 e 5 apresentam um guia com a descrição e classificação das recomendações e evidências descritas no trabalho.
Recomendações
▪ na ausência de choque hemorrágico, recomenda-se o uso de cristaloide isotônico no manejo inicial para expansão do volume intravascular do paciente em risco de LRA ou LRA já estabelecida. (2B)
▪ o uso de vasopressores deve ser associado à fluidoterapia no paciente com LRA (1C).
▪ recomenda-se o uso de protocolos baseados no controle dos parâmetros hemodinâmicos (PAM > 65 mm Hg; PVC 8-12 mmHg; redução nos níveis de lactato; saturação venosa central > 70%; débito urinário > 50 mL/kg/h) para previnir LRA (2C).
▪ a insulinoterapia deve ser instituída com o objetivo de manter glicemia entre 110 e 149 mg/dL (2C).
▪ pacientes com LRA, independentemente do estágio, devem receber dieta preferencialmente via enteral, com 20-30 kcal/kg/d (2C). A ingestao de proteínas deve ser mantida (0,8-1,7 g/kg/d) (2D).
▪ o uso de diuréticos não está indicado na prevenção (1B), tampouco sugerido no tratamento de LRA (2C).
▪ a dopamina em dose baixas (1A) e IGF-1 (1B) não é recomendada na prevenção ou tratamento de LRA.
▪ não sugerem o uso do fenodolpam (2C) ou peptídeo natriurético atrial para prevenir (2C) ou tratar (2B) LRA.
▪ recém-nascidos com asfixia perinatal grave podem receber uma dose de teofilina (2B).
▪ quando possível, terapias com aminoglicosídeos devem ser substituídas. Se necessário, em pacientes com bom funcionamento renal devem ser administradas em dose única diária. Caso o tratamento requeira doses múltiplas diariamente, recomenda-se monitorização (1A e 2C) dos níveis da droga (2A e 2B).
▪ anfotericina-B em formulações lipídicas causam menos danos, comparado a formulações convencionais (2A). Quando possível, a terapia deve ser realizada com outros agentes (1A).
▪ em cirurgias cardíacas, as técnicas com ou sem circulação extracorpórea não devem ser escolhidas apenas como critério de proteção renal (2C).
▪ a N-Acetilcisteína não deve ser usada para prevenir LRA em pacientes com hipotensão (2D). Ela não é recomendada na prevenção de LRA pós-cirúrgica (1A).
CONCLUSÃO
Conforme as evidências apresentadas, o anestesiologista deve buscar a proteção renal dos pacientes cirúrgicos seguindo três passos: manter os parâmetros fisiológicos sistêmicos, observar a proteção farmacológica e evitar a nefrotoxicidade. Manuter a volemia, evitar hipotensão e hipertensão arterial sistêmica, anemia grave e alterações hemodinâmicas, bem como garantir bom suprimento de oxigênio aos rins, podem favorecer a função renal para seu funcionamento normal. Atingir esses parâmetros é um desafio que começa na avaliação inicial do paciente, otimizando, quando possível, os parâmetros renais no pré-operatório, e continua com a vigilância constante no intraoperatório e indicação adequada das medicações anestésicas. O objetivo final é diminuir a incidência de danos renais no perioperatório, diminuindo a morbimortalidade.
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