ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Histórico da Fonoaudiologia: relato de alguns estados brasileiros
Speech Therapy History: A report on some Brazilian states
Poliane Cristina de Lima Aarão1; Fernanda Caroline Braga Pereira1; Karoline Lopes Seixas1; Hildinéia Graças Silva1; Fernanda Rodrigues Campos1; Amanda Pereira Nunes Tavares2; Ana Cristina Côrtes Gama3; Stela Maris Aguiar Lemos3
1. Fonoaudióloga
2. Acadêmica do Curso de Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Fonoaudióloga. Professora Adjunta do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Poliane Cristina de Lima Aarão
Rua: Doutor Mário Guerra da Paixão, 278, Bairro: Industrial
Contagem, MG - Brasil, CEP: 32235-340
Email: polianeaarao@yahoo.com.br
Recebido em: 10/07/2009
Aprovado em: 15/09/2009
Instituição: Curso de Fonoaudiologia - Faculdade de Medicina Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
INTRODUÇÂO: o objetivo deste estudo foi realizar revisão na literatura nacional sobre a história da Fonoaudiologia e o percurso da ciência fonoaudiológica no Brasil. A maioria das informações sobre esse assunto consta, principalmente, em teses e dissertações.
DESENVOLVIMENTO: foram informadas datas e eventos marcantes que foram significativos para o desenvolvimento da profissional. O marco da história da Fonoaudiologia no Brasil ocorre na época do Império, em 1854, e, desde então, sofreu várias transformações até se consolidar no que é hoje. A história da fonoaudiologia é também descrita em vários estados brasileiros.
CONCLUSÃO: a reconstituição da história consolida as bases para o entendimento das mudanças e direciona para novos caminhos.
Palavras-chave: Fonoaudiologia/história; Fonoaudiologia/legislação e jurisprudência; Fonoaudiologia/tendências; Associações Profissionais; Revisão de Integridade Científica; Brasil.
INTRODUÇÃO
O registro da história da Fonoaudiologia no Brasil não está organizado e a maneira como se deu a sua implantação no estado de Minas Gerais é pouco documentada, com dúvidas sobre o seu início e desenvolvimento e quais caminhos seguidos e as influências que resultaram em seu estado atual. Entende-se que o conhecimento precede o reconhecimento. Deste modo, conhecer o caminho que a Fonoaudiologia percorreu no Brasil e entender esse processo possibilita melhor reflexão sobre a profissão na atualidade. E por que a reflexão é importante? Para que se possa traçar os novos caminhos da Fonoaudiologia, mudando paradigmas, quebrando preconceitos e derrubando barreiras.
Este estudo nasceu da iniciativa de discentes ingressantes no curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Minas Gerais com a finalidade de documentar o histórico da profissão em Minas Gerais, por meio de coleta de documentos e entrevistas com profissionais da área. Durante a constituição do banco de dados, observou-se que, apesar da existência de alguns artigos sobre a história da profissão no Brasil, grande parte das informações está presente em teses e dissertações, pouco divulgadas e conhecidas.
Este estudo objetivou realizar revisão da literatura nacional sobre a história da Fonoaudiologia e facilitar o acesso às informações sobre o seu percurso no Brasil.
O HISTÓRICO DA FONOAUDIOLOGIA NO BRASIL
Em diferentes períodos da história da humanidade os distúrbios da comunicação foram identificados e descritos.1 Colombat, em 1880, criou o termo ortofonia e o introduziu na primeira publicação que abordava temas como estudo da fonação, voz falada e cantada, gagueira e reeducação de surdos, o Tratado de Ortofonia.2
O marco da história da Fonoaudiologia no Brasil é da época do Império, quando foi criado, em 1854, o Imperial Colégio. Esse instituto era designado ao ensino de meninos cegos e hoje é chamado de Instituto Benjamim Constant. Em 1854, foi criado o Colégio Nacional, destinado ao ensino dos deficientes auditivos.3
No final do século XIX, devido ao processo migratório para as regiões de mais potencial e desenvolvimento industrial, a atenção à educação tornou-se essencial, pois se acreditava que a educação era fator determinante da mudança social.4 Motivados pela preocupação com os sinais de autonomia desses cidadãos que se agrupavam por costumes, língua falada e interesses, os órgãos responsáveis pela política da época identificaram tal situação como "patologia social".1
Objetivando combater essa doença, a escola tornou-se lugar privilegiado onde era possível reorganizar o ensino, levando o país à modernidade capitalista, capaz de desenvolver-se industrialmente. Desta forma, a atuação de professores especializados, articulada à série de iniciativas e interesses de grupos da sociedade, passou a ter importante papel nas formas de organização social.1
No início do século XX, mais precisamente em 1912, o Dr. Augusto Linhares, um dos precursores da Fonoaudiologia no Brasil, dedicava-se ao estudo e pesquisa na área de reabilitação de voz e da fala, ministrando aula em cursos para professores.2
A estruturação da profissão foi determinada pelo contexto político do período entre 1920 e 1940. O Brasil, após a Primeira Guerra Mundial, vivenciava a chegada de migrantes, a emergência da Revolução Industrial e acelerado processo de urbanização, tornando-se nação constituída por várias etnias. Nesse cenário estava vigente o primeiro governo Vargas, caracterizado por poder centralizado no Estado, no qual houve um processo de nacionalização da cultura no Brasil. Dessa forma, nessa época, diferentes instrumentos de educação coletiva foram criados ou desenvolvidos visando educar o povo a promover o ensino de bons hábitos. O rádio, o cinema educativo, o esporte, a música popular participavam do objetivo comum de integrar os indivíduos no novo Estado nacional, tendo como pressuposto a ação do Estado como salvador do povo.5
Na década de 30 surgiu o Ministério da Educação e da Saúde. O poder centralizado e a força do Poder Executivo passaram a exercer um poder autoritário: o Estado Novo, no qual o setor industrial foi definido como carro-chefe da economia nacional.6
No final do século XVIII, início do século XIX surgiu pela primeira vez o conceito de higiene, entendido como "a arte de conservar a vida" 7. Esse conceito indicou o rumo que a higiene tomaria como princípio por ideologias liberais (que afirmavam as responsabilidades individuais) e como conceito político nos movimentos utópicos e anarquistas da época (determinação social do processo saúde-doença).
O projeto da higiene, em sociedade dividida em classes, com o conhecimento monopolizado no interior das profissões, foi transformado em medidas de controle e de autoritarismo. Apareceram no Brasil ideários da existência do "caminho da civilização"7, que postulou entre os políticos brasileiros as seguintes premissas higienistas: possibilidade de aperfeiçoamento moral e material que teria validade para qualquer povo e a grandeza e prosperidade dos países, acontecendo por meio da solução de problemas sanitários. Acreditava-se que haveria uma forma científica, supostamente acima dos interesses particulares e dos conflitos sociais em geral, de gestão dos problemas da cidade e das suas diferenças sociais.7
Baseado no percurso teórico-reflexivo era possível realizar a aproximação da construção histórica da higiene e sua representação nas sociedades humanas e mesmo de sua transformação em caminho possível para o progresso e bem-estar da população, seja por ações da então saúde pública ou pela ação educativa. A higienização desempenhou papel social integrado, com a capacidade de penetrar, moldar e modificar a cultura global e de se apresentar oficialmente como o único caminho possível para o desenvolvimento, progresso e a não degeneração do país, ou seja, a civilização.8
O higienismo (eugenismo) no Brasil fez sua história a partir do movimento social que instituiu a Liga Brasileira de Hygiene Mental. Ela foi criada em 1923 pelo médico Gustavo Riedel que, junto com outros intelectuais da época, estava interessado em realizar no Brasil o aprimoramento da raça, em prol do desenvolvimento da nação.
Na perspectiva positivista, que compreendia o funcionamento social a partir de leis naturais de desenvolvimento e organização, as dificuldades pelas quais a nação passava eram devidas à natureza multirracial de seu povo. Essa natureza conjugava aspectos hereditários negativos como indolência, preguiça, gosto pelo ostracismo, tendência à criminalidade, etc. Baseado na compreensão da natureza da organização social, a Liga Brasileira de Hygiene Mental visava defender a mentalidade da raça, combatendo alcoolismo e vícios sociais, selecionando a imigração, controlando casamentos, esterilizando compulsoriamente degenerados, fazendo seleção e orientação profissional, dando atendimento à infância com vistas ao desenvolvimento mental sadio e eugênico. O ressurgimento dessas ideias no final do século XIX foi consequência do desenvolvimento tecnológico que permitia conhecer os mecanismos de transmissão e contaminação de doenças e da necessidade dos homens de obterem algum controle sobre a organização da vida em sociedade.8
Os ideais da Escola Nova com o fervor das ideias higienistas influenciaram a educação brasileira, a partir da década de 20. A força do Movimento Nacionalista pela Erradicação do Analfabetismo buscou número mais expressivo de eleitores e a emancipação do país perseguiu a ampliação da rede escolar. Os políticos da época acreditavam que o meio principal para a absorção desses valores era a escola, por meio dos educadores que alcançariam não só a instrução, mas também a moralização de todos os cidadãos. As ideias escolanovistas encontram, dessa forma, terreno ideal para sua implantação. Essa escola teve como eixo principal de preocupação o aluno, com base no desenvolvimento integral do indivíduo, inspirada na Psicologia e na Sociologia, com o intuito de democratizar o ensino, tornando-o público e gratuito; e a aprendizagem decorrente do treinamento e do trabalho, estimulando também a convivência social e a cooperação.4,9
Esse ideário, entretanto, teria elevado custo em relação à escola tradicional, o que levou à criação de escolas experimentais que serviram principalmente à elite, em detrimento das camadas sociais populares, com a ideia de que é melhor boa educação para poucos do que educação deficiente para muitos.9
As ideias higienistas e os avanços na Medicina colaboravam com a detecção e a classificação das anomalias orgânicas e funcionais da fala, descrevendo o perfil do portador da alteração e demonstrando a necessidade de profissional responsável por sua eliminação, que seria o professor especializado, profissional da época que mais se assemelhava ao atual fonoaudiólogo. O higienismo pregava a existência do homem sadio e culto, que promoveria o progresso do país. Neste contexto, proliferava o combate ao estrangeirismo, na tentativa de instituir a língua brasileira.
O movimento de defesa e preservação da língua nacional também passou a indicar "impurezas", "vícios" e "defeitos" no uso da língua, termos que carregavam conotação negativa, que discriminavam e estigmatizavam o indivíduo a partir de sua classe social. Da mesma forma que a educação, o uso correto da linguagem foi considerado forma de ascensão social, sendo que quaisquer desvios do padrão mostravam inferioridade social, determinando a classe à qual o indivíduo pertencia.9
Na década de 30, os profissionais especializados atuavam nas escolas com a profilaxia e correção dos desvios de linguagem e defeitos dos escolares, em que estavam incluídas as variações dialetais, comuns entre os filhos de imigrantes.2
A escola, sendo o local onde a detecção dos desvios ocorria, teve o socorro da Medicina e da Psicologia quanto ao suporte científico, determinando o que é patogênico e o normal e verificando as capacidades e incapacidades de cada indivíduo, centrados nos ideais escolanovistas.9
Apesar do discurso nacionalista, os cuidados com a linguagem tomaram os mesmos rumos das demais medidas educacionais e de saúde populacionais, com o descaso do governo levando à criação de iniciativas isoladas, como a de se fazer o cumprimento do Código de Educação do Estado de São Paulo. Esse código propunha a criação de classes especiais de Ortofonia e a formação de professores especializados na correção de vícios de linguagem. No Código de Educação citado, eram mencionadas as escolas ortofônicas destinadas a alunos com perturbações articulatórias, dislalias, balbucio, tartamudeio e gagueira.9
As décadas de 40 e 50 marcaram as iniciativas concretas de atuação do professor especializado. O professor indicado para a eliminação dos problemas recebia formação específica informal, apoiada na prática e na leitura de material estrangeiro, além de cursos que geralmente duravam três meses. Após a conclusão destes, passavam a ser chamados de terapeutas da palavra ou logopedistas.4,6,9
O título de ortofonista ou de audiologista dado aos professores que se especializavam era valorizado socialmente pela proximidade com a área da saúde. O perfil do profissional prevalecia técnico, mas passava de atuação exclusivamente educacional para o contexto clínico, incentivando a criação de curso de Logopedia ou Terapia da Palavra, voltado principalmente para a reabilitação.1,2,4,6,9
Ainda nessa época, os primeiros movimentos de reabilitação sistemática dos distúrbios da comunicação foram formados, como a criação do setor de Terapia da Palavra no AFAE, criação do curso de Logopedia no Hospital São Francisco de Assis e o curso na Sociedade Pestalozzi. Tais iniciativas eram isoladas a âmbitos restritos e isentas de intercâmbio entre si, sendo ainda percebido caráter essencialmente técnico cuja prática baseava-se na correção de desvios de voz e fala, sob a influência constante da Educação, Psicologia e Medicina.2
A década de 60 marcou o início da institucionalização da Fonoaudiologia, com a vinda do Dr. Julio Bernaldo Quirós e de sua assistente Rosa Vispó, da Argentina, para o Brasil. Destacaram-se, ainda, os trabalhos de dois médicos brasileiros: Dr. Mauro Spinelli e Dr. Américo Morgante, que estiveram à frente, respectivamente, dos dois primeiros cursos de Logopedia do país. O primeiro surgiu na Universidade de São Paulo, vinculado à Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, em 1960, seguindo os moldes da formação na Argentina, relacionado à demanda médica. O segundo surgiu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ligado ao Instituto de Psicologia, em 1962, a partir de questões educacionais verificadas pelos psicólogos. Inicialmente, tais cursos tinham um ano de duração e em ambas as instituições a prática antecipou a formação.9-12
A sistematização acadêmica vem legitimar o perfil do profissional anteriormente delineado, o que reafirma que a Fonoaudiologia não surge com a institucionalização do ensino e sim com a prática que antecedeu a criação dos cursos. Da mesma forma, a consolidação e valorização do profissional, nesse período, eram obtidas por meio do trabalho clínico somado às escassas publicações.6,9,11
O crescimento do número de profissionais decorrido da institucionalização gerou a necessidade da criação de órgãos de classe, o que resultou na fundação da Associação Brasileira de Fonoaudiologia, em 1962, a primeira entidade de classe no Brasil. A definição da profissão enfrentou muitas lutas. A primeira delas veio com a busca da regulamentação da profissão como curso superior, uma vez que cursos de curta duração caracterizariam a Fonoaudiologia como curso técnico, cujo profissional estaria sob subordinação de outro profissional. Eram usados, nesse contexto, argumentos como a falta de experiência e domínio dos otorrinolaringologistas sobre temas como a gagueira e a linguagem.11
Em 1971, o senador André Franco Montoro propôs projeto de lei que objetivava organizar e legalizar a profissão. Nessa época, o principal trabalho fonoaudiólogo no Brasil baseava-se na apresentação da profissão para os deputados e senadores, pois estes não conheciam o domínio de atuação da fonoaudiologia. Esse primeiro projeto foi devolvido aos fonoaudiólogos para que fosse decidido o termo que seria utilizado para nomear a profissão: Logopedia, Terapia da palavra ou Fonoaudiologia. O projeto foi tentado mais uma vez em 1975, com fracasso.11
Em 1979, sob o respaldo do Deputado Pedro Faria, o projeto foi levado mais uma vez para votação e novamente não alcançou êxito.11,12
O processo de reconhecimento da profissão ainda enfrentou obstáculos. Um deles foi a tentativa de obrigar os fonoaudiólogos, juntamente com psicólogos, fisioterapeutas e outros profissionais da área da saúde a atuar somente sob a supervisão de médicos.11,12
O estudo sincrônico do histórico da Fonoaudiologia no mundo e no Brasil foram realizados com o objetivo de fornecer subsídios aos Poderes Legislativo e Executivo para a aprovação da Lei 6.965.2
Finalmente, em 1981, foi aprovada a regulamentação da profissão, pelo Deputado Otacílio de Almeida, tendo à frente a Associação Brasileira de Fonoaudiologia (ABF). As diretorias que assumiram as gestões de 1979 e 1981 empenharam-se nesse período, formando a Comissão Nacional pela oficialização da profissão.11,12
Em 09 de dezembro de 1981, a Lei nº 6.965, que regulamenta a profissão de Fonoaudiólogo, foi sancionada pelo então presidente João Figueiredo. Com ela, também foram criados os Conselhos Federal e Regionais de Fonoaudiologia.13
As atividades do CFFa (Conselho Federal de Fonoaudiologia) iniciaram-se em 1983 e, no ano seguinte, foi aprovado o primeiro Código de Ética da Fonoaudiologia, determinando os direitos, deveres e responsabilidades do fonoaudiólogo.
O fonoaudiólogo é, então, definido pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia como:
Profissional da saúde de atuação autônoma e independente, que exerce suas funções nos setores público e privado. É responsável pela promoção da saúde, avaliação e diagnóstico, orientação, terapia (habilitação e reabilitação) e aperfeiçoamento dos aspectos fonoaudiológicos da função auditiva periférica e central, função vestibular, linguagem oral e escrita, voz, fluência, articulação da fala, sistema miofuncional orofacial, cervical e deglutição. Exerce também atividades de ensino, pesquisa e administrativas.3
O primeiro Congresso de Fonoaudiologia ocorreu em 1978 e surgiu como incentivo científico à profissão, quando a formação do fonoaudiólogo já se encontrava definida. Foram criados também periódicos como a Revista de Atualização em Fonoaudiologia, por iniciativa do Dr. Orozimbo Alves da Costa Filho, a revista Distúrbios da Comunicação, da PUC-SP, e a revista Lugar em Fonoaudiologia, da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, iniciando fase de mais maturidade nos anos 80.11
O HISTÓRICO DA FONOAUDIOLOGIA EM DIVERSOS ESTADOS BRASILEIROS
A Fonoaudiologia, em cada estado brasileiro, foi impulsionada por interesses distintos e em momentos diferentes, em relação ao que acontecia no Brasil. Desta maneira, é preciso descrever cada um desses momentos: 1. São Paulo: as mudanças ocorridas na língua decorrentes dos movimentos imigratórios nacionais e internacionais caracterizaram a origem da Fonoaudiologia em São Paulo. No final do século XIX e início do século XX, o estado passava por processo de urbanização bastante acelerado e, consequentemente, grupos de diferentes culturas e línguas se formavam. Assim como foi local de entrada para imigrantes, São Paulo também foi o local de origem da Fonoaudiologia no Brasil. Tanto no Brasil como na América latina, o médico argentino Júlio Bernaldo de Quirós foi o incentivador de estudos, cursos e também formador de vários profissionais médicos e fonoaudiólogos. Ele estabeleceu vínculos com várias instituições, principalmente em São Paulo, onde desenvolveu seu trabalho. Segundo dados da Universidade de São Paulo, em 1961, o Dr. Américo Paulo Morgante, do serviço de otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, com a colaboração de Quirós, abriu o primeiro curso de Fonoaudiologia do Brasil. Um ano depois, Quirós, em parceria com Ana Maria Poppovic, vinculada ao Instituto de Psicologia da PUC-SP, criaram o segundo curso, com duração de um ano, assim como o da USP. A partir desse momento, a Fonoaudiologia se estendeu para todo o país, revelando sua importância para a melhoria da qualidade de vida dos brasileiros.14
As atividades de ensino em Fonoaudiologia, segundo dados da Universidade Federal de São Paulo, começaram em 1968, sob a direção do Professor Dr. Pedro Luiz Mangabeira Albernaz, com dois anos de duração. Em 1981, foi fundada a disciplina de Fonoaudiologia e, posteriormente, em 1985, foi denominada disciplina dos Distúrbios da Comunicação. O grande desenvolvimento desta disciplina na Escola Paulista de Medicina, em consonância com os avanços observados em outros centros de pesquisa e formação nacionais e internacionais, mostrou a necessidade de se reorganizarem os conhecimentos sobre os distúrbios da comunicação humana em, pelo menos, duas grandes áreas de concentração. Surgiu, então, em 1988, a disciplina dos Distúrbios da Audição, como integrantes do Departamento de Otorrinolaringologia, e Distúrbios da Comunicação Humana, da Universidade Federal de São Paulo;15 2. Rio de Janeiro: na cidade do Rio de Janeiro, a Medicina e a Educação tiveram influência decisiva na constituição da Fonoaudiologia. Na matriz médica, o surgimento dos programas de higiene escolar, a atuação focada no estudo dos distúrbios da comunicação e o desenvolvimento da Foniatria deram o impulso para a constituição e consolidação do profissional logopedista. A Logopedia seria a parte pedagógica da Foniatria, responsável pela solução de problemas de aprendizagem e aperfeiçoamento dos padrões de voz e fala. No âmbito médico, destacava-se o papel do foniatra Dr. Pedro Bloch, como professor de cursos para Logopedia no Rio de Janeiro. A matriz educacional foi considerada fundadora, com o estabelecimento de práticas educacionais voltadas para o tema de comunicação humana e seus distúrbios. Os cursos de Logopedia iniciaram-se com a proposta de cursos de especialização para professores, devido à necessidade de ampliar a compreensão quanto às dificuldades encontradas no desempenho dos escolares. Assim, na cidade do Rio de Janeiro, a necessidade e a existência dos cursos de Logopedia possuíam uma base médica sólida, mas prioritariamente voltada para as questões educacionais;16 3. Rio Grande do Sul: as práticas fonoaudiológicas no Rio Grande do Sul datam do início do século XX, tendo grande ênfase na educação de surdos.17,18 Assim como em outras regiões do Brasil, a Fonoaudiologia no Rio Grande do Sul foi constituída por profissionais de distintas formações. O primeiro curso de Fonoaudiologia do estado foi criado em 1970 na Universidade Federal de Santa Maria. Nessa mesma década, no ano de 1972, foi criada a Associação Riograndense de Fonoaudiologia (ASFA), a fim de lutar pela regulamentação da profissão.16 Na década de 90, a Fonoaudiologia já estava estruturada como ciência no Rio Grande do Sul, que contava com diversos profissionais formados, pós-graduados, mestrandos e doutorandos;18 4. Minas Gerais: nesse estado a Fonoaudiologia possuía mercado promissor e amplo e ainda não totalmente conquistado. Os fonoaudiólogos começaram a se estabelecer no final da década de 70. Anteriormente a esse período, eram poucos profissionais e havia desinformação sobre a profissão, o que gerava reprimida demanda. A motivação que impulsionou o estabelecimento de fonoaudiólogos no estado foi o convênio com a Legião Brasileira de Assistência (LBA), por essa exigir das clínicas credenciadas a presença do fonoaudiólogo na equipe de trabalho.19 A luta desses profissionais levou à criação de entidades regionais, como o Núcleo Mineiro de Fonoaudiologia em 1979 e a Associação Mineira de Fonoaudiologia (AFOMIG), em 1980, com o intuito de unir os profissionais pela regulamentação da profissão, permitindo o reconhecimento da Fonoaudiologia como ciência.19,20 A década de 90 foi o período de institucionalização no estado. O primeiro curso foi criado no Instituto Metodista Izabela Hendrix, no ano de 1990, e no ano de 2000 surgiu o primeiro curso público de Fonoaudiologia, na Universidade Federal de Minas Gerais;21,22 5. Bahia: os primeiros fonoaudiólogos atuantes na Bahia procediam de outros estados do país e chegaram à Bahia em meados dos anos 80.23 A Fonoaudiologia consolidou-se com o aumento do número de profissionais, o que ocorreu, principalmente, devido à criação dos cursos de graduação, em 1999. Nessa época foi criado o curso na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Na década seguinte, foi criado o curso na União Metropolitana de Ensino e Cultura (UNIME);23 6. Paraíba: os primeiros fonoaudiólogos atuantes na Paraíba foram de marcante importância para a consolidação da Fonoaudiologia no estado e para a criação, em 1997, da FAP (Fonoaudiólogos Associados da Paraíba), órgão associativo voltado para a promoção do trabalho fonoaudiológico. Em 1998, foi criado o curso de Fonoaudiologia em João Pessoa, o que refletiu na expansão da profissão no estado da Paraíba.24 Dessa forma, os fonoaudiólogos atuantes na Paraíba eram graduados em cidades como João Pessoa, Pernambuco e Petrópolis. A minoria concluiu o curso nos anos de 1970, 1980 e 1990 e a maioria nos anos de 2000 a 2002.24
CONCLUSÃO
No passado, a Fonoaudiologia encontrava-se conjugada a práticas exclusivamente técnicas, sendo hoje exclusiva dos fonoaudiólogos. Reconhecer todas as lutas e conquistas reafirma a necessidade de mudar a imagem tecnicista, que por vezes ainda é atribuída aos fonoaudiólogos. Conhecer a própria origem é reafirmar no presente, de maneira consciente, a capacidade transformadora dos fonoaudiólogos, para garantir o futuro de desenvolvimento e valorização da profissão e da ciência fonoaudiológica. Isso é possível pela análise reflexiva do cotidiano da Fonoaudiologia e do conhecimento de suas práticas iniciais e da sua função social. A recapitulação da história permite conhecer as transformações sofridas pela Fonoaudiologia ao longo do tempo e possibilita visão crítica dos fatos, importante para a sua definição no Brasil.
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