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CAPES/Qualis: B2
Análise compreensiva do significado dado pelos pais e responsáveis às ações do poder público em relação ao uso de crack e outras drogas pelo filho
Comprehensive analysis of the importance given by parental figures pertaining to state action related to the use of crack and other drugs by their children
Bruno David Henriques1; Amanda Márcia dos Santos Reinaldo2; Lilian Fernandes Arial Ayres3; Marina Silva de Lucca4; Regina Lunardi Rocha5
1. Enfermeiro. Doutor em Ciências da Saúde. Professor Adjunto do Departamento de Medicina e Enfermagem da Universidade Federal de Viçosa-UFV. Viçosa, MG, Brasil
2. Enfermeira. Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica. Professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil
3. Enfermeira. Doutora em Enfermagem e Biociências. Professora Adjunto do Departamento de Medicina e Enfermagem da Universidade Federal de Viçosa-UFV. Viçosa, MG, Brasil
4. Médica. Residência em Psiquiatria. Professora Auxiliar do Departamento de Medicina e Enfermagem da Universidade Federal de Viçosa-UFV. Viçosa, MG, Brasil
5. Médica. Doutora em Medicina Tropical. Professora Associada da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil
Bruno David Henriques
E-mail: bruno.david@ufv.br
Recebido em: 23/10/2015.
Aprovado em: 09/01/2017.
Instituiçao: Universidade Federal de Viçosa Viçosa, MG - Brasil.
Resumo
OBJETIVO: Essa pesquisa teve como objetivo compreender o significado e vivência dos pais e responsáveis sobre o filho usuário de crack e outras drogas nos aspectos que tange às ações do poder público.
MÉTODOS: Foi utilizada a pesquisa qualitativa, sendo a fenomenologia a corrente de análise. Foram realizadas 11 entrevistas, sendo a análise fundamentada em três momentos: a descrição, a redução e a compreensão fenomenológica.
RESULTADOS: Após a análise dos dados, foram elaboradas três categorias que desvelam a essência do significado dado pelos pais e responsáveis ao uso de drogas. No presente artigo destaca-se a categoria relacionada às percepções e críticas às ações do poder público no enfrentamento do uso/abuso de drogas. Na busca da compreensão desse fenômeno foram avaliados três temas de análise ou subcategorias relacionados à questao principal e descritos a seguir: as limitações e dificuldades do tratamento realizado pelo CERSAMi; a escola como fator de risco; e, por fim, a negligência do poder público no apoio à família.
CONCLUSÃO: Abordar a relação do fenômeno do consumo de crack e outras drogas entre crianças e adolescentes não é tarefa simples. Nesse sentido, compreender os significados dos sujeitos envolvidos com essa temática possibilitará o desenvolvimento de ações que venham ao encontro das necessidades dos familiares em relação às questoes que envolvem o poder público.
Palavras-chave: Cocaína Crack; Família; Criança; Adolescente; Pesquisa Qualitativa.
INTRODUÇÃO
A dependência química se tornou problema de saúde pública importante e tem desafiado os profissionais de diversas áreas a compreender a magnitude da situação e a encontrar a abordagem adequada. Uma situação que tem chamando atenção tanto do poder público quanto dos órgaos de saúde, das universidades e da sociedade é o aumento do consumo de substâncias ilícitas, em especial do crack e outras drogas, portanto, o tema tem sido alvo de preocupação. Trata-se de um problema também de natureza social, pois além da deterioração que causa, rompe a estabilidade familiar, induz à criminalidade e enfraquece a capacidade laborativa de um país.
O crack surgiu na década 80 do século XX, nos Estados Unidos. O primeiro relato de seu uso no Brasil foi em 1989 e a primeira apreensão foi em 1991. As apreensões têm aumentado com o passar dos anos, o que evidencia sua rápida popularização. Como o material era desconhecido, os traficantes tiveram papel fundamental em sua apresentação e na adesão das pessoas. Começaram a esgotar a reserva de outras drogas nos pontos de distribuição, disponibilizando somente o crack, consequentemente, os usuários viram-se obrigados a consumi-lo por falta de opção.1
Trata-se de droga fumada, composta por cocaína e bicarbonato de sódio, sendo considerada forma impura da cocaína, e não um subproduto. Em função dessa composição, o preço é acessível e sua aquisição é simples e rápida. Esse panorama tem relação direta com o aumento significativo do uso do crack nas últimas décadas.2,3
Em levantamento domiciliar realizado no Brasil em 2005 constatou-se que aproximadamente 22,8% da população havia feito uso de alguma droga (lícita) psicotrópica na vida. Nas ilícitas, a maconha foi a mais citada (8,8%), seguida pelos solventes (6,1%), tendo o crack ficado na 11ª posição (0,7%), juntamente com os barbitúricos. Ressalta-se que, mesmo não estando entre as drogas ilícitas mais consumidas no País, a urgência pelo uso, o grande poder de dependência, a violência, o comportamento sexual de risco e outros desequilíbrios de ordem sociossanitárias evidenciam uma situação que deve ser enfrentada e combatida.4,5
O governo brasileiro tem estimulado o debate e o enfrentamento por meio do Plano Integrado de Enfrentamento do Crack e Outras Drogas, instituído pelo Decreto 7.179 de 20 de maio de 2010. A proposta tem como objetivo a prevenção do uso, o tratamento, a reinserção social de usuários e o enfrentamento do tráfico.
Entre as ações previstas pelo plano destacam-se a descentralização e a integração, por meio da conjugação de esforços entre a Uniao, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, observadas a intersetorialidade, a interdisciplinaridade, a integralidade e a participação da sociedade civil. Além disso, prevê a integração e a articulação permanente entre as políticas e as ações de saúde, assistência social, segurança pública e educação.6
A recuperação da dependência nunca foi tarefa fácil. Não se trata única e exclusivamente de mudança de hábito, mais do que isso, deve-se pensar em mudança que envolve o cuidado relacionado ao indivíduo e às suas vulnerabilidades, o ambiente social, o ambiente familiar e as alterações neuroquímicas provocadas pela droga.7
Mesmo com as estratégias propostas, observa-se que o uso compulsivo do crack e outras drogas vem aumentando, e esse panorama entre crianças e adolescentes é preocupante. A situação interfere diretamente na dimensão individual do jovem usuário, com consequências biológicas, emocionais e também o comprometimento do relacionamento social, de modo que os vínculos coletivos e familiares estáveis e normalizados se fragilizam e se rompem, marginalizando-o progressivamente.8
A família, pelo papel de inserir seus membros na cultura e ser instituidora das relações primárias, influencia o modo como o adolescente reage à ampla oferta de droga na sociedade atual. A relação familiar saudável é um fator que proporciona segurança para toda a vida, sendo esse apoio fundamental principalmente para o adolescente. No entanto, problemas iniciados na infância e enfrentados na adolescência têm um contexto ampliado, quando comparados a outras faixas etárias.9
A família é a principal instituição responsável pelo processo de socialização, com papel de destaque na criação de condições que não levem os filhos a entrarem no mundo da droga, como também de fortalecer sua rede de proteção. Quando esses mecanismos não funcionam e a rede familiar é afetada, é necessário construir e buscar estratégias de apoio, pois a família precisa ser ouvida, compartilhar as angústias e ter atenção adequada para enfrentamento do problema.10
Portanto, é preciso conhecer as repercussões e as implicações do uso de crack e outras drogas na estrutura e na dinâmica familiar. A determinação e a elaboração de estratégias que ofereçam suporte e cuidado adequado são imprescindíveis. Sendo assim, há a necessidade de proporcionar uma reflexão sobre os desafios inerentes à complexidade da relação uso de drogas, filhos e ambiente familiar.
O objetivo deste estudo foi compreender o significado e vivência dos pais e responsáveis sobre o filho usuário de crack e outras drogas nos aspectos que tangem as ações do poder público.
MÉTODOS
Foi realizada abordagem qualitativa, pois estava-se diante de percepções e vivências dos sujeitos sobre o fenômeno. Não foi possível mensurar ou quantificar os relatos, uma vez que existia um emaranhado de questoes subjetivas envolvidas em cada experiência. O estudo não teve como proposta evidenciar causas, dar explicações, nem se prender a generalizações ou quantificações sobre o tema.
Na pesquisa qualitativa a necessidade central é compreender o objeto estudado como único, que representa a realidade singular, multidimensional e historicamente situada. A metodologia qualitativa é capaz de incorporar a questao do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, às estruturas sociais e às vivências. Portanto, essas características são tomadas, tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas que buscam conhecer e compreender as experiências individuais e coletivas dos sujeitos estudados.11
Há de se debater a abordagem qualitativa aplicada à saúde a partir da concepção trazida das Ciências Humanas, cuja proposta não é estudar somente o fenômeno, mas compreender o significado que esse evento representa para os indivíduos. Esse significado tem função estruturante, com foco na compreensão e interpretação das questoes dos sujeitos. Nesse sentido, as pessoas organizarao suas vidas, incluindo seus próprios cuidados com a saúde.12
Entre as abordagens qualitativas elegeu-se a fenomenologia como percurso metodológico, pois o objetivo foi refletir a experiência vivida pelas pessoas em relação ao uso de crack por crianças e adolescentes e o impacto no seio familiar, como também buscar a compreensão da essência do fenômeno.
A fenomenologia é corrente que tem como objetivo descrever os fenômenos de forma consciente, sem buscar as causas ou explicações. O fenômeno é aquilo que se mostra ao sujeito, que se manifesta para consciência como resultado de uma interrogação, mas que precisa ser desvelado. O pesquisador deve estar atento para a perspectiva básica do seu trabalho, que será sempre de descrever o fenômeno, e não explicá-lo.13
Na busca de desvelar o fenômeno interrogado, o pesquisador do mundo-vida dos sujeitos que o vivenciam, em outros termos, procura estabelecer contato direto com o fenômeno situado. Nessa perspectiva, o pesquisador não parte de um referencial teórico estabelecido a priori, pois é por meio de suas experiências que é possível interrogar o mundo ao redor.14,15
A pesquisa fenomenológica está dirigida para os significados, ou seja, as percepções que o indivíduo tem sobre o que está sendo pesquisado e que são expressas pelo próprio sujeito. O pesquisador não se preocupa com o fato, mas com o significado dos eventos. O foco no significado permite descobrir suas experiências e certos determinantes sobre as situações e sobre o sujeito.16,17
O trabalho contou com a participação de pais de crianças e adolescentes que fazem uso de crack e outras drogas e são acompanhadas no Centro de Referência em Saúde Mental Infanto-Juvenil (CERSAMi) de Belo Horizonte. A nomenclatura equivale ao Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi), como é conhecido em todo Brasil, portanto, os termos podem ser utilizados como sinônimos.18 O serviço é responsável pelo atendimento e acompanhamento ambulatorial de crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e/ou usuários de drogas lícitas e ilícitas.
Trata-se de estudo de abordagem qualitativa, o que impossibilita determinar antecipadamente o número de sujeitos que participariam das entrevistas, por isso, adotou-se o critério da saturação para encerrar a coleta de dados. A saturação das informações é caracterizada pela repetição das falas e quando as informações obtidas se tornam redundantes, não sendo considerado relevante persistir na coleta a partir da avaliação do pesquisador.19 Esse momento ocorreu com a realização da entrevista de número 11.
A coleta dos dados começou após a aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte, conforme parecer nº 414.777/2013, e no Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) da Universidade Federal de Minas Gerais, conforme parecer nº 257.242/2013.
Antes do início das entrevistas, foram explicados os objetivos do trabalho a cada entrevistado, com informações referentes à sua participação. Após o aceite, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), obedecendo às normas de pesquisas que envolvem seres humanos, por meio da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.20
As entrevistas foram realizadas utilizando uma única questao norteadora: "Como é para você ter um filho que faz uso de drogas?". Ao final de cada entrevista, os dados foram transcritos e, posteriormente, comparados novamente com a gravação.
Para compreensão do significado dado pelos pais ao fenômeno, fundamentou-se a análise das entrevistas em três momentos: a descrição, a redução e a compreensão fenomenológica. Após a análise dos dados, para a tese de Doutorado foram elaboradas três categorias e 19 temas de análise ou subcategorias que evidenciam a essência dos significados dados pelos pais ou responsáveis sobre o contexto descrito anteriormente.16
O presente trabalho fundamentou os resultados e a discussão nos aspectos que tangem à primeira categoria - percepção das ações do poder público no enfrentamento do uso/abuso de drogas e suas críticas, com seus três temas de análise ou subcategorias, que são descritos a seguir: A escola como fator de risco; A negligência do poder público no apoio à família; Limitações e dificuldades do tratamento realizado pelo CERSAMi.
RESULTADOS
Percepções e críticas às ações do poder público no enfrentamento do uso/abuso de drogas
Na construção dessa categoria de análise, foram avaliadas as falas que confluíram para os aspectos relacionados às limitações e dificuldades das ações públicas no enfrentamento do uso de crack e outras drogas entre crianças e adolescentes. A seguir, destacam-se as falas que fundamentaram a construção dos temas de análise.
A escola como fator de risco
Fundamentados nas falas realizadas na pesquisa, os cenários educativos, como a escola, aparecem como locais de consumo precoce.
[...] ele estava bem, mas quando veio estudar [...] no colégio onde ele estudava [...] que não é um bom colégio [...] As crianças infelizmente se envolvem com esse negócio fácil, dentro da escola. Eu acho que tinha que ter uma atuação do governo, da secretaria, assim como muitas coisas são barradas em certos lugares, e está chegando dessa situação entrar na escola, deveria ver um sistema que pudesse evitar a entrada dessas coisas na escola [...] é questao de briga na porta da escola, morte na porta da escola, agressão a professores [...] Como eles falam que a educação começa na escola, a escola tem muitos ensinos atualizados, mas de repente tem muita coisa precisando mudar [...] a segurança também [...] crianças e meninos da idade dele [...] só falam de armas, só entram na internet para saber sobre a folha de maconha [...] não tem um limite [...] tem que ter o limite que a própria escola pode colocar relacionado à sua autoridade [...] reprimir, limitar certas situações [...] criança está na escola para estudar [...] a escola seria para formar os cidadaos de bem, infelizmente algumas escolas permitem esse tipo de coisa entrar [...] Ele começou a conhecer [...] foi na escola [...] tendo informações [...] sendo que era para ter informações sobre estudo, conhecimentos tecnológicos [...] na escola aqui, muitas crianças já foram mortas [...] por envolvimento com droga[...] (FAM. 06).
[...] Infelizmente, aconteceu com o próprio colega dentro de sala de aula [...] colocou na mão, ela cheirou e no outro dia foi a mesma coisa [...] o professor vira as costas um pouco [...] é muito rápido [...] nem vê, agora o aluno da escola já foi excluído, saiu do colégio. Mas não é só ele, todo lugar tem [...] (FAM. 07).
A negligência do poder público no apoio à família
Outro aspecto compreendido nas entrevistas tem relação com a percepção de negligência do poder público no apoio à família. A busca por ajuda perpassa diversos setores, principalmente a Justiça e a Saúde, mas em vários momentos o sentimento de impotência supera o sentimento de esperança.
[...] Já busquei ajuda em todos os lugares e nada de resolver. Falam que vao dar todo apoio e no fim não fazem nada. Já fui à Bolsa Escola, na Regional Norte, Juizado de Menores, Centro de Saúde, mas não ajudaram em nada, nada, nada. [...] Os outros órgaos parecem que colocaram uma pedra e deixou [...] se dane você e seu filho [...] ninguém move nada. Disseram que estavam me ajudando [...] eles não fizeram nada [...] (FAM. 08).
Limitações e dificuldades do tratamento realizado pelo CERSAMi
Outro aspecto evidenciado tem relação com o CERSAMi. Mesmo sendo considerada uma estratégia importante e com potencial para o suporte à família, elementos relacionados à abordagem e às características do tratamento possuem limitações, fato que pode ser evidenciado na fala a seguir.
[...] O CERSAMi tinha que ser uma clínica, que ele ficasse totalmente internado [...] vou tirá-lo do CERSAMi, vou passar para o psicólogo do posto [...] acho que eles fazem muitos acordos [...] ele falou comigo, eu não vou para o CERSAMi [...] se você não vai para o CERSAMi, você vai falar com o médico que você quer a medicação [...] não quer ir mais [...] está pior ainda [...] os meninos só falavam na droga [...] quanto mais ele ouvir isso, mais vontade ele vai sentir, mesmo se ele tendo vontade de fazer [...] acho que o tratamento deles (CERSAMi), não é rígido [...] você tem que fazer a seleção, aqueles que melhorarem de um jeito, aquele que realmente o médico achar que deu uma melhorada, não pode ficar junto com quem continua na mesma vida, porque se não, não adianta [...] quem me garante que ele vai no CERSAMi e não fuma maconha? [...] o tratamento do CERSAMi está errado [...] não adianta você não separar quem está melhorando [...] vai no CERSAMi duas vezes por semana, ainda bem que ele só vai duas vezes, porque antes ele estava indo a semana toda [...] se você está melhorando de uma doença, como vai misturar com as outra pessoa que está começando (sic) [...] o tratamento é muito à vontade, não pode dar liberdade assim [...] (FAM. 03).
DISCUSSÃO
O uso abusivo de substâncias psicoativas é uma séria e persistente ameaça à autonomia do sujeito, às relações familiares e à estabilidade das estruturas administrativas e dos valores políticos, econômicos, sociais e culturais da sociedade.
Na discussão sobre as ações públicas e as estratégicas de enfrentamento do problema, algumas políticas vêm sendo debatidas e implementadas em nível nacional. Em 2005 o Conselho Nacional Antidrogas aprovou a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), conforme resolução nº 3/GSIPR/CH/CONAD, de 27 de outubro de 2005. A proposta tem como meta trabalhar aspectos relacionados à prevenção, ao tratamento, à recuperação e reinserção social e à redução da oferta e dos danos sociais e da saúde, associada a estímulos na realização de estudos, pesquisas e avaliações sobre a temática.21,22
Conforme descrito anteriormente, o Plano Integrado de Enfrentamento do Crack estabelece ações descentralizadas e integradas por meio da conjugação de esforços entre a Uniao, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, observadas a intersetorialidade, a interdisciplinaridade, a integralidade, a participação da sociedade civil e o controle social.21
O programa Crack é Possível Vencer integra esse conjunto de medidas, e é orientado por três eixos estruturantes: o cuidado com a ampliação da capacidade de atendimento e atenção aos usuários e familiares; a prevenção por meio do fortalecimento da rede de proteção contra o uso de drogas; e a autoridade responsável pelo enfrentamento ao tráfico e policiamento ostensivo de proximidade.21
Mesmo com as ações estabelecidas, observa-se que os impactos do fenômeno uso abusivo de drogas são diversos, com destaque para a violência decorrente da associação com o tráfico de drogas ilícitas, o aumento da criminalidade e os prejuízos para a saúde, associados a conflitos nas relações familiares e sociais. Esse panorama exige que o poder público, articulado com a sociedade, adote uma postura firme de combate a esses fatos, para aperfeiçoar os mecanismos existentes de prevenção, de repressão e de reabilitação dos dependentes e suas famílias.22,23
O início precoce do uso de drogas é um fator que agrava o quadro no mundo. Estudos realizados no Brasil pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CERBID), com série histórica criada a partir de 1987, confirmam o aumento do consumo de substâncias psicoativas entre crianças e adolescentes.24
Observa-se que é grande a vulnerabilidade da população infanto-juvenil diante dessa situação, portanto, esse quadro necessita ser enfrentado e combatido. Mesmo com a literatura destacando elementos importantes para enfrentamento, esta pesquisa trabalhou com depoimentos de familiares que evidenciam uma realidade diferente, em que as experiências e situações de vida são angustiantes, com um difícil caminho a ser trilhado. Nos relatos, as limitações do apoio do poder público se tornam claras, as ações são fragmentadas e desorganizadas, e os serviços são colocados como um ambiente de risco.
Apesar dos esforços governamentais, as ações, os programas e os projetos voltados para a prevenção do uso abusivo de drogas na infância e na adolescência, no âmbito operacional, nem sempre minimizam o sofrimento infringido às pessoas que estao inseridas no cotidiano da droga como fenômeno social. Um cenário importante a ser trabalhado nesse contexto é a escola.
Ninguém desconhece que a escola é alvo do assédio de traficantes e atravessadores de substâncias proibidas, pois é espaço privilegiado de encontros e interações entre jovens.9 No entanto, mesmo no âmbito educacional, existem fatores específicos que predispoem ao uso de drogas, por exemplo, a falta de motivação para os estudos.25
Em contrapartida, potencializar as atividades direcionadas a esse contexto é fundamental. Parece difícil oferecer ao jovem uma vida sem drogas, mas é possível a construção de uma família, de uma escola e de uma sociedade esclarecida para enfrentar os problemas decorrentes do seu uso. No ambiente escolar, os professores devem estar capacitados e seguros para trabalhar a prevenção e as consequências e dar apoio aos alunos.
Essa abordagem não deve ser feita de forma pontual e isolada, e sua inserção deve ocorrer no contexto pedagógico, com trabalhos reflexivos que estimulem o desenvolvimento do pensamento crítico dos estudantes diante da temática. Além disso, os jovens devem ser responsabilizados por suas ações e estimulados a buscar escolhas saudáveis, respeitando sua autonomia e o contexto em que estao inseridos, para que possam ser protagonistas de sua história de vida.26,27
No contexto da negligência do poder público, a unidade de significado destacada expoe os sentimentos de uma mae diante das dificuldades colocadas no caminho de sua família. Viúva, mae de oito filhos, sendo um acautelado por envolvimento com o tráfico, e com renda familiar inferior a um salário, decorrente da produção de tapetes, ela tem o sonho de mudar com toda a família para retirar o filho, que é dependente químico, do ambiente em que residem. Em vários momentos, durante a entrevista, o sentimento do choro era contrastado com a indignação em relação ao suporte das entidades sociais e da Justiça; ela se sentia totalmente vulnerável diante do problema.
O enfrentamento do uso de crack e outras drogas é complexo, pois requer constante esforço do poder público, e muitas vezes respostas rápidas, o que nem sempre é possível. Essa problemática envolve questoes que devem ser abordadas de modo articulado na busca de resultados, que na maior parte das vezes são de longo prazo.28
Os cenários colocados assustam as pessoas que necessitam de suporte, e a fragilidade das ações públicas relacionadas a essa questao se dissemina por todo o Brasil. Compreender o mundo-vida das famílias é necessário: as experiências diárias são duras, rápidas e imprevisíveis. É preciso trabalhar essa percepção para poder oferecer o apoio no momento necessário.18,27
Trabalhar com pesquisa qualitativa possibilita compreender sentimentos impossíveis de serem mensurados. Esse momento é totalmente perceptível quando se apresenta as limitações e dificuldades do tratamento realizado pelo CERSAMI. Escutar as angústias dessa mae em relação às dificuldades do tratamento e do consumo de drogas do filho no serviço de saúde foi um momento difícil. A impossibilidade de participar do cuidado juntamente com o CERSAMi a preocupava; suas dúvidas e seus questionamentos em relação à abordagem e às condutas eram constantes.
Essa é a realidade de várias famílias. A rede de assistência é fragmentada e a abordagem isolada do CERSAMi não é suficiente. O acesso e a articulação dos dispositivos envolvidos no cuidado são limitados, com unidades com pequena capacidade de atendimento. O número reduzido de profissionais, a necessidade de grandes deslocamentos até o centro de referência, entre outros fatores, também contribuem para a percepção de não resolutividade do serviço pelos entrevistados. Observa-se que há sobrecarga nas unidades, limitações nas propostas terapêuticas e dificuldade na articulação das políticas públicas, o que prejudica o cuidado individual e coletivo.29
A organização e o funcionamento dos serviços devem ser orientados pelas necessidades dos usuários e da família. O tratamento deve ser focado em recursos que possibilitem a ampliação das perspectivas de vida e o fortalecimento dos laços familiares e sociais. Aos serviços de saúde, cabe estabelecer e fortalecer o vínculo e a confiança do usuário em relação à equipe e às propostas de tratamento.10,30
CONCLUSÃO
Abordar a relação do fenômeno do consumo de crack e outras drogas entre crianças e adolescentes não é tarefa simples. Compreender os sentimentos, os significados e as vivências envolvidos nessa temática pode possibilitar o desenvolvimento de ações que venham ao encontro das necessidades dos familiares em relação às questoes que envolvem o poder público.
A compreensão desse fenômeno permitiu levantar questoes que podem refletir sobre a relação dos pais e responsáveis com o filho usuário de crack e outras drogas. Em seus discursos, os familiares evidenciaram pontos que permeiam esse ambiente e afetam o contexto familiar. Além disso, outras informações foram identificadas e têm relação direta com a constituição e as limitações da rede de apoio, associadas às questoes do cuidado e da recuperação dos filhos dependentes.
A análise das falas também possibilitou refletir sobre as limitações do poder público, quando se trata do uso de drogas. A família se sente impotente diante do cenário, pois quando necessita acionar a rede pública para informações, para o tratamento e para a recuperação, não é atendida em suas necessidades plenas.
O fenômeno das drogas é complexo, multicausal e com interfaces diversas, devendo a família ser corresponsável pelo problema que afeta os filhos. A partir dessa premissa, a compreensão do significado dado pelos pais e responsáveis poderá permitir uma avaliação e reflexão sobre o tema, além de trazer conhecimentos que poderao contribuir para o uso de estratégias que tenham como propósito dar o suporte necessário e integral para o enfrentamento do problema.
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