ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Ileo biliar: relato de caso
Gallstone ileus: case report
Leandro Ricardo de Aquino Santos; Kássia Daglaby Roque de Oliveira; Barbara Braga Mascarenhas
Hospital Municipal Odilon Behrens - HOB. Belo Horizonte, MG - Brasil
Endereço para correspondênciaLeandro Ricardo de Aquino Santos
E-mail: leandroras@yahoo.com.br
Recebido em: 02/05/2015.
Aprovado em: 09/07/2015.
Instituiçao: Hospital Municipal Odilon Behrens Belo Horizonte, MG - Brasil.
Resumo
O íleo biliar é rara complicação da colelitíase, responsável por 1-4% de todos os casos de obstrução mecânica abdominal, sobretudo em pacientes acima de 65 anos de idade. Deve-se à impactação de cálculo no trato gastrointestinal após ter passado por uma fístula bilioentérica que, em 60% dos casos, é colecistoduodenal. Pode apresentar elevada morbimortalidade se não tratado a tempo, principalmente porque a população geralmente acometida apresenta importantes comorbidades. Requer alto índice de suspeição, já que a sintomatologia e muitos achados dos exames complementares são inespecíficos, o que contribui para baixa incidência de diagnóstico pré-operatório. Seu tratamento é eminentemente cirúrgico, devendo ser entidade de conhecimento de todo cirurgiao que trabalha em serviço de urgência/emergência. É aqui relatado o caso de uma mulher de 83 anos de idade, com íleo biliar, tratada com enterotomia e retirada do cálculo, sem abordagem da fístula bilioentérica, devido às suas condições clínicas. Encontra-se em acompanhamento ambulatorial para programação da cirurgia definitiva.
Palavras-chave: Ileo; Obstrução intestinal; Cálculos biliares; Colelitíase; Cirurgia geral.
INTRODUÇÃO
O íleo biliar é rara complicação da colelitíase, responsável por 1-4% de todos os casos de obstrução mecânica abdominal e, em pacientes acima de 65 anos de idade, responde por 25% das obstruções não estranguladas do intestino delgado.1 A idade média dos pacientes acometidos por essa entidade é de 70 anos, sendo as mulheres três a 16 vezes mais acometidas.2,3
Deve-se à impactação de cálculo no trato gastrointestinal após sua passagem por uma fístula bilioentérica que, em 60% dos casos, é colecistoduodenal, mas também pode ser colecistocolônica ou colecistogástrica.4 Cerca de 50-70% dos cálculos impactam no íleo, que é o segmento intestinal mais estreito.2,3
A sintomatologia clássica do íleo biliar é caracterizada por dor abdominal e vômitos, que melhoram à medida que o cálculo se move e voltam a aumentar de intensidade quando há nova impactação. A distensão abdominal, aumento dos ruídos hidroaéreos e desidratação são sinais comuns. A combinação de modalidades propedêuticas permite o diagnóstico pré-operatório em 77% dos casos,1,3 mas muitas vezes é feito durante a laparotomia, pelo baixo índice de suspeição.
O tratamento é cirúrgico e pode ser em uma ou duas etapas. A abordagem em um tempo envolve, além da enterolitotomia, a colecistectomia e a exploração da fístula e é indicada quando o risco cirúrgico é baixo e a inspeção da via biliar é possível.3,5,6 Quando o paciente encontra-se grave e/ou apresenta importantes comorbidades está indicada a realização de apenas a enterolitotomia com programação ambulatorial da cirurgia definitiva.
Neste artigo é relatado um caso de íleo biliar com abordagem cirúrgica e discute-se a sua epidemiologia, patologia, clínica, diagnóstico e o tratamento.
RELATO DE CASO
Mulher parda, 83 anos de idade, portadora de doença cardiovascular hipertensiva sistêmica e diabetes mellitus, admitida no Pronto-Socorro do Hospital Municipal Odilon Behrens com dor em abdômen, náuseas, vômitos e confusão mental. Realizada ultrassonografia abdominal, que evidenciou vesícula biliar com cálculos e gás em seu interior. A tomografia computadorizada de abdômen e pelve identificou cálculo radiopaco em transição jejuno-ileal com obstrução do trânsito e distensão de alças à montante, compatível com obstrução intestinal por cálculo biliar.
A paciente foi conduzida ao bloco cirúrgico, após hidratação venosa, sondagem nasogástrica e correção de distúrbios hidroeletrolíticos, e submetida à laparotomia exploradora sob anestesia geral e antibioticoprofilaxia com ampicilina-sulbactam e metronidazol. Foram evidenciados: cálculo em jejuno com obstrução intestinal e algumas aderências em cavidade. A vesícula biliar não foi abordada, sem sinais de acometimento agudo. Foi realizada enterotomia longitudinal, com retirada de cálculo e posterior fechamento transversal da alça e mantida antibioticoterapia terapêutica.
O pós-operatório imediato foi realizado em Terapia Intensiva por 24 horas, com leve desorientação, ainda com dor abdominal e hipomagnesemia leve, estável do ponto de vista respiratório e hemodinâmico. A dieta via oral foi liberada 48 horas após ainda com vômitos, o que retardou a alta, que só foi concedida no quarto dia de pós-operatório, após boa aceitação da dieta, e ausência de queixas. A antibioticoterapia foi desescalonada, e retorno ambulatorial para acompanhamento e programação de abordagem para fístula colecistoduodenal.
DISCUSSÃO
O íleo biliar é rara complicação da colelitíase, sendo responsável por 1-4% de todos os casos de obstrução mecânica abdominal e, em pacientes acima de 65 anos de idade, responde por 25% das obstruções não estranguladas do intestino delgado.1 A idade média dos pacientes acometidos por essa entidade é de 70 anos, sendo as mulheres três a 16 vezes mais acometidas.2,3 Deve ser lembrado como das principais causas de obstrução intestinal, juntamente com hérnias, aderências, neoplasias, intussuscepção e vólvulo, constituindo o mnemônico HANG IV, sendo o "G" proveniente da tradução para o inglês de íleo biliar: gallstone ileus.7
Deve-se à impactação de um cálculo no trato gastrointestinal após sua passagem por uma fístula bilioentérica que, em 60% dos casos, é colecistoduodenal, mas também pode ser colecistocolônica ou colecistogástrica.4 Quanto à incidência dessas fístulas, uma série cirúrgica que incluiu 5673 colecistectomias contabilizou 105 fístulas bilioentéricas, sendo que 90% dessas estavam associadas à síndrome de Mirizzi,8 ou seja, obstrução do ducto hepático comum por compressão extrínseca de um cálculo impactado no cístico. Essas fístulas geralmente têm origem na inflamação pericolecística pós-colecistite, o que leva à formação de aderências entre as vias biliares e o intestino, com posterior necrose da parede biliar pela pressão do cálculo.
Em relação ao tamanho desses cálculos, 90% são maiores que dois centímetros em diâmetro9 e 50-70% impactam no íleo, que é o segmento intestinal mais estreito.2,3 A seguir vêm jejuno e estômago e como sítio mais raro de obstrução o cólon, devido a sua grande espessura habitual.2 Portanto, quando há impactação de um cálculo no intestino grosso, uma patologia coexistente deve ser suspeitada, como doença de Crohn.
Os sintomas clássicos do íleo biliar são dor abdominal e vômitos que melhoram à medida que o cálculo se move e voltam a aumentar de intensidade quando há nova impactação, o que é conhecido como obstrução cambalhota. O paciente geralmente se apresenta com quadro de cinco dias de evolução.2 Caso haja estase gástrica por um cálculo impactado no duodeno ou no piloro, trata-se da rara síndrome de Bouveret. Distensão abdominal, aumento dos ruídos hidroaéreos e desidratação são sinais comuns, diferentemente de icterícia2 ou de Murphy e outros sinais de colecistite.10
A combinação de modalidades propedêuticas permite o diagnóstico pré-operatório em 77% dos casos,1,3 sendo as principais modalidades a radiografia e a tomografia computadorizada abdominais. Vale ressaltar que o laboratório é inespecífico, contribuindo para grande parcela de diagnósticos feitos durante a laparotomia exploradora.
Os principais achados radiográficos são: sinais de obstrução intestinal, aerobilia, visualização direta do cálculo se ele for calcificado, mudança na posição desse e dois níveis hidroaéreos intestinais adjacentes ao quadrante superior direito. A ultrassonografia abdominal, por sua vez, pode demonstrar fístulas, cálculos impactados, colelitíase residual ou coledocolitíase,11 entretanto, tem como limitação o gás abdominal, que reflete as ondas ultrassonográficas.12 De modo semelhante, a cintilografia abdominal é relativamente insensível, detectando apenas 50% das perfurações.13
O tratamento é cirúrgico e pode ser em uma ou duas etapas. A prioridade é tratar a complicação aguda, ou seja, o íleo biliar. O tratamento operativo da fístula em um mesmo tempo depende dos seguintes fatores: gravidade da obstrução, idade do paciente, achados locais, zona hepatobiliar e comorbidades.14
Logo, a abordagem em uma etapa envolve, além da enterolitotomia, a colecistectomia e a exploração da fístula com ou sem a exploração do colédoco e é indicada quando o risco cirúrgico é baixo e a inspeção da via biliar é possível.3,5,6 Tem como principais vantagens a prevenção de colecistite, de colangite e de carcinoma de vesícula biliar, uma vez que a síndrome de Mirizzi comumente associada é fator de risco para neoplasia da vesícula.15
Todavia, a grande maioria dos pacientes com íleo biliar é idosa e possui importantes doenças associadas, totalizando taxa de mortalidade entre 4,5 e 25%.1 Assim, em função do menor tempo operatório, está indicada a abordagem em duas etapas em doentes com alto risco cirúrgico. Deve-se ter em mente que a realização de apenas enterolitotomia envolve um risco de 17% de recorrência,2 portanto, a cirurgia definitiva deve ser planejada quando o risco anestesiológico permitir. A enterotomia deve ser feita ao longo da borda antimesentérica proximal ao ponto de impacto4 e todo o intestino deve ser inspecionado à procura de outros cálculos associados, o que ocorre em 3 a 16% dos casos. Antibioticoprofilaxia é recomendada, pois infecção de ferida é a principal complicação pós-operatória.9
A cirurgia laparoscópica vem sendo realizada em alguns casos selecionados, porém é melhor destinada a cirurgioes extremamente experientes operando um grupo seleto de pacientes.3 Há relato de casos bem-sucedidos de litotripsia extracorpórea e hidráulica e de remoção endoscópica do cálculo impactado,12 mas a cirurgia permanece como o tratamento padrao.
CONCLUSÃO
O íleo biliar é rara complicação da colelitíase, sendo responsável por 1-4% de todos os casos de obstrução mecânica abdominal, sobretudo em idosos.1 Deve sempre ser lembrado como causa de abdômen agudo obstrutivo, pois se não tratado adequadamente pode levar a alta morbimortalidade, em função das comorbidades associadas. No atendimento inicial ao doente devem ser solicitados exames laboratoriais básicos e radiografia simples de abdômen, sendo imprescindível o ionograma, uma vez que o foco inicial do tratamento deve ser a correção de distúrbios hidroeletrolíticos, da desidratação e da estase gástrica. Apesar da associação das modalidades propedêuticas permitir o diagnóstico em 77% dos casos,1,3 frequentemente ele só é feito durante a cirurgia, devido ao baixo índice de suspeição dos cirurgioes e à inespecificidade da sintomatologia e dos achados em exames complementares.
Desse modo, o cirurgiao geral que trabalha em serviço de urgência/emergência deve estar familiarizado com o íleo biliar e com seu tratamento cirúrgico, que consiste em abordagem em um ou dois tempos. A operação em uma etapa tem as vantagens de prevenir a colecistite, a colangite e o carcinoma de vesícula biliar,15 além de evitar a recorrência do íleo biliar. Porém, só deve ser realizada se o risco anestesiológico assim o permitir e se a inspeção da via biliar for possível.3,5,6 Caso contrário, apenas a enterotomia deve ser procedida, com planejamento ambulatorial da cirurgia definitiva. Ainda não está claro o papel da videolaparoscopia no tratamento do íleo biliar, devendo essa, por ora, permanecer restrita a pacientes selecionados e ser realizada por cirurgioes muito experientes.3
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