ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Tratar ou não crianças com toxoplasmose congênita suspeita? Contribuição de um sistema de classificação diagnóstica para decisão
Treat or not to treat infant with possible congenital toxoplasmosis? Diagnostic classification system could aid decision
Flávia Alves Campos1; Gláucia Manzan Queiroz Andrade2; Jacqueline Domingues Tibúrcio3; Talita Pouzas Soares Martins4; Roberta Maia de Castro Romanelli5; Fernanda de Souza Vanni Rocha1; Ericka Viana Machado Carellos6
1. Fundaçao Hospitalar de Minas Gerais - FHEMIG, Hospital Infantil Joao Paulo II. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Universidade Federal de Sao Joao Del Rei-UFSJ. Campus Centro-Oeste Dona Lindu,Divinópolis, MG - Brasil
4. Universidade José do Rosário Vellano, Curso de Medicina. Belo Horizonte, MG - Brasil
5. UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria; Universidade José do Rosário Vellano. Belo Horizonte, MG - Brasil
6. UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria; FHEMIG, Hospital Infantil Joao Paulo II. Belo Horizonte, MG - Brasil
Flávia Alves Campos
E-mail: flaviaacampos@yahoo.com.br
Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: apesar da existência de um sistema de classificação diagnóstica da toxoplasmose congênita baseada em critérios sorológicos, parasitológicos e clínicos (Lebech et al.), poucos estudos avaliaram o impacto dessa classificação na decisão de tratar crianças com suspeita de toxoplasmose congênita.
OBJETIVOS: avaliar o sistema de classificação diagnóstica (Lebech et al.) modificado na decisão de tratar crianças suspeitas de toxoplasmose congênita e descrever as características do pré-natal e das crianças infectadas.
MÉTODOS: estudo transversal de 222 crianças suspeitas entre 2008 e 2011. No atendimento médico, alguns profissionais utilizam o sistema de classificação diagnóstica na decisão de tratar as crianças suspeitas, e outros não. Avaliou-se a associação entre a classificação diagnóstica aplicada ao nascimento e aos três meses de idade e a confirmação da toxoplasmose congênita. Compararam-se os dois grupos de profissionais quanto à decisão de tratar a toxoplasmose. Projeto aprovado pelo Comitê de Ética da UFMG.
RESULTADOS: a infecção congênita foi prevalente (44/222), com elevada proporção de retinocoroidite (84,1%) e calcificações e/ou dilatação ventricular (77,3%). As mulheres com menor número de consultas no pré-natal realizaram menor número de testes para toxoplasmose (p=0,05) e muitas realizaram apenas um teste, impossibilitando a classificação diagnóstica. Sorologia pareada após o parto reduziu a proporção de pares maes/filhos não classificados (p=0,005). Os dois grupos de profissionais trataram todas as crianças infectadas e o grupo que utilizou o protocolo tratou menor proporção de não infectadas (p<0,001).
CONCLUSÕES: a aplicação do protocolo de classificação diagnóstica reduziu o tratamento para toxoplasmose nas crianças não infectadas.
Palavras-chave: Toxoplasmose; Gestantes; Toxoplasmose Congênita/diagnóstico; Toxoplasmose Congênita/terapia.
INTRODUÇÃO E LITERATURA
A toxoplasmose aguda na gestação pode infectar o feto e causar aborto, natimorto ou comprometimento fetal variável.1 A prevalência da toxoplasmose congênita é elevada no Brasil (0,05 a 0,15%) e em Minas Gerais (0,13%).2 Em Belo Horizonte, cerca de 40% das mulheres em idade reprodutiva são suscetíveis e potencialmente em risco de transmissão vertical da infecção.3 A toxoplasmose no binômio mae/filho geralmente é assintomática e o diagnóstico só é possível com a realização sistemática da sorologia na gestante e recém-nascido. Crianças com toxoplasmose congênita podem apresentar manifestações inespecíficas ou, mais frequentemente, lesão ocular em até 80% dos casos. Muitas nascem assintomáticas, e os testes sorológicos apresentam sensibilidade variável de até 60-80%, dificultando o diagnóstico.2,4
A infecção aguda da gestante pode ser diagnosticada pela soroconversão para anticorpos IgM e IgG anti-T. gondii; ou sugerida pela presença de anticorpos IgM associados aos anticorpos IgG em títulos altos e em ascensão. A avidez alta para anticorpos IgG auxilia a excluir uma infecção nos últimos 3-4 meses. No entanto, a ausência de triagem sistemática, realização do primeiro exame tardio na gestação, e a falta de laboratórios de referência em toxoplasmose dificultam a interpretação dos exames. A complexidade da avaliação sorológica da toxoplasmose no binômio mae/ filho motivou o grupo Europeu de Pesquisa em Toxoplasmose Congênita (European Research Network on Congenital Toxoplasmosis) a propor uma classificação diagnóstica, em 1996, com base em critérios sorológicos, parasitológicos e clínicos. Essa classificação, proposta por Lebech et al.5, foi considerada adequada para aplicação em diferentes países e serviços de saúde e mostrou-se aplicável nas regioes que realizam a triagem pré-natal regularmente. Mas, nas regioes que não adotam esse procedimento, sua avaliação é escassa. A classificação foi avaliada na Itália, onde se mostrou útil para identificação da infecção primária na gestante e na criança, sem, contudo, se mostrar adequada para o diagnóstico fetal.6 Em outro estudo europeu, o teste de avidez foi acrescentado à classificação, permitindo que 77 entre 117 (65,8%) gestantes fossem diagnosticadas com apenas uma amostra.7 Por outro lado, no Distrito Federal, Brasil, a aplicação do sistema de classificação diagnóstica mostrou elevada proporção de gestantes não classificadas, evidenciando a necessidade de melhorar o cuidado pré-natal no país.8
A sulfadiazina/pirimetamina constitui o tratamento de escolha no primeiro ano de vida da criança infectada e tem sido associada à redução da reativação da retinocoroidite. Mas essa medicação apresenta efeitos adversos em 20-50% das crianças tratadas por tempo prolongado, principalmente a neutropenia.9,10 Considerando-se a gravidade da doença congênita e a frequência dos efeitos adversos ao tratamento, é muito importante identificar correta e precocemente as crianças infectadas e excluir, também precocemente, os casos não infectados, reduzindo o tratamento desnecessário.
A assistência pública pré-natal em Belo Horizonte inclui a triagem trimestral para toxoplasmose. Entretanto, observa-se dificuldade dos profissionais de saúde em interpretar corretamente os testes diagnósticos, considerando a idade gestacional em que foram realizados.3 Isso pode resultar no diagnóstico e tratamento tardio da criança infectada e uso excessivo de medicação nas crianças não infectadas.
O estudo foi realizado com o objetivo de avaliar a contribuição do sistema de classificação diagnóstica proposto por Lebech et al.5 na decisão de tratar uma coorte de crianças suspeitas de toxoplasmose congênita acompanhadas em um serviço de referência em Belo Horizonte.
MATERIAL E MÉTODOS
Trata-se de estudo observacional, transversal, que constou da análise do prontuário médico de crianças com suspeita de toxoplasmose congênita atendidas em um serviço de referência em infectologia pediátrica do município de Belo Horizonte - Centro de Treinamento e Referência em Doenças Infecciosas e Parasitárias Orestes Diniz (CTR-DIP Orestes Diniz).
Durante o seguimento, as crianças foram submetidas a avaliações clínicas, sorologias (IgG e IgM), fundoscopia, exames de neuroimagem e avaliação auditiva para esclarecimento diagnóstico e acompanhamento terapêutico. Quando o profissional julgou necessário, tratou as crianças com sulfadiazina, primetamina e ácido folínico durante o primeiro ano de vida e controlou os efeitos adversos da medicação realizando hemogramas seriados. O diagnóstico da toxoplasmose congênita foi confirmado pela presença de IgM no primeiro semestre de vida e/ou pela persistência de IgG ao final do primeiro ano.
A classificação de Lebech et al.5 foi adaptada para um protocolo de atendimento às crianças com suspeita de toxoplasmose congênita no serviço de referência. Alguns profissionais desse serviço utilizam regularmente esse protocolo, que discrimina os grupos de probabilidade diagnóstica, e toma as decisões com base nessa classificação. Nela, as crianças são distribuídas em cinco grupos de probabilidade de diagnóstico de toxoplasmose congênita:
1. definitivo - demonstração do parasita em cultura de sangue de cordao ou tecido ou em análise histopatológica nos primeiros seis meses de vida; IgM ou IgA positiva nos primeiros seis meses de idade; ou aumento nos títulos de IgG ou sua persistência aos 12 meses de idade;
2. provável - cultura de tecido placentário positiva; IgM positivo entre seis e 12 meses de idade; retinocoroidite e/ou hidrocefalia/ calcificação cerebral e infecção materna confirmada na gestação;
3. possível - retinocoroidite e/ou hidrocefalia/calcificação cerebral, com ou sem IgG na criança e com época de infecção materna desconhecida;
4. improvável - contínuo declínio de IgG sem IgM e/ou IgA, com ou sem sinais clínicos no primeiro semestre de vida na ausência de tratamento;
5. não infectado - sorologia negativa (IgM e IgG) nos primeiros 12 meses de vida, na ausência do tratamento.
Os autores do estudo acrescentaram o grupo 6, denominado "não classificado", quando era impossível incluir as crianças nos grupos descritos, e modificaram o grupo 5, considerando como não infectadas as crianças que apresentavam sorologia persistentemente negativa após um a dois meses da interrupção do tratamento, caso estivessem em uso. Esse protocolo foi aplicado nas crianças do estudo em três momentos: nascimento, três meses e 12 meses de idade.
A classificação de Lebech et al.5 também foi aplicada às maes dessas crianças, analisando-se retrospectivamente as informações maternas contidas nos prontuários. Considerou-se o diagnóstico materno como:
1. definitivo - soroconversão (quando ambas as amostras foram colhidas após a concepção, sendo a primeira negativa para os anticorpos IgM e IgG específicos e a segunda positiva para ambos anticorpos) ou infecção congênita confirmada no filho;
2. provável - soroconversão (quando a primeira amostra foi colhida até dois meses antes da concepção); aumento significativo nos títulos de IgG e presença de IgM e/ou IgA; altos títulos de IgG, presença de IgM e/ou IgA e início de sintomas durante a gestação: febre por período superior a duas semanas, linfadenomegalia, redução da acuidade visual ou altos títulos de IgG e presença de IgM e/ou IgA na segunda metade da gestação;
3. possível - títulos elevados e estáveis de IgG, sem IgM, na segunda metade da gestação ou altos títulos de IgG e presença de IgM e/ou IgA na primeira metade da gestação;
4. improvável - baixos títulos e estáveis de IgG, com ou sem IgM; ou altos títulos e estáveis de IgG sem IgM, no início da gestação;
5. não infectado - soronegativo (durante a gestação) ou amostra materna soropositiva antes da concepção ou presença de IgM e/ou IgA positivo sem aparecimento de IgG.
Os autores do presente estudo também acrescentaram o grupo 6, denominado "não classificado", quando era impossível incluir as gestantes nos grupos descritos. Essa classificação diagnóstica foi aplicada às maes das crianças estudadas em dois momentos: logo após o parto e após a realização de sorologia anti-T. gondii simultaneamente à criança (sorologia pareada).
Participaram da pesquisa as crianças suspeitas de toxoplasmose congênita atendidas no CTR-DIP Orestes Diniz entre 2008 e 2011, nas quais o diagnóstico final pode ser determinado. Foram excluídas as crianças cujas maes apresentavam coinfecção pelo HIV e imunossupressão pelo uso de drogas ou doença e aquelas em que não foi possível concluir o diagnóstico da toxoplasmose congênita. Foram investigadas as variáveis relacionadas ao binômio mae-filho (consultas, sintomas, exames realizados e tratamento).
Para avaliar a contribuição da classificação diagnóstica na decisão de tratar ou não as crianças suspeitas de toxoplasmose congênita, os autores analisaram os profissionais atuantes nesse serviço de acordo com o preenchimento rotineiro do protocolo de classificação diagnóstica: grupo 1 não utilizou o protocolo e grupo 2 o utilizou.
Para o banco de dados foi utilizado o software AC-CESSr 2007 e para análise estatística o software SPSSr versão 17.0. Realizou-se distribuição de frequências, absolutas e relativas, média, desvio-padrao (DP) e percentis (P25, P50, P75) para descrição das variáveis clínicas e laboratoriais. Utilizou-se o teste do qui-quadrado ou o teste exato de Fisher para comparar proporções quando as variáveis eram categóricas; o teste t de Student para comparar as médias de variáveis contínuas; e o teste de Mann-Whitney para comparar medianas. Consideraram-se significantes as associações com valor de p = 0,05. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG - parecer ETIC 047/10.
RESULTADOS
Entre 2008 e 2011 foram atendidas no serviço de referência 280 crianças com suspeita de toxoplasmose congênita. Dessas, 58 não preencheram os critérios para inclusão no estudo por limitações maternas (16 coinfectadas pelo HIV e uma imunossuprimida pelo uso de drogas) ou das crianças (admissão no serviço após um ano de idade - quatro casos - ou impossibilidade de confirmação ou exclusão do diagnóstico - 37 crianças). Entre estas últimas, a não confirmação do diagnóstico se deveu principalmente à alta do serviço com sorologia específica (IgG) ainda indeterminada. Participaram do estudo 222 binômios mae/filho.
As maes realizaram número mediano de oito consultas e um teste para toxoplasmose (IgM e IgG) durante o pré-natal. Na Figura 1 pode-se observar que as mulheres que realizaram um número menor de consultas durante o pré-natal realizaram um número menor de testes para toxoplasmose.
Resultado positivo para anticorpos IgM foi observado em pelo menos um dos exames realizados na gestação em 69,1% (139/201) mulheres - 70,5% (98/139) na primeira amostra. Em 21 casos não foi solicitada sorologia para toxoplasmose no pré-natal e sete (33,3%) dessas crianças nasceram infectadas. Soroconversão foi identificada em 23 gestantes. Três gestantes, imunocompetentes, relataram redução da acuidade visual durante a gravidez, uma delas apresentou IgM anti-T. gondii positiva na gestação, todas receberam tratamento e seus filhos não foram infectados.
O primeiro teste realizado na gravidez de 17 maes foi negativo (IgM e IgG) e, no segundo teste, positividade apenas para IgG. Nenhuma criança nasceu infectada.
O teste de avidez para IgG, realizado em 30 casos, mostrou alta avidez em 29 e nenhum recém-nascido infectado. Uma gestante apresentou teste de avidez com resultado indeterminado no sétimo mês de gestação e seu filho foi infectado. A pesquisa do DNA do parasita a partir da técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR) no líquido amniótico foi realizada em seis gestantes, três com diagnóstico definitivo na gestação e três não classificadas. O resultado foi positivo em uma e a criança nasceu com toxoplasmose congênita.
Não foi possível aplicar a classificação diagnóstica em grande número de maes, devido à realização de apenas um teste sorológico na gestação. A repetição da sorologia pareada (mae/filho) reduziu significativamente o número de maes não classificadas (p=0,005) (Tabela 1).
Na maioria (55%) das 140 maes com idade gestacional estimada de aquisição da infecção pelo T. gondii registrada no prontuário, a infecção ocorreu no primeiro trimestre de gestação, 33% no segundo e 12% no terceiro trimestre.
O tratamento antiparasitário foi oferecido para 119 maes, sendo utilizada apenas espiramicina em 105 (88%) e a associação de sulfadiazina e pirimetamina intercalada ou não com espiramicina em 14 (12%).
Entre as 222 crianças avaliadas ao nascimento, 142 (64%) foram incluídas no grupo das não classificadas (Figura 2). Houve diminuição da proporção desse grupo aos três meses de idade. As crianças classificadas como diagnóstico definitivo (25/80) e provável (6/80) ao nascimento mantiveram essa classificação e confirmaram o diagnóstico ao final de um ano de idade. Entre as classificadas como infecção possível (16/80), a infecção congênita foi confirmada em uma aos três meses e em 10 ao final de um ano de vida. Não houve alguma criança infectada entre aquelas classificadas com diagnóstico improvável. Mas duas crianças estavam infectadas entre as não classificadas e esse diagnóstico foi confirmado ao final do primeiro ano de vida.
A prevalência da toxoplasmose congênita entre as crianças atendidas foi de 19,8% (44/222). Durante o esclarecimento diagnóstico e tratamento, as crianças realizaram, em média 3,7 (DP=1,7) sorologias. Não houve diferença significativa entre o número de sorologias realizado pelas crianças infectadas em comparação às não infectadas (p=0,3). O tempo necessário para o clareamento dos anticorpos maternos nas crianças suspeitas, mas não infectadas, foi em média igual a 33,9 semanas (DP=23,3).
Nas crianças infectadas, a idade média da confirmação da infecção foi igual a 12,3 semanas (DP=15,2).
Durante o esclarecimento diagnóstico foram realizados: fundoscopia (203/222); neuroimagem (USTF - 99/222; TCC - 53/222; radiografias de crânio - 149/222); e exame do líquido cefalorraquidiano (73/222). Entre as 44 crianças infectadas, 37 (84,1%) apresentaram comprometimento ocular, 34 (77,3%) tinham calcificações e/ou dilatação ventricular e quatro permaneceram assintomáticas.
Foram tratadas 135 crianças e em 91 (67,4%) o diagnóstico de toxoplasmose congênita foi excluído. O tratamento foi prescrito para todas as crianças com diagnóstico definitivo ou provável. Aquelas com diagnóstico definitivo utilizaram a medicação durante 12 meses, e naquelas cujo diagnóstico foi excluído a mediana de uso foi de 18 semanas (P25=11,0; P75=25,0).
Não se observou toxoplasmose congênita em criança alguma que não recebeu medicação antiparasitária. Considerando-se as 135 crianças que receberam a medicação, verificou-se neutropenia em 28 (21%), a medicação foi interrompida em três e a infecção foi excluída nas três.
A comparação dos grupos em relação à não utilização (grupo 1) e utilização (grupo 2) do protocolo de classificação diagnóstica mostrou que os dois grupos não deixaram de tratar qualquer criança com infecção confirmada, mas o grupo 2 submeteu menor número de crianças não infectadas (n=18; 19,8%) ao uso das drogas antiparasitárias (p<0,001), como mostra a Figura 4.
DISCUSSÃO
A toxoplasmose na gestação gera grande ansiedade na família e no profissional responsável11, pois o diagnóstico implica estimar o risco de infecção fetal e decidir sobre a pertinência de tratar ou não o binômio mae/filho. A evolução da resposta humoral na toxoplasmose e a parasitemia fugaz dificultam a distinção entre infecção aguda e crônica, tornando o diagnóstico precoce do binômio um desafio.12,13 Nesse estudo, realizado em um serviço de referência para atendimento de crianças suspeitas de toxoplasmose congênita, todos os profissionais diagnosticaram e trataram as crianças infectadas. Entretanto, a utilização do protocolo de classificação diagnóstica contribuiu para redução do uso de antiparasitários nas crianças não infectadas.
O número reduzido de sorologias realizadas pelas gestantes e a associação de mais exames com o número maior de consultas, semelhante ao encontrado em outro estudo regional3, identificam a necessidade de avanços na qualidade da assistência pré-natal. Elevada proporção de mulheres (61%) permaneceu sem classificação diagnóstica devido à realização de apenas um teste sorológico no pré-natal, semelhante aos resultados encontrados por Porto et al. em Brasília, onde não foram classificados 61,3% das gestantes.8 Nesse cenário, a repetição da sorologia materna após o parto, concomitantemente à sorologia do recém-nascido (sorologia pareada), pode contribuir para a redução do número de casos não classificados.14 Em contraste, países que realizam a triagem pré-natal em intervalos regulares conseguem classificar todas as gestantes.6
Outro fato observado foi a grande heterogeneidade nos intervalos de coleta dos testes para toxoplasmose no pré-natal, impossibilitando estimar com mais precisão a idade gestacional da infecção materna. O teste de avidez poderia ter contribuído para estimar o momento da infecção materna7-15 na parcela alta de gestantes que apresentaram IgM anti-T.gondii positiva no primeiro sorológico (60,7%). Contudo, o teste de avidez foi realizado em poucos casos e não contribuiu para estimar a idade gestacional da infecção materna, provavelmente por ter sido realizado tardiamente, em média, no segundo trimestre da gestação.
Algumas gestantes suscetíveis tiveram resultado positivo isoladamente para IgG no segundo exame realizado na gestação. Esse achado não caracteriza soroconversão e pode estar associado a reações falso-negativas para IgG devido à qualidade do teste utilizado ou a infecções crônicas de longa data, com títulos muito baixos de anticorpos IgG(1).
A pesquisa do DNA do parasito pela PCR no líquido amniótico pode contribuir para o diagnóstico da infecção fetal. Embora seja um método invasivo, a taxa de perda fetal é baixa (0,13-1,0%).11,16,17 Na população estudada, o teste foi realizado em apenas seis casos. A confirmação do diagnóstico de toxoplasmose congênita no único caso positivo reforça a importância desse exame.
Nesse estudo, o intervalo de tempo (média=40 dias) entre o primeiro teste com resultado positivo e o início do tratamento materno foi longo, superior a três semanas, reduzindo a chance de prevenção da transmissão vertical da toxoplasmose.18,19
As crianças estudadas nasceram em boas condições clínicas, de acordo com dados da literatura, que mostram 80% das infectadas assintomáticas ao nascimento.20 A toxoplasmose tem sido associada à prematuridade, principalmente nos casos de doença clínica neonatal, mas evidências de associação com baixo peso ao nascimento são escassas.21,22 Destaca-se a elevada proporção de comprometimento neurológico (77,3%) encontrada, mesmo comparado a outros resultados obtidos na mesma regiao (28%).21 Isso se deve provavelmente a um viés de seleção, visto que essa população foi encaminhada a um centro de referência no atendimento desses casos. Em relação ao comprometimento ocular, observou-se elevada prevalência de retinocoroidite (84,1%) nas crianças estudadas, em acordo com achados brasileiros (67%95%).2,14,20,23-26 Na Europa a prevalência de lesão ocular é muito mais baixa (18%). Alguns autores associam a maior gravidade dos casos brasileiros à presença de cepas mais patogênicas do parasito. Considera-se ainda o tamanho do inóculo parasitário, predomínio da infecção por oocistos, suscetibilidade do hospedeiro e ausência de triagem sistemática e tratamento das gestantes infectadas.23,27
Não foi possível classificar ao nascimento a maioria (64%) das crianças, principalmente pela indisponibilidade dos exames de imagem e testes sorológicos e pela indefinição da idade gestacional da infecção materna. Aos três meses de vida, muitas crianças não puderam ser classificadas devido ao uso de terapia antiparasitária, que pode interferir na queda de anticorpos IgG.1 A indefinição diagnóstica motivou a repetição de exames sorológicos e outros exames complementares.
A maior dificuldade observada na abordagem das crianças suspeitas foi em relação aos casos classificados como "possíveis". Nessa categoria estao crianças com retinocoroidite e/ou hidrocefalia/calcificação cerebral e época de infecção materna indefinida, refletindo, mais uma vez, o reduzido número de exames no pré-natal. A maioria das crianças infectadas desse grupo confirmou o diagnóstico apenas ao final do primeiro ano de vida. As crianças classificadas ao nascimento e aos três meses como "improváveis" tiveram o diagnóstico excluído aos 12 meses de idade. A realização da sorologia simultânea com a mae, logo após o nascimento, contribuiu para a redução do número de crianças não classificadas ao final de três meses de seguimento, possibilitando a decisão de tratar menor número de crianças suspeitas.
Observaram-se dois casos de toxoplasmose congênita entre as crianças não classificadas. Essas crianças, assintomáticas ao nascimento, apresentavam sorologia para toxoplasmose IgG positivo e IgM negativo e não foi possível classificar suas maes. Uma iniciou tratamento na maternidade devido à positividade do IgM materno e o medicamento foi mantido no ambulatório devido ao título elevado de IgG na primeira sorologia. A outra criança iniciou tratamento aos quatro meses de vida devido à persistência de títulos estáveis de IgG. Como a classificação de Lebech et al.5 não avalia a probabilidade de infecção nas crianças assintomáticas que apresentam apenas IgG positiva e estao em tratamento antiparasitário, é importante buscar evidências da infecção nos exames complementares antes de iniciar a medicação. Outras duas crianças assintomáticas foram identificadas entre as infectadas, mas ambas apresentaram IgM anti-T. gondii positiva na primeira sorologia realizada, confirmando o diagnóstico. Essas situações não foram descritas entre os infectados classificados por Stronati et al.6 As dificuldades no diagnóstico sorológico realizado por diferentes métodos e com acurácia variável28,29 impoem seguimento e associação dos exames complementares na avaliação da infecção congênita. A radiografia de crânio foi muito solicitada entre as crianças com infecção congênita excluída, o que pode ser atribuído ao seu baixo custo e fácil acesso em unidades de atenção à saúde de menor complexidade. Porém, sua reduzida sensibilidade para identificar calcificações cerebrais20 torna necessária a realização de outros exames de imagem. O USTF apresenta-se como exame de escolha por ser isento de radiação e ter mostrado boa concordância com a TCC para o diagnóstico do comprometimento neurológico na toxoplasmose congênita30, embora a sua acurácia dependa do examinador.
Observou-se que exames invasivos (punção liquórica) ou de alto custo (tomografia) foram solicitados com mais frequência entre as infectadas, refletindo o uso de critérios mais rigorosos de diagnóstico para sua solicitação. Não houve diferença significativa entre o número de fundoscopias realizadas nos dois grupos de crianças, provavelmente pela facilidade de realização do exame e prevalência elevada do comprometimento ocular na regiao.
A associação sulfadiazina / pirimetamina / ácido folínico foi prescrita para tratar a toxoplasmose congênita em todas as crianças classificadas com diagnóstico definitivo ou provável e também para crianças com diagnóstico possível e não classificadas. Essa decisão resultou no tratamento de todas as infectadas, mas também de 91 não infectadas, mas com número significativamente menor entre as que receberam a classificação de Lebech. Observou-se neutropenia reversível em 21% dos casos tratados, proporção menor do que as relatadas em outros estudos10, embora o controle hematológico realizado no seguimento das crianças tenha sido heterogêneo.
Em relação à diferença na tomada de decisão de tratar as crianças suspeitas de toxoplasmose congênita entre os médicos do serviço de referência, apurou-se que a utilização da classificação diagnóstica na abordagem dessas crianças diminuiu o número das não classificadas, identificou aquelas com diagnóstico improvável e diminuiu o número de crianças não infectadas submetidas a tratamento (Figura 4). Contudo, a não existência de programas organizados de pré-natal dificultaram o diagnóstico neonatal e levaram ao tratamento indevido de muitas crianças, com ônus econômico e social para o estado e municípios.
CONCLUSÃO
Os métodos habituais de diagnóstico permitiram o tratamento de todas as crianças infectadas e a aplicação do protocolo de classificação diagnóstica reduziu o uso de medicação antiparasitária nas crianças não infectadas. No entanto, há necessidade de avanços na qualidade da atenção pré-natal, para regularidade nos exames materno e diagnóstico oportuno da gestante e, consequentemente, melhoria da assistência ao recém-nascido.
REFERENCIAS
1. Remington JS MR, Wilson CB, Desmonts G. Toxoplasmosis. In: Remington JS KJ, editor. Infectious disease of the fetus and newborn infant. 7ª ed. ed. Philadelphia: Elsevier Saunders; 2016. p. 918-1041.
2. Vasconcelos-Santos DV, Azevedo DOM, Campos WR, Oréfice F, Queiroz-Andrade GM, Carellos ÉVM, et al. Congenital Toxoplasmosis in Southeastern Brazil: Results of Early Ophthalmologic Examination of a Large Cohort of Neonates. Ophthalmology. 2009; 116:2199-205.
3. Carellos EV, Andrade GM, Aguiar RA. [Evaluation of prenatal screening for toxoplasmosis in Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil: a cross-sectional study of postpartum women in two maternity hospitals]. Cad Saude Publica. 2008 Feb; 24(2): 391-401.
4. Wallon M, Kodjikian L, Binquet C, Garweg J, Fleury J, Quantin C, et al. Long-term ocular prognosis in 327 children with congenital toxoplasmosis. Pediatrics. 2004 Jun; 113(6):1567-72.
5. Lebech M, Joynson DH, Seitz HM, Thulliez P, Gilbert RE, Dutton GN, et al. Classification system and case definitions of Toxoplasma gondii infection in immunocompetent pregnant women and their congenitally infected offspring. European Research Network on Congenital Toxoplasmosis. Eur J Clin Microbiol Infect Dis. 1996 Oct; 15(10):799-805.
6. Stronati M, Bollani L, Viganò C, Lanzarini P, Rondini G. Application and evaluation of a classification system and case definitions of Toxoplasma gondii infection. Eur J Clin Microbiol Infect Dis. 1998 Jan; 17(1):67-8.
7. Zotti C, Charrier L, Giacomuzzi M, Moiraghi Ruggenini A, Mombrò M, Fabris C, et al. Use of IgG Avidity test in case definitions of toxoplasmosis in pregnancy. New Microbiol. 2004 Jan; 27(1):17-20.
8. Campello Porto L, Duarte EC. Association between the risk of congenital toxoplasmosis and the classification of toxoplasmosis in pregnant women and prenatal treatment in Brazil, 1994- 2009. Int J Infect Dis. 2012 Jul; 16(7):e480-6.
9. Daveluy A, Haramburu F, Bricout H, Di Constanzo S, FourrieiA, Tan HK, et al. Review of data related to side effects of drugs used in congenital toxoplasmosis [Unpublished report]. Bordeaux (France): The Eurotoxo Group; 2005.
10. Carellos, EVM; de Andrade, JQ; Romanelli, RMC; Tibúrcio,JD; Januário, JN; Vasconcelos-Santos, DV Figueiredo, RM; de Andrade, GMQ on behalf of the UFMG Congenital Toxoplasmosis Brazilian Group (UFMG-CTBG) Pediatr Infect Dis J. 2017 Jan 31. doi: 10.1097/INF.0000000000001561. [Epub ahead of print]
11. Khoshnood B, De Vigan C, Goffinet F, Leroy V. Prenatal screening and diagnosis of congenital toxoplasmosis: a review of safety issues and psychological consequences for women who undergo screening. Prenat Diagn. 2007 May; 27(5): 395-403.
12. Romand S, Wallon M, Franck J, Thulliez P, Peyron F, Dumon H. Prenatal diagnosis using polymerase chain reaction on amniotic fluid for congenital toxoplasmosis. Obstet Gynecol. 2001 Feb; 97(2):296-300.
13. Wallon M, Franck J, Thulliez P, Huissoud C, Peyron F, Garcia-Meric P, et al. Accuracy of real-time polymerase chain reaction for Toxoplasma gondii in amniotic fluid. Obstet Gynecol. 2010 Apr; 115(4):727-33.
14. Lago EG, Neto EC, Melamed J, Rucks AP, Presotto C, Coelho JC, et al. Congenital toxoplasmosis: late pregnancy infections detected by neonatal screening and maternal serological testing at delivery. Paediatr Perinat Epidemiol. 2007 Nov; 21(6): 525-31.
15. Meroni V, Genco F. Toxoplasmosis in pregnancy: evaluation of diagnostic methods. Parassitologia. 2008 Jun; 50(1-2): 1-3.
16. Odibo AO, Gray DL, Dicke JM, Stamilio DM, Macones GA, Crane JP. Revisiting the fetal loss rate after second-trimester genetic amniocentesis: a single center's 16-year experience. Obstet Gynecol. 2008 Mar; 111(3):589-95.
17. Rabilloud M, Wallon M, Peyron F. In utero and at birth diagnosis of congenital toxoplasmosis: use of likelihood ratios for clinical management. Pediatr Infect Dis J. 2010 May; 29(5):421-5.
18. Gilbert R. Treatment for congenital toxoplasmosis: finding out what works. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2009 Mar; 104(2):305-11.
19. Thiébaut R, Leproust S, Chêne G, Gilbert R, group SSRoCTs. Effectiveness of prenatal treatment for congenital toxoplasmosis: a meta-analysis of individual patients' data. Lancet. 2007 Jan; 369(9556):115-22.
20. Sáfadi MA, Berezin EN, Farhat CK, Carvalho ES. Clinical presentation and follow up of children with congenital toxoplasmosis in Brazil. Braz J Infect Dis. 2003 Oct; 7(5):325-31.
21. Andrade G. Triagem neonatal como estratégia para o diagnóstico e tratamento precoces da toxoplasmose congênita em Belo Horizonte, Minas Gerais. Belo Horizonte (MG): Universidade Federal de Minas Gerais; 2008.
22. Freeman K, Oakley L, Pollak A, Buffolano W, Petersen E, Semprini AE, et al. Association between congenital toxoplasmosis and preterm birth, low birthweight and small for gestational age birth. BJOG. 2005 Jan; 112(1):31-7.
23. Gilbert RE, Freeman K, Lago EG, Bahia-Oliveira LM, Tan HK, Wallon M, et al. Ocular sequelae of congenital toxoplasmosis in Brazil compared with Europe. PLoS Negl Trop Dis. 2008;2(8):e277.
24. Meenken C, Assies J, van Nieuwenhuizen O, Holwerda-van der Maat WG, van Schooneveld MJ, Delleman WJ, et al. Long term ocular and neurological involvement in severe congenital toxoplasmosis. Br J Ophthalmol. 1995 Jun;79(6):581-4.
25. de Melo Inagaki AD, Carvalheiro CG, Cipolotti R, Gurgel RQ, Rocha DA, Pinheiro KS, et al. Birth prevalence and characteristics of congenital toxoplasmosis in Sergipe, North-east Brazil. Trop Med Int Health. 2012 Nov;17(11):1349-55. doi: 10.1111/j.1365-3156.2012.03079.x. Epub 2012 Sep 14.
26. Carvalho A. Estudo de 114 casos de toxoplasmose congênita acompanhados no setor de Infectologia Pediátrica do Departamento de Pediatria, FM-UFMG, no período de 1982-1996. [dissertação]. Belo Horizonte: UFMG; 2001.
27. Olariu TR, Remington JS, McLeod R, Alam A, Montoya JG. Severe congenital toxoplasmosis in the United States: clinical and serologic findings in untreated infants. Pediatr Infect Dis J. 2011 Dec; 30(12):1056-61.
28. Gilbert RE, Thalib L, Tan HK, Paul M, Wallon M, Petersen E, et al. Screening for congenital toxoplasmosis: accuracy of immunoglobulin M and immunoglobulin A tests after birth. J Med Screen. 2007; 14(1):8-13
29. Pinon JM, Dumon H, Chemla C, Franck J, Petersen E, Lebech M, et al. Strategy for diagnosis of congenital toxoplasmosis: evaluation of methods comparing mothers and newborns and standard methods for postnatal detection of immunoglobulin G, M, and A antibodies. J Clin Microbiol. 2001 Jun; 39(6):2267-71.
30. Lago EG, Baldisserotto M, Hoefel Filho JR, Santiago D, Jungblut R. Agreement between ultrasonography and computed tomography in detecting intracranial calcifications in congenital toxoplasmosis. Clin Radiol. 2007 Oct; 62(10):1004-11.
Copyright 2024 Revista Médica de Minas Gerais
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License