RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 27 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20170027

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Educação Médica

A edificação do ensino médico humanizado no contexto da oncologia pediátrica: considerações sobre o filme "uma prova de amor"

Edification of humanistic medical teaching in the pediatrict oncology context: considerations about the movie "my sister's keeper"

Karla Emília de Sá Rodrigues1; Benigna Maria de Oliveira1; Fabiana Maria Kakehasi1; Joaquim Antônio Cesar Mota1; Ana Carolina Ferreira Roberto2; Laura Defensor Ribeiro2; Lucas de Andrade Saraiva2; Raissa Domingues de Simoni Silveira2

1. Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. UFMG, Faculdade de Medicina. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Karla Emília de Sá Rodrigues
E-mail: kesrodrigues@gmail.com

Instituiçao: Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Entre as diversas metodologias para o aperfeiçoamento do ensino da Medicina, o cinema aflora como opção interessante, não somente por despertar mais interesse do aluno, mas também por criar situações bastante similares àquelas vivenciadas no cotidiano, o que propicia ponderações pelo expectador. O filme "Uma prova de amor" (My Sister's Keeper, 2009) relata a história de Kate, uma adolescente que enfrenta o diagnóstico de leucemia e todas as adversidades e experiências que a doença provoca em sua vida e na de sua família. Devido às dificuldades de alunos, médicos, familiares e pacientes em lidar com as implicações da doença, o artigo objetiva a discussão de termos e conceitos amplamente utilizados no tratamento oncológico pediátrico, como luto, terminalidade, resiliência e bioética, sob a ótica da obra cinematográfica e da experiência dos autores no uso dessa metodologia de ensino. Os autores analisam o enredo do filme com o intuito de ressaltar esses temas de grande importância, porém pouco discutidos, na graduação médica.

Palavras-chave: Educação Médica; Oncologia Pediátrica; Luto; Terminalidade, Resiliência; Bioética.

 

INTRODUÇÃO

A ideia para a elaboração deste artigo surgiu em reunioes do projeto "Qualidade de Vida e Diagnóstico Precoce do Câncer na Infância e Adolescência", um dos eixos temáticos do Observatório da Saúde da Criança e do Adolescente (ObservaPed), programa de extensão da Faculdade de Medicina da UFMG. Nesse contexto, professores e acadêmicos, em discussões sobre o câncer infantil e suas inúmeras implicações biológicas, psíquicas e sociais, evidenciaram a importância de se abordar com mais frequência e profundidade no curso médico o tema da terminalidade, a fim de esclarecer conceitos e dúvidas, bem como de discutir as angústias vivenciadas pelos pacientes e seus familiares.

A partir dessa perspectiva, o filme "Uma Prova de Amor" mostrou-se um instrumento efetivo para tal análise, ao abordar, de forma clara e didática, o câncer na adolescência e seus desdobramentos. O enredo narra a história de Kate, uma adolescente diagnosticada com leucemia aguda aos cinco anos de idade. E descreve todas as adversidades e experiências que a doença provoca tanto em sua vida como na de toda a sua família. Dispostos a salvar a vida de Kate, seus pais decidem conceber um filho, por fertilização in vitro, a fim de que este doasse sua medula óssea para a irma enferma. Todavia, mesmo após diversas tentativas terapêuticas, Kate, aos 16 anos, encontra-se em estado terminal e tem o desejo de interromper o tratamento, indo contra a vontade dos seus pais em prosseguir com o tratamento. A abordagem do câncer infanto-juvenil na narrativa leva a reflexoes e exemplifica eventos frequentes nessa situação, tais como: o medo da morte, preocupações com a aparência, relações familiares e o limite terapêutico.

O artigo tem como objetivo a discussão de termos e conceitos amplamente utilizados no tratamento oncológico, sejam eles: luto, terminalidade e resiliência e bioética, sob o contexto de uma obra cinematográfica.

 

RESILIENCIA

Ao longo do tempo, diversos estudos investigaram protótipos de funcionamento mental/comportamental que pudessem auxiliar a antever o surgimento de desordem mental diante da vivência do estresse. Com o avanço das pesquisas no campo da psicologia do desenvolvimento, verificou-se que muitas crianças e adolescentes, ainda que submetidas a um evento adverso ou hostil, não evoluíam com o distúrbio psicológico. A partir de entao, pesquisadores começaram a indagar o que levaria um grupo de crianças a se mostrar mais vulnerável a determinadas situações adversas, enquanto outros seriam capazes de superar com sucesso dificuldades e desafios aos quais fossem submetidos.1,2

Descreve-se a resiliência como sendo um processo dinâmico que tem como resultado a adaptação positiva em contextos de grande adversidade.2 Termo ainda recente no campo da psicologia, a resiliência é definida por alguns autores como sendo a capacidade que uma pessoa possui de sobrepujar as situações de risco ou adversidade, incluindo: habilidade para enfrentar mudanças de vida, autoeficácia elevada e repertório de habilidades e técnicas que o indivíduo possui para poder defrontar-se com possíveis adversidades.3 Posto que o indivíduo resiliente faz uso de seus aprendizados positivos para defrontar os reveses, a resiliência pode ser vista como agente de proteção para a adaptação do sujeito diante dos desafios diários.4

Yunes e Szymanski ressaltam que os eventos de risco devem ser vistos como um transcurso e não como uma variável em si, sendo que os eventos de risco estao associados a toda chance de situações negativas de vida, capazes de contribuir para o indivíduo vir a exibir quaisquer problemas de ordem física, social ou emocional.5 Em convergência ao exposto, Rutter afirma ser imprescindível para o estudo dos mecanismos de resiliência certificar-se de situações que demonstrem risco substancial ao desenvolvimento do indivíduo.6 Há duas categorias primordiais, que se mostram aptas a inserirem risco na vida dos indivíduos. No primeiro grupo, encontram-se as transições normativas, que abrangem as mudanças relacionadas a o decurso do crescimento do indivíduo. O segundo grupo alberga acontecimentos adversos que não são esperados como, por exemplo, a morte de familiar, doença grave ou separação abrupta de um ente querido.7

Na situação do filme, observa-se que a personagem Kate está atravessando um período cujas duas categorias de risco supracitadas fazem-se presentes. Primeiramente, a própria adolescência em si, momento em que Kate é obrigada a encarar conflitos emblemáticos inerentes à adolescência, como a busca de relacionamento afetivo, do sexo e da vaidade. Uma cena que ilustra um desses conflitos juvenis é aquela em que Kate, incessantemente, sai à procura de um vestido para o baile anual do hospital onde seu tratamento é conduzido. Em um segundo momento, o diagnóstico de leucemia aguda acarreta vários eventos hostis para Kate, como a quimioterapia e os seus efeitos colaterais como enjoos frequentes e alopecia. Além disso, podem ser citados os procedimentos médicos invasivos como as biópsias e as transfusões sanguíneas, as internações hospitalares e a recidiva do câncer.

A definição de resiliência, além de requerer a existência de um evento adverso, demanda também que o indivíduo demonstre adaptação positiva, ou seja, que ele seja capaz de superar a situação de adversidade.1 Conforme alguns autores, esses indivíduos que encerram a habilidade de sobrepujar eventos hostis sem se deixar privar do equilíbrio incipiente são denominados "personalidades resilientes".8,9 Flach propoe a existência de um grupo de características inerentes da personalidade resiliente, que são fundamentais para a elaboração da capacidade de resiliência10:

1. notável capacidade de tolerância ao sofrimento imposto pela adversidade e habilidade de encontrar sentido nessas situações. No tocante ao filme, existem algumas cenas que ilustram nitidamente esse atributo nos personagens. Primeiro, pode-se citar a cena em que o namorado de Kate se declara para ela dizendo: "Se eu não tivesse câncer, eu nunca teria encontrado você. Entao, sim, eu sou feliz por estar doente". Segundo, lembra-se a cena em que toda a família, a despeito do câncer de Kate e todo o sofrimento acarretado pela doença, reúne-se para desfrutar momento juntos em um parque, onde se divertem. Por último, no final do filme tem-se a fala da irma de Kate: "Minha irma morreu naquela noite [.], ela só se foi, virou um pedaço de céu azul";

2. disposição para sonhar e ampla gama de interesses na vida. No filme, Kate faz planos em relação ao namorado e à possível cura de ambos, além de ter diversos interesses pertinentes a uma adolescente da sua idade, como namorar, viajar (Kate falava que gostaria de viajar para Montana), divertir-se com a família (cena em que toda família vai ao parque) e fazer compras (momento em que Kate sai para comprar um vestido para o baile).

3. não ter medo de depender da ajuda de terceiros. No filme, quando Kate se encontrava em um estado mais debilitado e, por conseguinte, não conseguia realizar o autocuidado, ela demonstra estar confortável com sua irma lhe ajudando a se higienizar em ocasioes de epistaxe ou após evacuação;

4. sentimento de autoestima elevada. A personagem do filme demonstra melhora da autoestima quando começa a namorar outro paciente também diagnosticado com leucemia aguda. Essa adequação da autoestima é demonstrada quando Kate sai para comprar um vestido e uma peruca para ir com seu namorado ao baile no hospital. Antes de sair para o baile, Kate, satisfeita e contente, pergunta para seu pai se está bonita.

5. ter consciência dos seus sentimentos pessoais e daqueles de outras pessoas, além de ser capaz de demonstrar esses sentimentos de modo apropriado. Durante o filme, Kate mostra percepção clara dos seus próprios sentimentos e dos de sua irma, quando solicita a esta que procure ajuda de um advogado para impedir que a mae delas a obrigue a doar um rim para Kate. A paciente toma essa decisão, já em estado terminal, no qual está demasiadamente cansada e tem a consciência de que o transplante renal, nesse estágio da doença, não irá contribuir para o prolongamento da sua vida. Assim, uma cirurgia desse porte não se justificaria tanto para ela quanto para sua irma, que seria obrigada a viver o resto da vida com rim único. Igualmente, a paciente demonstra entender também o sofrimento da mae, quando essa descobre o desejo da filha de não querer continuar com os tratamentos para a leucemia. Com o intuito de confortá-la, Kate convida sua mae para ficar sozinha no quarto com ela e lhe mostra um caderno no qual havia feito diversas colagens sobre a história de sua própria vida, o que incluiu uma parte dedicada à sua mae, a qual a paciente diz "ser um anjo da guarda que a protege todo segundo" e agradece a ela por toda a dedicação e por nunca deixá-la sozinha;

6. senso de humor aguçado. A paciente exibe senso de humor ao fazer um gracejo, logo no início do filme, a respeito da sua própria doença:

"- Ei querida, qual é seu signo? - Kate simula uma terceira pessoa perguntando.

- Câncer - Kate responde.

- Você é de Câncer?

- Não, eu sou de Leao. Mas eu tenho câncer."

Não obstante, as situações de adversidade não são restritas somente ao indivíduo doente, podem afetar também os familiares que com ele mantêm convívio. Alguns autores recomendam que a resiliência individual não seja segregada da resiliência familiar. Haja vista que diversos elementos ambientais e sociais são capazes de atuar sob a personalidade resiliente, a própria família poderia proporcionar proteção substancial ao indivíduo.10,11

O diagnóstico oncológico revela-se como situação adversa tanto para o paciente quanto para sua família.12 Estudos na área mostram que o paciente tende a apresentar mais adaptação positiva em comparação a seus pais, principalmente quando há necessidade de sua internação.13

Ademais, outro agente estressor importante, durante a condução do tratamento oncológico, diz respeito aos procedimentos médicos invasivos.14 No filme, conquanto Kate tenha sido submetida a múltiplos exames agressivos ao longo da sua vida, foi sua irma que em diversos momentos também precisou fazer tais procedimentos para ajudar no seu tratamento, demonstrando incômodo muito intenso, talvez maior que o da própria Kate. Corroborando esse achado, o advogado da irma usa como um dos argumentos para conseguir a emancipação médica dela o fato de essas condutas invasivas estarem interferindo de forma negativa na sua qualidade de vida.

Para Junqueira e Deslandes, no processo da resiliência não há regressão para o estado inicial, anterior à situação de risco. Ao contrário, os eventos desfavoráveis são superados e a experiência passa a ser "elaborada simbolicamente" e, dessa forma, incorporada ao aprendizado do indivíduo, contribuindo para que este possa continuar sua vida e enfrentar novos obstáculos.15 No desfecho do filme, os pais e irmãos de Kate, após seu falecimento, mostraram-se, não obstante a angústia do luto, capazes de dar continuidade às suas vidas.

 

LUTO E TERMINALIDADE NA ADOLESCENCIA

O luto e a terminalidade na adolescência são experiências que propoem reflexão sobre o amadurecimento de conceitos relacionados, sobretudo, ao processo de formação de identidade pessoal. A adolescência pode ser entendida como a transição entre a infância e a idade adulta, em que experimentações sociais e corporais, lapidação de emoções e expressão de mais autonomia em relação aos pais passam a orientar ambições.16 Diante desse turbilhao de transformações e instruções adaptativas, a ocorrência de uma doença ameaçadora à vida força o adolescente a lidar com uma transformação definitiva adiante da labilidade de seu processo de consolidação como indivíduo. Além de mudanças físicas e estéticas, muitas vezes malcompreendidas, e da ideia de dependência parental prolongada ou mesmo indispensável, o jovem deve lidar com o conceito de restrição da própria perspectiva de vida. Respostas iniciais a esse processo tendem a mostrar o ressentimento e a negação quando na aproximação da morte. No entanto, muito se vê de uma construção individual, que pode parecer diminuta quando comparada à capacidade devastadora da doença, mas que explicita a vivacidade adolescente agregada ao corpo enfermo.17

Identifica-se tal vivacidade em Kate ao mostrar-se determinada a conduzir as implicações de sua doença sem a interferência de sua mae, ainda que reconhecesse a melhor intenção das iniciativas até entao tomadas com o intuito de mantê-la viva. Esse impasse transcende a condição fictícia e torna-se realidade em nosso meio, agravado pelo fato de a família optar por omitir informações aos adolescentes ou adultos jovens ou mesmo distorcê-las. O desdobramento na família de Kate é evidente nos cuidados, na decisão de gerar outro filho e fazer nascer a esperança da mitigação do sofrimento promovido pela doença, no ofuscamento da maioria para que a jovem garota pudesse ser devidamente amparada. Demonstrações de amor como essas não são mal-intencionadas ao almejarem a proteção e o conforto do adolescente com doença terminal, mas podem sufocar a condição natural de sua busca por sustentação a partir de meios que lhe sejam próprios e, por isso, parte de sua identidade.18 Pensar em seu próprio plano de cuidados de fim de vida deve ser condição entendida como a possibilidade de estruturação da adolescência, ainda que limitada, de forma a contemplar aspectos típicos dessa fase do processo de desenvolvimento humano.19,20

O estreitamento de relações afetivas, a necessidade de realização de sonhos arraigados da infância e a dissolução de medos são algumas das características fundamentais da transição para a vida adulta. O esclarecimento, portanto, do adolescente quanto à sua perspectiva de vida cria envolvimento necessário para que ambições inerentes à sua condição de enfermidade possam ser devidamente incluídas em seu plano de tratamento.21 Ainda que a terminalidade esteja associada, para o adolescente, a uma série de experiências negativas, como o medo da alienação, o medo da morte, preocupações com a aparência, além de consternações relativas ao esquecimento, pequenas ambições são suficientes para orientar, em melhor sentido, o restante de vida.22 Assim, investir na relação amorosa, preparar-se para a festa e passar um dia na praia foram ambições da jovem Kate suficientes para trazer-lhe não só um conforto afugentado pela realidade da morte iminente, mas notoriedade diante do duelo estabelecido entre terminalidade e autoafirmação como adolescente.

Ainda que muitos jovens ajam de modo autônomo e desbravador de sua condição, a exemplo de Kate, há outros que se agarram a resquícios infantis. Essa atitude pode ser entendida como medida de negação inicialmente, desvendada em seguida como uma proteção inconsciente ou consciente.16 Assumir comportamento dependente, alienado e desinteressado em sua condição não subtrai do jovem conflitos usuais da adolescência, uma vez que o rompimento com o conforto é conflito típico dessa transição, entendido algumas vezes como subversão. Além disso, a manutenção de hábitos infantis pelo adolescente transfere à família paradoxo de zelo desmedido quando não há muito o que ser feito. Essa situação demanda, portanto, atenção especial da equipe de saúde assistente quanto à honestidade e ao esclarecimento da família e do paciente perante a realidade da morte inevitável.19

A morte é, assim, compreendida como a etapa que representa o poder sobre o qual não temos controle algum, assume caráter de invencibilidade rejeitado pela mae de Kate, quando a própria jovem já era capaz de compreendê-lo. Apesar de ser etapa natural e inevitável, ganha aspectos de temeridade diante da vitalidade geralmente associada a crianças e adolescentes. Nesse sentido, percebemos não só o amadurecimento acelerado na maioria dos jovens diagnosticados com doença terminal, mas principalmente uma tentativa de legitimar a realidade da morte como acontecimento inadiável, mas que não atua com o direito de impedir que transformações essenciais desse momento de transição aconteçam. O jovem com doença terminal tende a sentir medo e pode não compreender o agravo do curso da doença, mas também sente desejos e anseia por experimentações, constrói a tempo uma personalidade para lhe caracterizar e soma experiências variadas para erguer posicionamento diante do que está acontecendo ao seu redor. Assim, nota-se que o adolescente com doença sem perspectiva de cura não estagna por completo a transição que naturalmente deveria transpor, mas adiciona a esse percurso expoente marcador na composição de sua identidade pessoal, a postura frente a um dos assuntos velados do homem amadurecido, a morte.17

 

BIOÉTICA

O filme suscita, ainda, questionamentos de ordem bioética como a fertilização in vitro, com o objetivo de gerar uma criança geneticamente compatível com o irmão para possivelmente curá-lo da doença ao considerar-se a autonomia do ser humano, concebido com tal finalidade, sobre o próprio corpo. Logo ao nascer, Anna doa sangue de seu cordao umbilical para a irma; anos depois, ela é submetida à doação de medula óssea e ao atingir 11 anos, é solicitada a doar um rim para a irma.

Se, por um lado, gerar outro filho para salvar a vida do primeiro é extremamente nobre, por outro lado há que se considerar que o nascituro terá seu destino traçado e poderá carregar um fardo. Tanto no contexto cultural quanto legal, cada ser humano é entendido como um fim em si e não como meio de propiciar vida e qualidade de vida a outrem. Nesse contexto, vale a reflexão sobre até que ponto está sendo assegurada à nova criança a dignidade da pessoa humana. Assim, é importante considerar a quais implicações psicológicas e físicas "aquele que tem a missão de curar" estará sujeito.

No âmbito científico, o Conselho Federal de Medicina (CFM)23, por meio da Resolução nº 2.013/2013, que trata sobre as Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, apresenta como alguns de seus princípios gerais:

▪ Princípio 1 - As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar a resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação.

▪ Princípio 5 - É proibida a fecundação de oócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não a procriação humana.

Assim, fica claro que o CFM atribui função social às técnicas de reprodução assistida, que é a de propiciar a procriação aos casais que não o conseguiriam por métodos convencionais, entendendo cada indivíduo como um fim em si. Resta refletir sobre como o médico deve se posicionar diante de uma família que pretende realizar uma fertilização in vitro com finalidade de salvar a vida de um irmão e como esse profissional deve aconselhar essa família. Além disso, é importante discutir quais os limites para as intervenções médicas a serem realizadas nessa nova criança.

Quanto à autonomia que o indivíduo menor de idade tem sobre seu próprio corpo, quando este é gerado com o objetivo de curar um irmão, a Constituição brasileira não faz distinção de pessoas. Assim, independentemente do motivo pelo qual a criança foi concebida, vindo esta a nascer, ela gozará plenamente dos direitos concedidos a qualquer indivíduo.24 É constitucional também que os filhos estao sujeitos ao poder familiar enquanto são menores, entretanto, todo o poder atribuído aos pais sobre os filhos é, tao somente, para que os pais possam promover o melhor desenvolvimento dos menores; e em caso de mais de um filho isso deverá ocorrer de forma indistinta.24 Ainda, de acordo com o Artigo 1.692 do Código Civil, "sempre que no exercício do poder familiar colidir o interesse dos pais com o do filho, a requerimento deste ou do Ministério Público, o juiz lhe dará curador especial".25 Assim, os pais não podem dispor deliberadamente dos filhos e um dos limites para essa autoridade familiar é o próprio interesse do filho. Ademais, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente26 (ECA):

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 17 O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Pode-se concluir que o ECA também compreende cada indivíduo como um fim em si e que os pais têm o dever de prestar proteção integral aos filhos, sem distinção entre eles. Além disso, o ECA limita os poderes dos pais; no caso em questao não poderiam ser realizados procedimentos médicos que violassem a integridade física ou psíquica da criança/adolescente, que se configurassem como exploração ou que não fossem consentidos pelo menor. Assim, nos casos em que os pais (representantes legais) desrespeitarem as garantias concedidas pelo ECA, o profissional de saúde deverá acionar o Ministério Público.

Por fim, é razoável entender que nenhum ser humano deve ser sujeitado a outro, independentemente das razoes motivadoras, e que os pais devem amar e zelar pela vida e saúde de seus filhos de maneira equânime. A solidariedade e colaboração fraternas devem ser estimuladas pelos pais, mas nos casos de submissão a procedimentos de saúde é fundamental considerar os riscos e benefícios a que ambos os filhos estarao sujeitos e o desejo de ambos quanto à realização do procedimento em questao.

 

CONCLUSÕES

O esmiuçar da produção cinematográfica "Uma Prova de Amor", considerada representação bastante próxima de situações vivenciadas em nosso cotidiano, foi estratégia capaz de evidenciar o impasse entre o respeito à autonomia de decisão do paciente adolescente, como a jovem Kate, e o manejo do fim da vida - condição que guia essencialmente a discussão desdobrada neste texto. Saber identificar o limiar entre resistência e resiliência pode ser atividade que exija do médico esforço e dedicação, sendo habilidade de pouco ou nenhum sucesso se não relacionada ao exercício contínuo de dedicação integral ao ato do cuidado. O intuito primeiro de todo esse processo não deve ser outro que incitar a reflexão envolta tanto pela crítica quanto pela sensibilidade, que constituem aspectos quase paradoxais da prática médica.

 

REFERENCIAS

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