RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 27 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20170029

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Artigo de Revisão

Doenças hepáticas autoimunes em crianças e adolescentes

Autoimmune liver disease in children and adolescents

Eduardo Ramos Santos1; Eleonora Druve Tavares Fagundes2; Alexandre Rodrigues Ferreira2; Thaís Costa Nascentes Queiroz3; Caroline Caldeira Hosken4

1. Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, Hospital das Clínicas-HC, Gastroenterologia Pediátrica. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria; HC, Gastroenterologia Pediátrica. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. UFMG, Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduaçao em Saúde da Criança e Adolescente. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. UFMG, Faculdade de Medicina, Curso de Medicina. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Eleonora Druve Tavares Fagundes
E-mail: eleonoradruve@uol.com.br

Instituiçao: Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

As doenças hepáticas autoimunes correspondem a um espectro de doenças imunomediadas, cujos alvos da agressão são hepatócitos e ductos biliares. Entre essas doenças, destacam-se a hepatite autoimune (HAI) e a colangite esclerosante primária (CEP) e a sobreposição das duas, conhecida como colangite autoimune. A HAI é caracterizada pela elevação de aminotransferases, por autoanticorpos não específicos, níveis elevados de imunoglobulina G e histologia hepática com sinais de inflamação, na ausência de outras causas. De acordo com a positividade dos autoanticorpos, podem ser definidos dois tipos de HAI: tipo 1 e tipo 2. A HAI tipo 1 apresenta positividade para anticorpo antimúsculo liso e/ou fator antinuclear e acomete tanto adultos quanto crianças, enquanto a HAI tipo 2 possui níveis elevados de anticorpos antimicrossomal de rim e fígado e acomete crianças mais novas. Ambos os subtipos têm resposta importante ao tratamento imunossupressor, com corticoide e azatioprina. A CEP é uma doença colestática crônica, de etiologia não definida, caracterizada por inflamação progressiva, fibrose e estenose dos ductos biliares intra e extra-hepáticos. O diagnóstico é comprovado por meio da colangiografia, que evidencia áreas de dilatações intercaladas com estenoses. No momento, não há tratamento efetivo a não ser o transplante hepático. Além da cirrose, essa doença predispoe a várias complicações, como colangites de repetição e colangiocarcinoma, estando também associada à alta incidência de doença inflamatória intestinal. Este artigo tem por objetivo apresentar breve revisão sobre essas duas doenças em crianças e adolescentes, enfatizando a suspeita clínica e a abordagem inicial do paciente.

Palavras-chave: Doenças Autoimunes; Hepatite Autoimune; Colangite; Colangite Esclerosante; Criança; Adolescente.

 

INTRODUÇÃO

As doenças hepáticas autoimunes correspondem a um espectro de doenças imunomediadas, cujos alvos da agressão são hepatócitos e ductos biliares, provavelmente desencadeadas por fatores ambientais atuando em pacientes geneticamente predispostos, revelando falha nos mecanismos de imunotolerância.1,2 Entre essas doenças, destacam-se a hepatite autoimune (HAI), a colangite esclerosante primária (CEP) e colangite biliar primária, sendo esta última rara entre crianças e adolescentes.1 Há ainda pacientes que apresentam sobreposição de quadro clínico de hepatite e colangite, denominado de colangite autoimune.1,3 Esse quadro tem sido descrito com mais frequência nos últimos anos, especialmente em crianças.

A HAI é uma entidade rara, porém é a doença hepática autoimune mais comum nessa faixa etária.2 São poucos os dados epidemiológicos em crianças; em adultos tem prevalência estimada de 10.7 a 16.9/100.000 e incidência anual média de 0.85 a 1.9/100.000 nos países da Europa e América do Norte.2,4,5 Pouco se sabe sobre as taxas de incidência e prevalência da CEP em crianças; em adultos elas são estimadas em 1 a 1.3/100.000 e 8.5 a 16.3/100.000, respectivamente. Em adultos e crianças, a CEP é frequentemente associada à doença inflamatória intestinal (60 a 80% dos casos).3,6

As doenças hepáticas autoimunes são doenças progressivas com fatores genéticos e ambientais envolvidos, mas ainda de etiopatogenia obscura.1-4 Essas doenças possuem manifestações clínicas variadas, por vezes pouco específicas, sendo o pronto reconhecimento e tratamento determinantes para o prognóstico dos pacientes com HAI. Em relação à CEP, o prognóstico é mais reservado.2,3,5,6 Este artigo tem por objetivo apresentar breve revisão sobre a hepatite autoimune e a colangite esclerosante primária em crianças e adolescentes, enfatizando a suspeita clínica e a abordagem inicial do paciente.

Inicialmente, é interessante ressaltar o conceito da doença hepática crônica, uma vez que a HAI e a CEP devem sempre ser pesquisadas nesse contexto. Doenças hepatobiliares crônicas são relativamente raras em pacientes pediátricos. Não há muitos dados sobre a prevalência, porém cerca de 15.000 crianças com hepatopatias são hospitalizadas por ano, nos EUA.7 O pronto reconhecimento dessas entidades e o início do tratamento, quando possível, é fundamental na tentativa de reduzir a morbimortalidade, a evolução para cirrose e insuficiência hepática e todas as suas complicações.7-9

Doenças hepáticas em crianças são subdiagnosticadas ou diagnosticadas com atraso, uma vez que frequentemente se apresentam com sinais e sintomas leves e inespecíficos, especialmente em fase inicial.7,8 Algumas crianças com quadro clínico inicial sugestivo de hepatite aguda podem exibir sinais clínicos de cronicidade ou persistência de alterações laboratoriais, após aparente resolução do mesmo. Outras podem apresentar alterações da bioquímica hepática realizada em exames de rotina ou por outros motivos, devido a queixas não relacionadas ao fígado. E outras podem ser reconhecidas apenas após complicações, como ascite, hemorragia digestiva, insuficiência hepática crônica e falência hepática aguda.7-9

Deve ser sempre levantada a hipótese diagnóstica de hepatopatia crônica nos seguintes casos:8,9

▪ relato de icterícia com colúria (predomínio de bilirrubina direta);

▪ recorrência de um quadro aparente de hepatite aguda ou persistência dos sintomas por mais de três meses;

▪ história familiar de doença hepática crônica;

▪ outras doenças autoimunes (diabetes mellitus tipo I, tireoidite de Hashimoto) como comorbidade;

▪ prurido generalizado sem lesão dermatológica que o justifique;

▪ história de complicações como hemorragia digestiva alta, ascite ou encefalopatia;

▪ palpação de hepatoesplenomegalia, fígado reduzido à hepatimetria ou palpação do lobo esquerdo com consistência aumentada;

▪ manifestações cutâneas de doença hepática crônica (telangiectasias, aranhas vasculares, eritema palmar e baqueteamento digital);

▪ aminotransferases e enzimas canaliculares (fosfatase alcalina e gama glutamiltransferase) alteradas, pois pode ser a única indicação de disfunção hepática.

Diante de um paciente com sinais e sintomas de hepatopatia crônica, o diagnóstico de HAI deve ser sempre pensado, especialmente no sexo feminino. Por sua vez, a CEP deve ser sempre pesquisada nos pacientes com aumento de gama glutamiltransferase (GGT) e fosfatase alcalina (FA), principalmente no sexo masculino e com doença inflamatória intestinal associada.

 

HEPATITE AUTOIMUNE

A hepatite autoimune é uma doença crônica com achados clínicos, bioquímicos, sorológicos e histológicos que sugerem reação imunológica com agressão aos hepatócitos do próprio paciente, provocando lesões celulares irreversíveis.10 É um processo de inflamação crônica do fígado, caracterizado por hepatite de interface, aumento de aminotransferases, hipergamaglobulinemia, produção de autoanticorpos e boa resposta ao uso de imunossupressores.11,12

Baseado no tipo de autoanticorpos detectados, podem ser identificados dois tipos de hepatite autoimune: tipo 1 e tipo 2. A HAI-1 é marcada pela presença do fator antinuclear (FAN) e anticorpos antimúculo liso (AAML), podendo acometer tanto adultos quanto crianças. Já a HAI-2 apresenta positividade para anticorpo antimicrossomal de fígado e rim (anti-LKM1, do inglês anti-liver kidney microsomal type 1). É caracterizada por início mais precoce, curso mais agudo e, por vezes, fulminante.2-5,12

Manifestação clínicas

A HAI acomete ambos os sexos, mas com predomínio no sexo feminino, tanto adultos como crianças. As manifestações clínicas são variadas, caracterizadas pela flutuação da atividade da doença, com períodos de doença subclínica e de agudização.5,11 Alguns pacientes podem manifestar sintomas gerais e inespecíficos como prostração, letargia, anorexia, emagrecimento, mialgia, rash cutâneo, amenorreia e aumento do volume abdominal, com hepatoesplenomegalia.11-13 Porém, é frequente quadro clínico compatível com hepatite aguda, com febre, icterícia, colúria, hipocolia fecal, náuseas e vômitos; em até 50% dos casos pode haver quadro semelhante prévio.5,11 Ocasionalmente, a forma de apresentação pode ser de hepatite fulminante, especialmente no caso da HAI-2. Em até 30% dos casos, o paciente pode exibir complicações de cirrose hepática, como hemorragia digestiva e ascite.5,12,13 Alguns pacientes assintomáticos são diagnosticados a partir de exames bioquímicos alterados solicitados para queixas não relacionadas diretamente ao fígado, como dor abdominal, por exemplo. Manifestações extra-hepáticas de autoimunidade também podem estar presentes, como tireoidite, artrites, psoríase, doença inflamatória intestinal, diabetes mellitus tipo I e anemias hemolíticas.3

Exames laboratoriais

Na suspeita de hepatopatia crônica, a bioquímica hepática deve ser solicitada. Na HAI, os exames laboratoriais demonstram aumento significativo de alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST), com níveis podendo superar 1.000 U/L. As concentrações séricas de bilirrubinas, principalmente da fração direta, GGT e FA, também podem estar alteradas, porém são menos marcantes.2,4,12 Em casos em que há aumento acentuado ou persistente destes, outras doenças devem ser levadas em consideração, como obstrução biliar extra-hepática, CEP, colangite autoimune ou doenças induzidas por droga.2 Nesses casos, pode ser necessária a realização de ressonância magnética das vias biliares para afastar a possibilidade de CEP ou colangite autoimune.14

Outra alteração importante e característica na HAI é o aumento de globulinas sérica, principalmente da fração gama devido ao aumento da imunoglobulina G (IgG acima de 2 g/dL), com níveis séricos normais de imunoglobulinas A e M.2,12,15 Inclusive, a monitorização sérica da fração gama das globulinas é um importante marcador de atividade da doença durante o tratamento, sendo que a normalização do mesmo associado à normalização da AST e ALT é considerada como remissão bioquímica da doença.15

Em estágios mais avançados da doença pode haver hipoalbuminemia, alteração da atividade de protrombina (AP) e da razao normalizada internacional (RNI), devido à perda da função hepática, e plaquetopenia, anemia e leucopenia, devido ao hiperesplenismo.

A identificação de autoanticorpos constitui uma importante parte do diagnóstico da HAI, inclusive determinando o subtipo conforme já descrito. Normalmente, em crianças saudáveis, os níveis de autoanticorpos circulantes são relativamente baixos. Portanto, níveis pequenos como 1/20 para FAN e antimúsculo liso e 1/10 para anti-LKM1 são considerados relevantes.2,12-15 Outros anticorpos, como o anti-LC1 (do inglês, anti-liver cytosol type 1), anticitoplasma de neutrófilos (p-ANCA), antiantígeno hepático solúvel/ fígado-pâncreas (anti-SLA/LP) e fator reumatoide podem estar presentes e auxiliar o diagnóstico.2,12-14

É importante, ainda, afastar outras doenças hepáticas, como as hepatites virais, as infecções por citomegalovírus (CMV) e Epstein-Barr vírus (EBV), deficiência de alfa-1-antitripsina e doença de Wilson.14

Diagnóstico histológico

A biópsia hepática deve ser realizada assim que possível, tanto para ajudar na confirmação do diagnóstico quanto para avaliar a extensão da agressão hepática, já que os níveis séricos de ALT/AST e IgG não a refletem com exatidao.2,4,5,13,14 Porém, por vezes, não é imprescindível para o diagnóstico em doenças com manifestações clássicas. Em casos em que a biópsia hepática não pode ser feita, prova terapêutica com corticoide pode ser realizada para reforçar ou afastar o diagnóstico.14

Não há achados histológicos patognomônicos, sendo os mais comumente encontrados: hepatite de interface (infiltrado inflamatório em espaços portais, periportais e intralobulares, composto por linfócitos e plasmócitos), necrose em saca-bocados, rosetas de hepatócitos, alargamento dos espaços portais por fibrose e até desarranjo arquitetural por cirrose.2,4,14

Critérios diagnósticos

Apesar de existirem vários achados capazes de sugerir o diagnóstico de HAI, não há um teste padrao-ouro ou patognomônico.5 Portanto, o diagnóstico baseia-se em achados clínicos, laboratoriais, sorológicos e histológicos sugestivos e a exclusão de outras possíveis causas de doenças hepáticas (hepatites virais, deficiência de alfa1-antitripsina, doença de Wilson, esteatose hepática não alcoólica, hepatite por álcool e drogas).4,5,14,15

Com o objetivo de padronizar o diagnóstico mundialmente, foram propostos sistemas de escores, sendo o primeiro criado em 1993 e posteriormente revisado em 1999. Esse escore, apesar de ser muito sensível e específico, era muito extenso, o que dificultava sua aplicabilidade na prática clínica. Assim, em 2008, foi criado o escore simplificado (Tabela 1), que apresenta menor número de itens, mas com boa sensibilidade e especificidade.14,15

 

 

Tratamento

O objetivo do tratamento é obter a completa remissão da doença e evitar a evolução da doença hepática. O pilar principal do tratamento é a terapia imunossupressora, com corticosteroide e azatioprina, e pode ser divido em duas fases: indução e manutenção.12-14 Na fase de indução, o objetivo é induzir a remissão da doença e geralmente inicia-se com corticoide (prednisona ou prednisolona) na dose de 30-60 mg/dia (1-2 mg/kg/dia, máximo de 60 mg/dia) associada à azatioprina, na dose de 1-2 mg/kg/dia, máximo de 100 mg/dia4,12-15 A azatioprina leva até três meses para atingir o seu efeito máximo, portanto, o seu papel nessa fase não é auxiliar na indução da remissão, mas permitir que a dose de corticoide seja reduzida o mais breve possível.2,4 O alvo da indução é normalizar os níveis de AST/ALT, gamaglobulina e IgG.4 Portanto, o paciente deve comparecer em retornos mensais ou a cada seis semanas, com exames de rotina (ALT, AST, GGT, FA, RNI, albumina, bilirrubinas e eletroforese de proteínas).14 Em caso de melhora clínica e laboratorial, pode-se iniciar redução gradual da prednisona nas próximas consultas, mantendo na menor dose possível.5,12,14 Ajustes nas doses das medicações podem ser necessárias, de acordo com a resposta clínica e laboratorial às reduções.14

Depois de atingida a remissão, inicia-se a fase de manutenção, na qual deve ser mantida a imunossupressão com a menor dose possível de corticoide, cerca de 5 mg/dia, ou em dias alternados, que permita o controle clínico e laboratorial da doença.5,13

A maioria dos pacientes responde bem ao tratamento imunossupressor. A resolução histológica é mais demorada, podendo ocorrer em até dois anos da melhora clínica e bioquímica. Não há evidência clara na literatura sobre a duração e a época de suspensão do tratamento. Em pacientes que atinjam remissão histológica, sem sinais de atividade inflamatória portal, pode ser tentada a retirada da medicação após pelo menos dois anos de tratamento, porém essa decisão deve ser tomada com muita cautela.4,5,13,14 Taxas de recidivas podem chegar a até 80% dos casos após suspensão das medicações.4,5,14 No caso de HAI-tipo 2 não deve ser tentada a retirada do tratamento, devido à alta probabilidade de recidiva, sendo aconselhável manter uso de corticoides em baixa dosagem por tempo indefinido.5,13

Outro ponto importante são os efeitos colaterais das medicações utilizadas. Os corticosteroides podem desencadear diabetes mellitus, osteoporose, cataratas e até distúrbios psiquiátricos, sendo importante a realização anual de exame oftalmológico, dosagem de glicemia e íons e até avaliação da necessidade de densitometria óssea.4 Quanto à azatioprina, pode haver náusea, vômitos, rash, pancreatite, hepatotoxicidade e supressão da medula-óssea.4 Portanto, o uso da azatioprina não é aconselhável em pacientes com plaquetopenia (<50.000) e/ou leucopenia (<3.000) e alguns estudos sugerem a dosagem da enzima tiopurina metiltransferase (TPMT) antes de iniciar o tratamento.4,5,14

Nos casos de colangite autoimune, isto é, sobreposição de hepatite e colangite, o ácido ursodesoxicólico pode ser associado ao tratamento imunossupressor, embora ainda faltem mais estudos demonstrando sua eficácia e melhora de prognóstico.

Prognóstico

O prognóstico das crianças com HAI, que respondem ao tratamento imunossupressor, geralmente é bom, sendo que o tratamento é efetivo em 85% dos casos e a sobrevida em 10 anos é superior a 90%.4,12 Porém, a necessidade do uso de imunossupressores durante toda a vida, com todos os seus efeitos colaterais, deve ser considerada, já que a taxa de manutenção da remissão em pacientes sem medicação é apenas de 19-40%.5,15 Em 8,5 a 10% dos casos há necessidade de transplante hepático após oito a 14 anos do diagnóstico, inclusive com a possibilidade de reativação da doença após o transplante.12

 

COLANGITE ESCLEROSANTE PRIMARIA (CEP)

A CEP é uma doença hepatobiliar crônica, de causa desconhecida, caracterizada por inflamação e fibrose, persistente e progressiva, de ductos biliares intra e extra-hepáticos, podendo causar obstrução com colestase e cirrose.6,14,16,17 A etiopatologia ainda é desconhecida, mas parece haver envolvimento de fatores genéticos, imunológicos e ambientais.14,16

Essa doença é predominante no sexo masculino (60-70% dos casos), com média de idade de 30 a 40 anos, porém pode acometer pacientes de todas as idades, inclusive crianças.14,16,17 A incidência reportada em adultos, na Europa e América do Norte, é de 1 a 1.3/100.000 e a prevalência de 8.5 a 16.3/100.000.3,1618 A associação entre CEP e doença inflamatória intestinal (DII) é relatada em 60 a 80% dos casos, sendo mais frequente a retocolite ulcerativa (RCU).3,6,14,17,18

Em crianças, há uma série de causas de colangite esclerosante secundária que devem ser descartadas antes de firmar o diagnóstico de CEP. Entre elas se destacam: malformação das vias biliares, colangiopatias associadas a imunodeficiências, lesões isquêmicas, colangite piogênica recorrente, histiocitose de células de Langerhans, fibrose cística e outras.3,6,16

Alguns subtipos da doença podem ser identificados. O subtipo clássico envolve a árvore biliar intra e extra-hepática e pode corresponder a até 90% dos casos de CEP. Também há o subtipo de pequenos ductos, que é caracterizado por não apresentar alterações nos exames de imagem, apenas na histopatologia, além de ter melhor prognóstico que os demais.16-18

Manifestação clínicas

Na maioria dos quadros, a CEP tem um curso insidioso, podendo ser assintomática ou oligossintomática no momento do diagnóstico. Sua suspeita é geralmente levantada devido a alterações em AST, ALT, GGT e FA, principalmente as duas últimas, em exames de rotina ou durante avaliação de hepatomegalia.14,16 Quando sintomática, pode apresentar-se com sintomas leves como dor abdominal, fadiga, anorexia, icterícia e perda de peso; ou complicações da cirrose e insuficiência hepática.14,16,17 Durante o curso da doença, podem surgir outras complicações como colangites de repetição (secundária à estenoses dominantes), colangiocarcinoma e, mais tardiamente, carcinoma de vesícula biliar e câncer colorretal (secundário à DII associada), que devem ser rastreados.17Essa entidade deve ser suspeitada em todo paciente com quadro de colestase sem causa definida, com hepatomegalia ou hepatoesplenomegalia e enzimas canaliculares alteradas, especialmente no sexo masculino, ou pacientes com DII e bioquímica hepática alterada.3,6,7,14,17

Diagnóstico

A identificação da CEP é em geral realizada no diagnóstico diferencial de pacientes com alterações clínicas e laboratoriais sugestivas de colestase, associado a sinais típicos da doença em vias biliares em exames de imagem (colangiorressonância ou colangiografia endoscópica retrógada), com ou sem achados na histologia.6,14 Conforme mencionando anteriormente, devem ser afastadas as causas de colangite esclerosante secundária, principalmente em crianças.3,6,16

Devem ser solicitados exames de bioquímica hepática (AST, ALT, GGT, FA), função hepática (albumina, coagulograma) e bilirrubinas. Em geral, há pequena elevação de enzimas hepáticas (AST e ALT) e, mais marcadamente, de FA e GGT, sendo esta última mais sensível em crianças.14,17,19 Níveis mais altos de AST/ALT, superiores a cinco vezes o valor de referência, devem levantar a suspeita de HAI associada, a chamada colangite autoimune.14 Os níveis de bilirrubinas são tipicamente normais e níveis elevados sugerem doença avançada ou outras complicações.14,17 Os níveis séricos de albumina podem estar reduzidos e o RNI alargado com a evolução da doença. Pode haver positividade para autoanticorpos, como FAN, anticardiolipina, FR e p-ANCA, sendo este último detectável em até 80% dos pacientes.14,17,19

A colangiografia é o principal método diagnóstico para a identificação da CEP. Os achados típicos são dilatações e estreitamentos multifocais intercalados da árvore biliar (árvore biliar em conta de rosário).17,20 Por muitos anos a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) era o exame de referência, porém os avanços recentes das técnicas de imagem colocaram a colangiorressonância como principal exame de partida para o diagnóstico dessa doença.6,17,18,20 Essa modalidade é segura, não invasiva, sem a necessidade de irradiação e tem sensibilidade e especificidade semelhante à CPRE.6,17,20

A realização de colonoscopia é recomendada, mesmo em pacientes assintomáticos, para o rastreio de DII ou câncer colorretal, em pacientes já diagnosticados.15 Devem ser realizados rastreios anuais para colangiocarcinoma com ultrassonografia ou colangiorressonância, associados à dosagem sérica do marcador tumoral CA-19.9.14

Quando há achados típicos nos exames de imagem, não é necessária a realização da biópsia hepática para confirmar o diagnóstico.14,17,20 Ela se demonstra útil quando há suspeita de CEP de pequenos ductos ou de colangite autoimune.14,17 Seus achados mais comuns são fibrose periductal com infiltração inflamatória, proliferação ductular, obliteração de ductos e ductopenia, sendo que o achado de "anéis em casca de cebola", correspondente à fibrose periductal, é raro em crianças.6,17,20

Tratamento

Até o momento, não existe tratamento capaz de modificar a história natural da CEP, com exceção do transplante hepático.6,14,16-18,20 Devido a isso, o tratamento dessa doença consiste em controlar os sintomas e identificar e tratar as possíveis complicações e doenças associadas.17

O prurido pode ser tratado inicialmente com ácido ursodesoxicólico (UDCA) ou colestiramina. Caso não haja melhora, pode ser acrescentada rifampicina e, se ainda persistirem os sintomas, naltrexona ou sertralina.14,18 Os pacientes devem ser triados para osteoporose e osteopenia, com reposição de cálcio e vitamina D, quando necessário.17,18 Em casos de colangites de repetição, devem ser pesquisadas estenoses dominantes e outras alterações em vias biliares passíveis de abordagem endoscópica, com dilatação e colocação de stent quando necessário.14,17,18

O UDCA é o fármaco mais estudado e utilizado até o momento na CEP. Tem como possíveis mecanismos de ação o aumento da hidrofilidade e da excreção dos ácidos biliares, além de efeitos imunomoduladores, com redução da produção de citocinas estimuladas por ácidos biliares.14,16 O uso do UDCA foi avaliado em doses baixas (10-15 mg/kg/dia), intermediárias (1723 mg/kg/dia) e altas (25-30 mg/kg/dia) em diversos estudos.14 Foi observado que doses baixas são capazes de melhorar os exames de bioquímica hepática, porém sem modificação na mortalidade ou curso da doença; doses intermediárias podem induzir resposta bioquímica e histológicas, porém sem impacto na mortalidade ou necessidade de transplante hepático; doses altas foram associadas a aumento da progressão da doenças e número de eventos adversos, como cirrose, varizes esofágicas, necessidade de transplante hepático, colangiocarcinoma e morte.14,16,18

Além das indicações habituais de transplante hepático (falência hepática progressiva, complicações da hipertensão porta, carcinoma hepatocelular), a CEP possui indicações específicas, como prurido intratável e colangite bacteriana de repetição.17,18

 

PROGNOSTICO

A CEP é uma doença progressiva sem terapêutica efetiva até o momento, sendo que cerca de 50% dos pacientes necessitarao de transplante hepático no período de 12 anos após o diagnóstico.16,17,19 A recorrência da doença, após o transplante hepático, é reportada na literatura em 25 a 50% dos casos.16,17,20

 

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