RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26. (Suppl.8)

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Artigo Original

Subnotificação e invisibilidade da violência contra a mulher

Unreported cases and invisibility of violence against women

Mirian Conceiçao Moreira Alcantara; Rosemeire Rodrigues de Souza; Leandro Genuir de Assis Caetano; Cibelle Ferreira Louzada; Ana Raquel Paolinelli Silveira; Jacqueline de Oliveira Lima; Marilene Altavina Gouveia; Heliana Conceiçao de Moura; Palmira de Fátima Bonolo; Elza Machado de Melo

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina - FM, Programa de Pós-Graduaçao em Promoçao de Saúde e Prevençao da Violência. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Palmira de Fátima Bonolo
E-mail: pfbonolo@gmail.com

Apoio financeiro: Brasil. Ministério da Saúde

Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: a violência contra mulheres configura situação pungente de ordem social no Brasil. A Portaria nº 104 de 25 de janeiro de 2011 tornou compulsória a notificação de violência, constituindo estratégia para reverter a subnotificação e ser instrumento de vigilância em saúde.
OBJETIVO: compreender a visão dos profissionais que trabalham com mulheres em situação de violência (MSV) participantes do curso em Atenção à Mulher em Situação de Violência do Projeto Para Elas - Por Elas, Por Eles, Por Nós, Universidade Federal de Minas Gerais.
MÉTODOS: entrevista realizada mediante questionários semiestruturados, validados previamente, respondidos online no período de abril de 2014 a setembro de 2016. Verificou-se a associação da capacitação com a notificação (p≤0,05).
RESULTADOS: a maioria dos profissionais era do sexo feminino (75,2%), na faixa etária de 20 a 39 anos (66,1%) e possuía pós-graduação (77,2%). Pouco mais da metade (56,1%) dos trabalhadores afirmou que o local onde trabalha atende MSV, sendo que 38,9% foram capacitados e 54,7% não notificam em sua prática laboral. Em torno de 41% afirmaram que têm dificuldades em preencher a ficha de notificação. Entretanto, 87,3% dos participantes diferenciam denúncia de notificação. A baixa capacitação esteve associada a baixa notificação (p<0,001).
CONCLUSÕES: neste estudo demonstrou-se que a invisibilidade da violência é perpetuada pela não notificação. O grande desafio encontra-se no reconhecimento da violência como um tema multidisciplinar. Destaca-se a importância de serviços com atenção integral para as MSVs e um sistema de vigilância intersetorial com informações para trazer visibilidade a essa grave situação no Brasil.

Palavras-chave: Violência Contra a Mulher; Vigilância em Saúde Pública; Ação Intersetorial; Integralidade em Saúde.

 

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher, além de se constituir em importante tema da saúde, torna-se um dos problemas mais pungentes de ordem social que se tem enfrentado também no Brasil.1 O enfrentamento da violência contra a mulher configura uma das diretrizes prioritárias de saúde, conforme publicado em 2013 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e na resolução da Assembléia Mundial da Saúde sobre o reforço do papel do sistema de saúde, especialmente contra mulheres e meninas.2

Em anos recentes, um conjunto de políticas tem sido implementado no país, como parte do esforço de conter as diversas formas de violência e lesões que, nas últimas décadas, colocaram esse grupo de problemas entre os que mais afligem a população brasileira.3 A notificação insere-se como uma das estratégias primordiais do Ministério da Saúde (MS) e, como instrumento de vigilância em saúde, amplia a visibilidade do fenômeno violência, assegurando o planejamento e a implementação de políticas públicas de vigilância e assistência à atenção integral às vítimas.4

A Portaria nº 104 de 25 de janeiro de 2011 prevê a obrigatoriedade da notificação de agravos e eventos em saúde pública, tornando compulsória a notificação de casos de violência5. A estratégia de tornar a notificação da violência uma ação compulsória é apresentada como uma tentativa de reverter o quadro de subnotificação descrito na literatura, que reforça a invisibilidade da violência, além do desacordo com a obrigação institucional e legal de notificação.5

Por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde, o MS implantou, em agosto de 2006, o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), com o objetivo de coletar dados e gerar informações sobre violências e acidentes para subsidiar políticas em saúde pública direcionadas a esses agravos, buscando preveni-los. Esse sistema utiliza a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou outras Violências.6

Objetivou-se neste estudo compreender a visão dos profissionais que trabalham com mulheres em situação de violência inscritos no programa de Educação a Distância (EAD) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a relação entre a sua prática laboral e sua formação, capacitação e percepção sobre a notificação da violência contra a mulher.

 

MÉTODOS

Trata-se de estudo descritivo-analítico com abordagem da visão dos profissionais que trabalham na área de saúde acerca das notificações de violência contra a mulher. A entrevista foi realizada por meio de questionários semiestruturados validados previamente, no período de abril de 2014 a setembro de 2016.

Os profissionais participantes responderam o questionário online ao se inscreverem no curso a distância de atualização em Atenção à Mulher em Situação de Violência do Projeto Para Elas - Por Elas, Por Eles, Por Nós. A solicitação de anuência à participação na pesquisa e autorização para o uso dos dados (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aos participantes - TCLE) foi possível por meio da assinatura eletrônica de cada um dos participantes7.

O Projeto Para Elas - Por Elas, Por Eles, Por Nós é de âmbito nacional, executado pelo Núcleo de Promoção de Saúde e Paz do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e constitui parte da Política Nacional de Atenção Integral da Saúde à Mulher em Situação de Violência do Ministério da Saúde.7,8

O questionário utilizado foi composto por questoes que abordaram a percepção do profissional sobre a notificação da violência contra a mulher. Foi incluído no estudo o universo de profissionais pertencentes à rede de atendimento à mulher em situação de violência do município de Belo Horizonte (n=230). Realizou-se análise descritiva com distribuição de frequências simples, médias e proporções. Verificou-se a associação da capacitação dos profissionais com a notificação no atendimento da mulher (valor de p≤0,05). Utilizou-se o programa SPSS (versão 16.0).

 

RESULTADOS

Na Tabela 1 observa-se que, entre os respondentes, predominou o sexo feminino (75,2%), sendo que a maioria estava na faixa etária de 20 a 39 anos (66,1%) e menos da metade se autodeclarou como de cor branca (49,1%). Quase a metade possuía relação conjugal estável (47,0%). A maioria dos participantes possuía pós-graduação (77,2%) e mais de três anos (52,6%) na função exercida no sistema de saúde. Entre os profissionais, 86,9% eram do setor saúde e atuavam desde a atenção primária até a atenção quaternária.

 

 

Em relação à temática do estudo, observa-se na Tabela 2 que 90,2% dos profissionais relataram que não tiveram capacitação de abordagem da violência ou a tiveram de forma insuficiente durante a graduação. Pouco mais da metade dos profissionais (56,1%) declarou trabalhar em locais que atendem mulheres em situação de violência ou já atenderam mulheres nessa situação (54,8%), sendo que 61,1% deles afirmaram não terem recebido algum tipo de capacitação para a realização desse atendimento. Elevado percentual de profissionais (87,3%) concordou plenamente que denúncia e notificação de violência são ações diferentes. Entretanto, destaca-se que 12,7% dos entrevistados pensam que os dois termos são intercambiáveis.

 

 

Apenas 38,9% dos profissionais confirmaram a disponibilidade das fichas de notificação nos locais em que trabalham e 37,7% não souberam se a notificação, de fato, é realizada em seus serviços. A dificuldade no preenchimento da ficha de notificação foi revelada por 40,9% dos profissionais. Tal dificuldade foi associada, sobretudo, à extensão da ficha (29,2%) e à falta de tempo para o seu preenchimento durante o atendimento (25,9%). Percentual de 18,3% dos participantes alegou medo das implicações com o Judiciário ao se fazer a notificação.

Os dados da pesquisa mostraram que a capacitação insuficiente foi citada por 61,8% dos profissionais quando questionados sobre quais as dificuldades no atendimento da mulher em situação de violência. Estrutura física inadequada e ausência de um centro de referência para o acompanhamento dessa mulher foram também problemas destacados pelos participantes (57 e 53,7%, respectivamente).

A maioria dos profissionais (54,7%) afirmou não realizar a notificação ao atender mulheres em situação de violência, sendo que na análise estatística o relato de falta de capacitação esteve associado à ausência da notificação no atendimento do profissional da mulher em situação de violência (p<0,001).

 

DISCUSSÃO

Embora esteja clara a obrigatoriedade da notificação dos casos de violência, a subnotificação nos casos ainda é um problema grave nos serviços de saúde do Brasil. Um dos desdobramentos diante dessa constatação foi a obrigatoriedade institucional e legal de notificação de casos de suspeita ou confirmação de violência a fim de reverter o quadro que reforça a invisibilidade da violência.4 Apurou-se, neste estudo, que a maioria dos profissionais de saúde reconhece a diferença entre denúncia e notificação. A notificação é uma comunicação obrigatória, formal e institucional acerca de alguma situação específica. Ela, em si, não instaura uma denúncia, entretanto, nada impede que, paralelamente à notificação, esta seja efetuada. Já denúncia é o nome técnico dado à peça processual que dá início à ação penal promovida pelo Ministério Público.9

Além disso, não raramente a notificação deixou de ser realizada, por desconhecimento da disponibilidade da ficha de notificação nos locais de trabalho ou por dificuldade de entendimento ou desconhecimento dos termos nela contidos ou ainda por falta de tempo para o preenchimento devido à sua extensão. Segundo Hamberger10, o tempo de trabalho permite que o profissional adquira mais conscientização sobre as suas responsabilidades e, conjuntamente, a sua capacitação favorece o aumento da realização de notificação.

É essencial e premente que todos os setores envolvidos, sejam eles governamentais ou sociais, estejam engajados na notificação, na prevenção e no tratamento da violência de maneira multidisciplinar. Isso é de fundamental importância tendo em vista a abrangência das áreas de formação envolvidas no atendimento ou notificação da mulher em situação de violência.

A conscientização da importância da notificação e a mudança de paradigmas devem abranger a educação permanente para diagnosticar, acompanhar e prevenir situações de violência. São necessárias equipes diversificadas de profissionais para detectar e notificar no cotidiano dos seus atendimentos, seja qual for a sua área de atuação ou função desenvolvida.

 

CONCLUSÕES

Apesar dos avanços no sentido de garantir a obrigatoriedade da notificação, este estudo foi corroborado pela literatura ao revelar que ainda é um fenômeno invisível na rotina da maioria dos profissionais, especialmente na saúde.11 A subnotificação relaciona-se, entre outros fatores, à falta de informações técnicas e científicas do assunto, à escassez de regulamentos que firmem os procedimentos técnicos, à ausência de mecanismos legais de proteção aos profissionais encarregados de notificar e à falha na identificação da violência nos serviços de saúde.12

A qualidade da informação é fundamental, sendo que as estatísticas revelam a magnitude da subnotificação da violência contra a mulher. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2014 houve 467.646 casos de violência registrados no Brasil, com estimativa de subnotificação de registros de 35%. Isso é preocupante e parece demonstrar a pouca efetividade das estratégias de sensibilização para a notificação.13

O grande desafio encontra-se no reconhecimento da violência como um tema multidisciplinar, cuja notificação assume papel primordial e numa estratégia eficiente de organização, possibilitando a construção de uma rede para o seu controle a partir do âmbito municipal ou estatual, em comunicação com outros órgaos.14

Neste estudo procurou-se demonstrar que a invisibilidade da violência é perpetuada pela não notificação a partir do atendimento. Destaca-se a importância de serviços com atenção integral para mulheres em situação de violência e um sistema de vigilância intersetorial com informações para trazer visibilidade a essa grave situação no Brasil.

 

REFERENCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Por uma cultura da paz, a promoção da saúde e a prevenção da violência. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.

2. Organização Mundial da Saúde. Mulheres e saúde: evidências de hoje, agenda de amanha. Geneva: OMS; 2009.

3. Ministério da Saúde (BR).Portaria nº 4.279,de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.

4. Ministério da Saúde (BR). Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.

5. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005). Brasília: Ministério da Saúde; 2011.

6. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação de Saúde.Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), 2008 e 2009. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.

7. Melo EM. O projeto para elas, por elas, por eles e por nós. Universidade Federal de Minas Gerais, 2012. Belo Horizonte. [citado em 2016 jan. 18]. Disponível em:http://www.medicina.ufmg.br/paraelas/

8. Caixeta DMB. Influência da capacitação no trabalho dos profissionais que atendem mulheres em situação de violência [dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2015.

9. Kind L, Orsini MLP, Nepomuceno V, Gonçalves L, Souza GA, Ferreira MFF. Subnotificação e (in) visibilidade da violência contra mulheres na atenção primária à saúde. Cad Saúde Publica. 2013;29(9):1805-15.

10. Hamberger LK. Preparing the next generation of physicians: medical school and residency-based intimate partner violence curriculum and evaluation.Trauma Violence Abuse. 2007;8(2):214-25.

11. Garbin CAS, Dias IA, Rovida TAS, Garbin AJI. Desafios do profissional de saúde na notificação da violência: obrigatoriedade, efetivação e encaminhamento. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(6):1879-90.

12. Veloso MMX, Magalhaes CMC, Dell'Aglio DD, Cabral IR, Gomes MM. Notificação da violência como estratégia de vigilância em saúde: perfil de uma metrópole do Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2013;18(5):1263-72.

13. Ministério da Saúde (BR). Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW). Quinquagésima-primeira sessão. Brasília: Ministério da Justiça e Cidadania; 2012.

14. Saliba O, Garbin CAS, Garbin AJI, Dossi AP. Responsabilidade do profissional de saúde sobre a notificação de casos de violência doméstica. Rev Saude Pública. 2007;41(3):472-7.