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CAPES/Qualis: B2
Anafilaxia e Anestesiologia - Uma abordagem prática
Anaphylaxis and anesthesiology - Practical approach
Rafael Penna Paula César1; Tiago Henrique Guimaraes Pereira2; Vinicius Caldeira Quintao3; Luis Gustavo Torres dos Santos1
1. Médico Anestesiologista da Santa Casa de Belo Horizonte
2. Médico Residente em Anestesiologia do 2º ano da Santa Casa de Belo Horizonte
3. Médico Anestesiologista Instrutor do CET - Santa Casa de Belo Horizonte
Resumo
Anafilaxia é uma reação de hipersensibilidade sistêmica ou generalizada, do tipo imediata, ameaçadora a vida, cujo mecanismo é imunológico mediado por IgE após sensibilização prévia do paciente acometido. As reações anafilactóides se referem àquelas não mediadas por IgE, porém este termo está em desuso já que não há diferença no tratamento. Na prática, anafilaxia é caracterizada por um colapso cardiopulmonar de início rápido e grande potencial de mortalidade após exposição a um antígeno. O reconhecimento precoce é fundamental já que a pronta administração de adrenalina está diretamente relacionada ao desfecho positivo desse quadro. Está revisão busca elucidar a anafilaxia e criar um fluxograma prático para o reconhecimento e tratamento precoce de anafilaxia.
INTRODUÇÃO
As reações de hipersensibilidade estao cada vez mais presentes em nossa população. Assim, saber lidar com suas implicações e principalmente seu tratamento é de extrema importância para qualquer médico assistente1. Os quadros de anafilaxia apesar de raros na prática clínica diária, com incidência oscilando entre 1 para cada 5000 a 10000 anestesias, guardam em si um aumento importante na morbimortalidade ao paciente acometido1, 2. Reconhecer os sinais e sintomas dessa síndrome interfere diretamente no prognostico do doente, entretanto essa tarefa se torna difícil no paciente anestesiado3,4. O anestesiologista tem papel fundamental nessa condição, pois lida diretamente com o paciente cirúrgico, que se expoe a uma quantidade importante de antígenos exógenos em curto espaço de tempo. Esta exposição não só propicia o surgimento de determinadas reações de hipersensibilidade, como também dificulta o diagnóstico do agente causal2, 3.
FISIOPATOLOGIA
Anafilaxia é caracterizada como uma reação de hipersensibilidade generalizada do tipo imediata (vide tabela 1) ameaçadora à vida, cujo mecanismo é imunológico, mediado por IgE, após sensibilização prévia2, 4, 5. Quaisquer outras reações que não sejam mediadas por IgE são caracterizadas como não imunológicas (ou não-IgE) denominadas de anafilactóides, termo esse em desuso na atualidade. Essa distinção exposta anteriormente é puramente teórica já que clinicamente essas reações são indistinguíveis, inclusive sem alterações no que norteia o tratamento2, 6.
A fisiopatologia de todas essas reações possuem em comum a liberação de mediadores inflamatórios com propriedades vasoativas, que atuam principalmente no endotélio vascular e árvore traqueobrônquica1,2,7,8. Reações imediatas (tipo 1) geralmente ocorrem entre 5 a 30 minutos da exposição de um antígeno em um paciente previamente sensibilizado com a ativação das imunoglobulinas IgE que promovem a degranulação principalmente de mastócitos e basófilos liberando histamina, prostaglandinas e citocinas 1,2,8,9. Tais substâncias atuam promovendo um aumento da permeabilidade vascular, vasodilatação e irritabilidade das vias aéreas o que pode resultar em um colapso cardiopulmonar1,2,8,10,11. Afecções cutâneas como urticárias, eritemas e angioedemas também possuem esse mesmo mecanismo fisiopatológico. Já as reações não-IgE deflagram seu quadro clínico a partir da degranulação direta dos mastócitos e basófilos ou via sistema do complemento2,7.
FATORES DE RISCO
Qualquer tipo de substância em contato com o paciente possui o potencial para desencadear processos alérgicos, todavia existem aquelas com maior predisposição1,2. No intraoperatório os fármacos bloqueadores neuromusculares (BNM), estatisticamente, lideram como os mais comuns, seguidos pelos antibióticos (especialmente os betalactâmicos) e a alergia ao látex1,2,12,13. Dentre os BNM, Rocurônio e a Succinilcolina são os mais implicados na gênese dessas reações sem consenso na literatura sobre qual desses dois seria o mais frequente 2, 12. A alergia ao látex encontra-se em ascensão na população atual e deve sempre entrar no diagnóstico diferencial de quaisquer casos de anafilaxia, principalmente naqueles pacientes pertencentes ao grupo de risco (profissionais da área da saúde, portadores de espinha bífida, pacientes submetidos à cateterização vesical de demora)13,14.
DIAGNOSTICO
O quadro clínico é bastante variado e o diagnóstico é por muitas vezes atrasado interferindo diretamente no prognóstico do paciente, principalmente quando se trata de paciente em anestesia geral 1,2,9. Reações de hipersensibilidade podem se restringir ao acometimento de mucosas e pele nos casos mais leves, todavia pode evoluir rapidamente para colapso cardiopulmonar e consequentemente parada cardiorrespiratória (PCR)8,9,10. Existem diversas classificações clínicas para o quadro de anafilaxia. Classificar a gravidade da reação é importante para nortear o tratamento e todo o arsenal terapêutico que deve ser utilizado 1,2,9. Apresentamos abaixo uma classificação simples e de fácil entendimento.
O diagnóstico é clínico e o plano terapêutico deve ser traçado a partir da análise da gravidade do mesmo. Entretanto, o paciente anestesiado apresenta certas particularidades que devem ser ressaltadas. Condições como hipotensão arterial e bradicardia, por exemplo, podem ocorrer devido aos fármacos corriqueiramente utilizados em anestesiologia1. Propofol, fentanil e atracúrio são bons exemplos de fármacos com essa capacidade. Além disso, esse último possui ainda a capacidade de liberação de histamina, que além de promover alterações cutâneas pode desencadear quadros de hipotensão arterial12. Por isso é importante a vigilância contínua do anestesiologista, de suspeitar (principalmente em caso de anestesia geral) de valores pressóricos inexplicavelmente baixos, além de sempre se atentar à pressão de pico de vias aéreas logo na indução, para servir como valor comparativo no decorrer do procedimento 1,2,11. Outro fato importante são as possíveis alterações mucocutâneas disseminadas no paciente. Estas muitas vezes passam despercebidas devido aos campos cirúrgicos sobre ele. Em algumas situações, as reações cutâneas são os primeiros ou únicos sinais de uma reação alérgica 2,5,11.
Apesar do diagnóstico ser eminentemente clínico, existem maneiras de comprovar laboratorialmente a existência de reação alérgica. A dosagem de triptase pode ser realizada, sendo necessárias duas dosagens, em intervalos de 24 horas, sendo a primeira amostra colhida invariavelmente em até 60 minutos do início da reação. Mesmo sendo válida sua utilização, tem pouca utilidade no quadro agudo e seus níveis baixos não descartam a ocorrência de uma reação alérgica. Outros testes como dosagem de IgE específicas e testes cutâneos possuem utilidade em um segundo momento, quando se procura a identificação do antígeno causal da reação, geralmente missão a cargo do médico alergologista 1,11,12.
MANUSEIO IMEDIATO
Identificada uma potencial reação alérgica, deve-se ter em mente que o tratamento não deve ser postergado de maneira alguma, principalmente nos casos graves nos quais o uso de epinefrina é essencial. O tratamento deve ser integral, multiprofissional, cabendo ao anestesiologista a tarefa de liderar as ações 1,2.
A equipe cirúrgica deve ser informada assim que o fato for suspeitado ou diagnosticado. O processo de identificação de potenciais fatores causais deve ser iniciado juntamente com as medidas de suporte e tratamento. Ofertar oxigênio a 100% deve ser uma prerrogativa a ser seguida em todos os pacientes, além da manutenção da perviedade das vias aéreas, podendo ser necessário a realização da intubação orotraqueal. Medicações, hemoderivados, soluções não salinas (colóides, gelatinas, etc.), devem ser descontinuados, pois podem ser os potenciais gatilhos da reação, mantendo o paciente apenas com solução salina fisiológica e halogenados para manutenção de anestesia geral 1,2,10,11. Nos casos de anafilaxia grau 1 e 2 (tabela 2) deve ser administrado bolus intravenoso de epinefrina de 5-10 mcg para adultos e 1-5 mcg/kg para crianças17 . Em vigência de um choque anafilático, rapidamente ocorrerá a deterioração da estabilidade hemodinâmica, portanto, expansão volêmica deve ser precoce e vigorosa, iniciando-se com 25-50 ml/kg e bolus adicional de 25-50 ml/kg se persistência de hipotensão 2,8,10. Não há consenso na literatura entre cristalóides ou coloides como solução ideal. Salvo as contraindicações de cada um, qualquer uma dessas é admissível como expansor volêmico nessa situação. Juntamente a expansão volêmica deve ser administrada epinefrina, fármaco de vital importância, que comprovadamente melhora prognóstico e altera desfechos. Inicialmente, doses em bolus de 1-3 mcg/kg podem ser utilizados, tanto na população adulta como pediátrica para manutenção da estabilidade hemodinâmica, podendo ser repetidos de 2 em 2 minutos 1,2,11. Em casos refratários aos bolus, pode-se iniciar em infusão contínua na dose inicial de 0.05 mcg/kg/min com ajuste da dose pela resposta do paciente. O objetivo inicial é manter uma pressão arterial sistólica acima de 90 mmHg. Pacientes que evoluem para PCR devem ser tratados conforme protocolos próprios de suporte avançado de vida 1,2,8,11.
A importância da epinefrina como droga principal nas situações de choque anafilático é elucidada ao se analisarem o mecanismo de ação do fármaco e o quadro clínico do paciente em questao. Suas ações sobre os receptores alfa 1 e beta 1 promovem o aumento da resistência vascular periférica que, aliado ao cronotropismo e inotropismo positivos, auxiliam na restauração da perfusão tissular. Além disso, possui ações sobre os receptores beta 2 que auxilia no tratamento do broncoespasmo, aprimorando a ventilação e a troca gasosa. Vale ressaltar que no tratamento do broncoespasmo há indicação formal do uso de broncodilatadores (nas doses usuais), mesmo que já se esteja utilizando a epinefrina 1,2,8,10,11.
Existem ainda algumas condições que particularmente adicionam maior gravidade aos pacientes acometidos com choque anafilático. Aqueles em uso prévio de inibidores da enzima de conversão de angiotensina, com anestesia espinhal ou em uso de betabloqueadores apresentam quadros de hipotensão mais intensos 1,5. Além disso, os usuários de betabloqueadores podem apresentar certa resistência ao uso da epinefrina devido a sua ocupação sobre os receptores adrenérgicos. Nessa situação pode-se iniciar o uso de glucagon nas doses de 1-2 mg EV em bolus, e se necessário o inicio de infusão contínua nas doses iniciais de 5-15 mcg/min com ajuste pela resposta5. Fármacos como vasopressina e noradrenalina podem ser utilizados nos casos refratários, sempre em associação com a epinefrina2.
MANUSEIO APOS A CRISE
Todos os esforços devem ser realizados com o intuito de promover a estabilidade hemodinâmica e a correta oxigenação do paciente. Deve-se providenciar o transporte, assim que possível, para a unidade de terapia intensiva (UTI), com estadia mínima de 24 horas, com intuito de observação de possíveis reações alérgicas tardias 1,11.
Apesar de pouca comprovação científica, outros fármacos frequentemente são utilizados no arsenal terapêutico dessa reação. Os corticosteroides são utilizados com o intuito teórico de evitar o segundo pico da reação alérgica que, quando ocorre, inicia-se de 12-24 horas do quadro inicial. A dose a ser administrada diverge na literatura atual, todavia, o preconizado pelos estudos mais recentes é uma dose de 10-20 mg/kg/dia de hidrocortisona, dividida em 4 doses diárias. Outra classe de fármacos também muito utilizada são os bloqueadores dos receptores de histamina, tanto de receptores do tipo 1, quanto do tipo 2. Também não há comprovação de sua eficácia e alguns estudos inferem que poderiam até piorar o quadro de hipotensão se administrados em bolus. As doses preconizadas são de 0.5-1 mg/kg (dose máxima de 50 mg) de difenidramina e 1 mg/kg (dose máxima de 50 mg) de ranitidina 1,2,11.
Nas situações onde o rocurônio é o principal suspeito de causar a reação anafilática alguns artigos expoem relatos de casos demonstrando eficácia na utilização de Sugamadex como "antídoto" para a mesma. O uso é considerado off label e a dose a ser utilizada também é desconhecida. Sugere-se a utilização de 16 mg/kg, com incremento de dose a depender da resposta do paciente6. Contudo, as divergências na literatura ainda existem, evidenciadas pela discrepância entre os resultados obtidos de testes em laboratório e casos clínicos. Há dúvida se o encapsulamento das moléculas do rocurônio pelo sugamadex impediria mais liberação de mediadores pelos mastócitos e basófilos ou a expressão de outros marcadores de hipersensibilidade (p.ex. CD63). Além disso, pode haver confusão entre qual foi o fator determinante da melhora dos sinais clínicos, se foram conseguidos pela instituição do tratamento preconizado ou pela administração do sugamadex16.
DISCUSSÃO
Todo paciente acometido por anafilaxia deve ser encaminhado ao médico alergologista para investigação dos prováveis fatores causais. Cabe ao anestesiologista a realização desse encaminhamento, junto a uma lista dos fármacos e substâncias administrados no perioperatório, provável fármaco suspeito e relato das condutas realizadas como tratamento e evolução do quadro. Futuras anestesias devem levar em consideração os resultados dos testes alérgicos e alternativas ao fármaco causal devem ser estabelecidas. Caso não exista alternativa segura para proceder com a anestesia, dessensibilização prévia deve ser realizada para procedimentos eletivos.
CONCLUSÃO
Reconhecer a ocorrência de uma reação anafilática em um paciente anestesiado é tarefa muitas vezes caracterizada como difícil e a sua suspeição sempre deve ser acompanhada de tratamento agressivo. Reposição volêmica vigorosa associada ao uso de epinefrina são os pilares do tratamento e essas medidas não devem ser postergadas. Apesar de raras, essas reações reservam um prognóstico com elevadas taxas de morbidade. Assim, médicos assistentes devem antecipar as condutas a serem instituídas no caso de anafilaxia. Ações a serem realizadas nesses casos, com o algoritmo de tratamento sempre em mente para ser colocado em prática.
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