RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 27. (Suppl.4) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20170042

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Atualização Terapêutica

Disritmias cardíacas em Anestesiologia

Cardiac dysrhythmias in Anesthesiology

Fabiano Drumond de Souza Pires1; Fabrício Drumond de Souza Pires2; Hector Yuri de Souza Ferreira3

1. Médico anestesiologista. Título de especialista em anestesiologia - TEA. Sociedade Brasileira de Anestesiologia - SBA. Hospital Dr. Gil Alves. Bocaiuva, MG - Brasil
2. Médico anestesiologista. Título de especialista em anestesiologia - TEA. Sociedade Brasileira de Anestesiologia - SBA. Santa Casa de Misericórdia de Montes Claros. Montes Claros, MG - Brasil
3. Médico anestesiologista. Título de especialista em anestesiologia - TEA. Sociedade Brasileira de Anestesiologia - SBA. Hospital Imaculada Conceiçao. Curvelo, MG - Brasil

Hospital Dr. Gil Alves. Bocaiuva, MG - Brasil.

Resumo

O diagnóstico e tratamento das disritmias cardíacas passaram por grande avanço nos últimos 50 anos, principalmente com o advento da monitorização eletrocardiográfica contínua. Drogas foram criadas, a cardioversão elétrica foi cada vez mais usada e os mecanismos eletrofisiológicos das arritmias foram mais bem compreendidos. Abriu-se um leque de possibilidades para o salvamento de vidas. O presente artigo aborda as principais disritmias que podem se anunciar para os colegas anestesiologistas nos mais variados procedimentos, a abordagem foi simples e direta, descreveu-se o diagnóstico e tratamento.

Palavras-chave: anestesia, arritimias

 

INTRODUÇÃO

A monitorização eletrocardiográfica faz parte da monitorização básica definida pela resolução do CFM nº 1802 e deve estar presente em todas as cirurgias, simples ou complexas. O reconhecimento de padroes elétricos normais e anormais deve, portanto, ser competência do anestesiologista. Após o reconhecimento deflagra-se outro potencial da classe, abordar as possíveis alterações do ritmo. O presente artigo se propoe a discutir o diagnóstico e o tratamento das principais disritmias no paciente adulto do cotidiano do anestesiologista.

O efeito da disritmia sobre o desempenho hemodinâmico é avaliado inicialmente pela pressão sanguínea arterial1, nos pacientes sob anestesia geral não teremos parâmetros clínicos neurológicos para avaliar. O tratamento deve ser instituído prontamente se a disritmia causar distúrbio hemodinâmico ou se for capaz de progredir para disritmias mais graves com deterioração hemodinâmica posterior.1

As causas habituais de disritmia devem sempre ser lembradas. A hipóxia tem influência arritmogênica potente sendo uma causa importante de diminuição da frequência cardíaca. Hipercapnia gera acidose e aumento da atividade do sistema nervoso simpático. A hipocapnia resulta em alcalose e hipocalemia. A baixa temperatura pode induzir disritmia, a hipotermia leva à bradicardia sinusal, fibrilação atrial ou flutter atrial com aparecimento de disritmias ventriculares abaixo de 30º C.1

Desequilibrio autonômico, como a estimulação simpática ocorre com a anestesia superficial, hipoglicemia, intubação orotraqueal. Por outro lado a estimulação parassimpática, usualmente de natureza reflexa, uma causa comum de bradicardia, pode resultar de tração de vísceras, tração muscular extraocular, massagem do seio carotídeo ou laringoscopia este ultimo principalmente em crianças. 1

É importante lembrar que muitas disritmias são transitórias, não causam prejuízo hemodinâmico e resolvem-se com o passar do tempo. Disritmias preexistentes podem desaparecer com anestesia geral, embora o reaparecimento seja comum.

 

BRADICARDIA

Definida como frequência cardíaca abaixo de 60 batimentos por minuto(BPM), a bradicardia pode ou não gerar sintomas, serao clinicamente significativas aquelas que cursarem com frequência cardíaca abaixo de 40 BPM ou pausas maiores do que 3 segundos em vigília. Pausas e bradicardia durante o sono podem ser causadas por variação fisiológica do tônus parassimpático, por mecanismos que ocorrem nos portadores de apnéia obstrutiva do sono como hipóxia ou alteração pressórica na caixa torácica. 2

Os ritmos eletrocardiográficos de interesse na bradicardia são a bradicardia sinusal e os bloqueios atrioventriculares (AV) de primeiro, segundo e terceiro grau. No bloqueio de primeiro grau a onda "P" e o complexo QRS são normais, no entanto o intervalo "P-R" é alargado, maior do que 20 milissegundos. O bloqueio AV de segundo grau é caracterizado por algumas ondas "P" que não conduzem a um complexo "QRS", ou seja ocorre uma contração atrial sem uma contração ventricular efetiva. Esse bloqueio é subdividido em dois tipos, o tipo um apresenta um alargamento progressivo do intervalo P-R até culminar um uma falha de condução atrioventricular com posterior recuperação do ritmo. No tipo dois ocorre uma falha repentina na condução AV, onda "P" sem complexo "QRS" correspondente. No bloqueio de terceiro grau ocorre dissociação atrioventricular, a frequência ventricular usualmente fica entre 30-40 BPM. (Figura 1)

 


Figura 1: De cima para baixo os padroes eletrocardiográficos, bradicardia sinusal, bloqueio AV de 1º grau, bloqueio AV de 2º grau tipo 1, Bloqueio AV de 2º grau tipo 2 e bloqueio AV de 3º grau.

 

A bradicardia terá indicação de intervenção apenas se houver sinais ou sintomas claramente associados ao ritmo cardíaco lento. São sintomas: desconforto ou dor torácia, falta de ar, nível de consciência reduzido, fraqueza, fadiga, tontura, síncope ou pré-síncope. São sinais: queda na pressão arterial, congestao pulmonar, edema pulmonar, insuficiência cardíaca congestiva, complexos ventriculares prematuros. Vale lembrar que os sintomas estao mascarados durante a anestesia geral, portanto o principal ponto de decisão será a determinação da perfusão adequada. Se o paciente tiver perfusão adequada, observe e monitore. Caso o paciente não tenha perfusão adequada administre atropina intravenosa bolus de 0,5 mg repetido a cada 3 a 5 minutos com dose máxima de 3 mg. Caso a atropina seja ineficaz a estimulação transcutânea é indicada ou considere a infusão de dopamina 2 a 20 mcg/Kg por minuto ou epinefrina 2 a 10mcg por minuto. Considerar estimulação transvenosa. (Algoritmo 1.) 3

 


Algoritmo 1: bradicardia

 

TAQUICARDIA SINUSAL

A taquicardia sinusal definida como frequência cardíaca superior a 100 bpm no adulto gerada por descarga no nódulo, normalmente não excede 220 bpm, apresenta inicio e término graduais. É causada por influencias externas ao coração como febre, anemia, hipotensão, perda de sangue, exercício ou estimulação simpática. Tais condições são sistêmicas, a meta é identificar e corrigir a causa sistêmica de fundo. Os Betabloqueadores poderao causar deterioração clínica se o débito cardíaco cair quando uma taquicardia compensatória for bloqueada.3

 

TAQUICARDIA SUPRAVENTRICULAR PAROXISTICA

São taquicardias de origem não Ventricular que sempre começam e terminam subitamente, excluindo as taquicardia de origem Atrial.

Mais de uma entidade de arritmias está incluída nesse grupo. Uma delas é responsável por 2/3 dos casos: taquicardia por reentrada nodal.

 

TAQUICARDIA SUPRAVENTRICULAR PAROXISTICA POR REENTRADA NODAL

Pode acometer qualquer idade, mas concentra-se mais em mulheres jovens, na eletrocardiografia identificamos frequência cardíaca entre 120 e 220 Batimentos por minuto com início e término súbitos e geralmente após uma extra-sístole atrial. O complexo QRS é estreito na maioria dos casos e o intervalo R-R regular. A maioria dos pacientes são previamente hígidos. Durante a crise o relato é de palpitações, dispneias, tonteira ou até síncopes.

A estabilidade hemodinâmica irá definir a terapêutica, paciente instável têm indicação de intervenção imediata com cardioversão elétrica sincronizada, a carga inicial recomendada irá depender da morfologia do complexo QRS e deverá ser aumentada gradativamente caso o ritmo não seja revertido. QRS estreito e regular a carga inicial será de 50-100 J(monofásico ou bifásico). QRS estreito e irregular uma provável fibrilação atrial será abordado a seguir. No paciente estável hemodinamicamente as manobras vagais como massagem carotídea e valsalva são a primeira escolha e terao eficácia em aproximadamente 25% dos casos. Caso as manobras vagais sejam ineficazes a cardioversão química será a próxima escolha, a adenosina será a primeira droga na dose de 6 mg via venosa podendo ser repetida mais duas vezes na dose de 12 mg após 2 minutos. O verapamil 2,5 a 5 mg e o metoprolol 5mg EV a cada 5 minutos com máximo de 15 mg. Metoprolol e adenosina devem ser evitados em pacientes asmáticos. Na teraía crônica profilática o ritmo pode ser controlado com verapamil, diltiazem ou beta-bloqueador, mas o tratamento definitivo será com a ablação por radiofrequência da via de reentrada. 4

 

TAQUICARDIA SUPRAVENTRICULAR PAROXISTICA POR REENTRADA EM VIA ACESSORIA

Também conhecida por taquicardia atrioventricular recíproca. Corresponde a 1/3 das TPSV's. Existem duas formas, a forma ortodrômica que corresponde a 80 a 90 % dos casos com QRS estreito e a forma antidrômica 10 a 20 % dos casos que apresenta complexo QRS alargado um padrao eletrocardiográfico idêntico a uma taquicardia ventricular monomórfica sustentada. Ambas as formas apresentam quadro clínico idêntico à taquicardia por reentrada nodal, frequência cardíaca variando de 150 a 250 bpm.5 O tratamento seguirá o mesmo padrao, cardioversão elétrica para os pacientes instáveis, na forma antidrômica as drogas de escolha para cardioversão química serao a procainamida , amiodarona e sotalol( algoritmo 2).

 


Algoritmo 2 : Taquicardia com pulso no adulto

 

FIBRILAÇÃO ATRIAL

Uma arritmia cada vez mais comum nos pacientes cirúrgicos devido ao envelhecimento populacional e a modernização das técnicas anestésico-cirúrgicas, permitindo operações minimamente invasivas em pacientes cada vez mais graves. Estima-se a prevalência em torno de 2 a 5% da população acima de 75 anos. O desenvolvimento desse ritmo engloba morbidade significativa aumentando risco de insuficiência cardíaca, AVE isquêmico e hospitalização prolongada.6

A definição eletrocardiográfica consiste na ausência de ondas "p'' associado a um RR irregular. Em geral os pacientes com diagnóstico de FA não valvular prévio a cirurgia são anticoagulados de acordo com o escore CHA2D'S2-VASc*. O escore varia de 0 a 6 e quanto maior o escore, maior a chance de embolização sistêmica. Pacientes com escore maior ou igual a 2 se beneficiam da anticoagulação.7

Na prática anestesiológica pode-se vivenciar duas situações distintas. A primeira, em que o paciente desenvolve esse ritmo pela primeira vez no intra-operatório. Na segunda, o paciente já possui esse ritmo na avaliação pré-anestésica e pode desenvolver uma resposta ventricular alta, comprometendo a hemodinâmica. Os pacientes sob bloqueio de neuro-eixo podem queixar de tonteira, angina e dispneia. Já os sob anestesia geral possuem uma clínica menos exuberante e evidenciarao sinais de choque como diminuição da pressão arterial, taquicardia associados ao desenvolvimento do ritmo e/ou aumento da resposta ventricular.8

Como em todo paciente com suspeita de arritmia, deve ser mantido perviedade de via aérea com assistência ventilatória se necessário. Ofertar oxigênio se hipoxemia se desenvolver. A caracterização dos sintomas, se possível, indicará a conduta imediata a ser realizada. Sinais e sintomas que sugerem uma arritmia instável são: hipotensão, alteração aguda do estado mental, sinais de choque, desconforto torácico isquêmico e insuficiência cardíaca aguda. Esses pacientes com critérios de instabilidade podem rapidamente deteriorar para ritmos de parada cardiorrespiratória (PCR), portanto, devem ser imediatamente cardiovertidos. 6,8

A cardioversão idealmente ocorrerá sob sedação, pois o choque representa um estímulo álgico significativo. A sincronização do desfibrilador evita que o choque seja administrado durante a repolarização cardíaca (onda T), um período de vulnerabilidade na qual um choque pode precipitar uma fibrilação ventricular (FV). A cardioversão monofásica é administrado um choque sincronizado de 200J, já na bifásica é administrado um choque inicial de 120 a 200J. A refratariedade ao choque implica intensificação da segunda onda de choque.8

Os pacientes que já possuem uma FA permanente e durante o intra-operatório desenvolvem uma alta resposta ventricular (FC > 100 bpm) podem se beneficiar do controle da FC por meio de fármacos que bloqueiam o nó átrio-ventricular. Não há diretrizes claras sobre qual agente farmacológico é o mais indicado, mas as opções principais são os beta-boqueadores, bloqueadores do canal de cálcio. Os digitais e amiodarona fazem parte da terapêutica de segunda linha e têm maior indicação na associação com disfunção ventricular.6

 

 

Cuidado especial deve ser julgado nesse momento pois o paciente pode apresentar gatilhos fisiopatológicos que aumentaram a resposta ventricular como dor, anestesia superficial, hipovolemia, evolução da sepse e distúrbios hidro-eletrolíticos. Apesar do controle de FC estar indicado, a prioridade é o tratamento da etiologia de base.

* Escore CHA2D'S2-VASc: Insuficiência cardíaca congestiva, hipertensão, idade > ou = 75 anos - 2 pontos, diabetes mellitus, AVE isquêmico prévio - 2 pontos, doença vascular, idade entre 65 e 74 anos e sexo feminino - 1 ponto.

 

CONCLUSÃO

Desde a invenção do eletrocardiógrafo em 1902, pelo fisiologista holandês Willem Einthoven os ritmos elétricos do coração puderam ser estudados as disritmias ganharam conhecimento mais amplo e tiveram grande aceitação entre os médicos.9 Na anestesiologia a monitorização cardíaca é obrigatória e juntamente com a avaliação clínica do paciente determinarao o tratamento das disritmias. Proporcionando ao profissional segurança e tranquilidade na sala cirúrgica.

 

REFERENCIAS

1. Cangiani LM, Slullitel A, Potério GMB. Tratado de Anestesiologia SAESP. 8ª Ed. São Paulo: Atheneu. 2 vols. 2017.

2. Luiz F D C. Arritmias cardíacas: Rotinas do centro de arritmia do hospital Israelita Albert Einstein. Barueri: Manole, 2015.

3. Link MS, Berkow LC, Kudenchuk PJ. Part 7: Adult Advanced Cardiovascular Life Support: 2015 American Heart Association Guidelines Update for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care. Circulation. 2015; 132 (18 Suppl 2):S444-64. doi: 10.1161/ CIR.0000000000000261

4. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Protocolos de Intervenção para o SAMU 192 - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Brasília: Ministério da Saúde, 2a edição, 2016.

5. Zipes DP, Libby P, Bonow RO, Braunwald. E. (eds). Braunwald's heart disease. 8ª Ed. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2008.

6. Fuster V, Rydén LE, Asinger RW. ACC/AHA/ESC 2014 Guidelines for the Management of Patients With Atrial Fibrillation. J Am Coll Cardiol. 2014; 64 (21):2246-80;

7. Gialdini G, Nearing K, Bhave PD. Perioperative atrial fibrillation and the long-term risk of ischemic stroke. JAMA. 2014; 312:616-22;

8. Soar J, Callaway CW, Aibiki M. Part 4: Advanced life support: 2015 International consensus on cardiopulmonary resuscitation and emergency cardiovascular care science with treatment recommendations. Resuscitation 2015;95:71-122;

9. Giffoni RT, Torres RM. Breve história da eletrocardiografia. Rev. Med. Minas Gerais 2010; 20(2): 263-70.