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CAPES/Qualis: B2
Pé diabético: complicação evitável - Relato de Caso
Diabetic foot: avoidable complication - Case Report
Maria Julia Spini Logato1; Bernardo Almeida Campos2; Tulio Pinho Navarro2
1. Acadêmica de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Tulio Pinho Navarro
E-mail: tulio.navarro@gmail.com
Recebido em: 08/12/2016.
Aprovado em: 30/03/2017.
Instituiçao: Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil.
Resumo
Este relato descreve a evolução de lesão podólica associada ao diabetes mellitus em que a amputação foi a medida tertapêutica necessária. Alerta para a gravidade da evolução do pé diabético, complicação potencialmente prevenível mas muito prevalente no Brasil, com repercussões pessoais e sociais graves, com acometimento de parcela importante de jovens. A importância de sua abordagem requer organização da equipe multiprofissional de saúde e intervenção ativa do médico da Unidade Básica de Saúde não só para o tratamento adequado como para sua prevenção e profilaxia, propiciando ao diabético melhor qualidade de vida.
Palavras-chave: diabetes mellitus, pé diabético, seqüelas do diabetes mellitus.
INTRODUÇÃO
Estima-se que 6,2% da população brasileira1 seja acometida pelo diabetes mellitus (DM), o que a torna uma das doenças crônicas mais prevalentes no Brasil.
O pé diabético é das complicações mais comuns do DM e a principal causa de amputações não traumáticas de membros inferiores, com frequência de duas amputações a cada minuto em todo o mundo.1 A amputação do membro acometido ocasiona sequelas pessoais funcionais e psicológicas graves, além de impacto econômico negativo para a sociedade. Além de elevar a mortalidade, mesmo após a amputação, os pacientes com pé diabético continuam demandando cuidados permanentes e frequentemente são necessárias reintervenções como desbridamentos e novas amputações.
RELATO DO CASO
Paciente feminino, 59 anos de idade, tabagista (46 anos-maço), portador de doença cardiovascular hipertensiva sistêmica e DM tipo II complicada com isquemia crônica, em especial, no pé esquerdo. Em uso de metformina, sinvastatina, anlodipino, losartana, hidralazina e hidroclorotiazida em controle ambulatorial irregular.
Nos dois últimos anos foi submetida a angioplastias transluminais percutâneas com balao realizadas no membro inferior esquerdo, mas evoluiu com necessidade de amputação, inicialmente do hálux e posteriormente ao nível do metatarso. Há 5 meses realizou nova angioplastia e desbridamento do coto de amputação.
Foi admitida em Unidade de Pronto-Atendimento em decorrência de dor no coto de amputação; o que determinou, há quatro meses, por autoprescrição, de uso de anti-inflamatório não esteroidal.
Apresentava-se hipocorada, hidratada, consciente, orientada, eupneica, com auscultas respiratória e cardíaca normais, frequência cardíaca de 115 bpm, pressão arterial sistêmica de 140/70 mmHg e palpação abdominal sem alterações. O membro inferior direito apresentava dermatite ocre, sem feridas ou ulcerações. O coto de amputação transmetatársica à esquerda apresentava tecido de granulação, fibrina e secreção purulenta, além de algumas áreas de necrose na periferia, sem hiperemia ascendente (Figura 1). Os pulsos tibiais não foram palpados bilateralmente. As medidas dos índices tornozelo-braquiais à direita e à esquerda foram, respectivamente, 0,93 e 0,86. A classificação Wound Ischemia Foot Infection (WIFi),2-6 estimou-se risco moderado de amputação e benefício muito baixo de eventual revascularização.
Os exames laboratoriais revelaram anemia, leucocitose com desvio à esquerda e aumento da proteína C reativa. Foram identificados, a partir da secreção coletada da ferida do coto amputado, bastonetes Gram positivos e negativos.
Foi iniciado tratamento com cefepime e metronidazol. Após o isolamento de Staphyloccocus aureus e Pseudomonas aeruginosa sensíveis ao ciprofloxacino na cultura, a antibioticoterapia foi modificada para uso de apenas ciprofloxacino.
O duplex scan excluiu trombose venosa profunda e evidenciou oclusão da artéria tibial anterior.
No 18º dia de internação, após controle da infecção local, realizou-se desbridamento do coto de amputação, sem intercorrências. Houve boa evolução e a paciente recebeu alta no segundo dia de pós-operatório com a ferida em bom aspecto, boa granulação e cicatrização, com orientação de retorno para acompanhamento ambulatorial.
DISCUSSÃO
O pé diabético é caracterizado pela presença de ulcerações, infecção, necrose e deformidades no membro acometido, causados pela obstrução arterial ou neuropatia decorrentes do DM. Estima-se que ocorra em 4 a 10% dos diabéticos, em média após 10 anos de sua evolução.8 São fatores de risco para complicações relacionadas ao pé diabético, a presença de traumatismos podálicos, tabagismo, insuficiência venosa em membros inferiores, baixa condição socioeconômica, dificuldade de acesso ao sistema de saúde, nefropatia e retinopatia.
Além do controle adequado do DM, o tratamento cirúrgico específico do pé diabético depende do grau de acometimento podálico, e pode incluir curativos, desbridamentos, procedimentos de revascularização (endovasculares ou por cirurgia aberta) e amputações.
A Sociedade de Cirurgia Vascular dos Estados Unidos criou, em 2013, um sistema de classificação (Wound Ischemia Foot Infection - WIfI) para avaliar o risco de amputação diante de isquemia de membros inferiores e o benefício da revascularização. Este sistema é baseado na presença e gravidade de três fatores de risco independentes: extensão da ferida, grau de isquemia e gravidade da infecção do pé. Todos os três fatores são pontuados individualmente em escala de 0 a 3. As pontuações são combinadas em uma tabela para determinar a gravidade da doença e predizer o risco de amputação em um ano e o provável benefício de revascularização do membro.4-6
A maioria das amputações em pacientes com DM poderia ser evitada com o seu controle adequado e de outros fatores de risco concomitantes. Além disso, muitas vezes a amputação do membro não significa resolução ou cura, e outros procedimentos e reintervenções poderao ser necessários no futuro, com morbidez e mortalidade significativas. O risco de amputações adicionais em pacientes com pé diabético chega a 50% em cinco anos e a taxa de mortalidade é de cerca de 70%.3
A melhor maneira de evitar amputações em pacientes com DM é sua inclusão em programas de prevenção. Os cuidados preventivos podem diminuir a taxa de amputações em 49 a 85% dos casos.5 Estes cuidados incluem o controle glicêmico, orientações sobre a importância dos cuidados com os pés e comparecimento às consultas de rotina. A assistência ao paciente com DM deve ser multiprofissional e sempre estar atenta à história e ao exame clínico completos, incluindo a pesquisa de sinais e sintomas nos membros inferiores e nos pés. Deve-se estar sempre vigilante às calosidades e deformidades dos pés, uma vez que podem evoluir para feridas e posterior infecção. Os cuidados nesta fase podem evitar também a evolução para a amputação.5,6,8
CONCLUSÃO
O pé diabético que evolui com feridas e amputação é complicação potencialmente prevenível do DM, mas infelizmente ainda é muito prevalente no Brasil. Promove sequelas pessoais físicas e emocionais graves, onera o sistema de saúde e previdenciário, e retira do mercado produtivo parcela importante de jovens aptos para o trabalho.
Urge que se tenha visão médico-social mais ampla sobre o cuidado com o pé diabético. As medidas para que seja minimizado seu impacto individual e social incluem: educação geral e para a saúde, acesso aos serviços de saúde e às medidas necessárias ao bom controle do DM (fitas de glicemia, glicosímetros, exames complementares e medicamentos), assistência e acompanhamento do paciente por equipe multiprofissional. Estas medidas são simples, realizáveis em Unidades Básicas de Saúde, de baixo custo, eficazes, e capazes de reduzir a necessidade de intervenções mórbidas, acarretando redução dos custos do tratamento de complicações associadas ao DM, e capazes de promover melhor qualidade de vida.
REFERENCIAS
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