RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 27 e1879 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20170075

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Artigo Original

Raciocínio clínico*

Clinical reasoning

Celmo Celeno Porto

Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Goiânia, GO – Brasil

Endereço para correspondência

Celmo Celeno Porto
E-mail: celeno@cardiol.br

Recebido em: 10/12/2015.
Aprovado em: 30/01/2015.

Instituiçao: Universidade Federal de Goiás – UFG. Goiânia, GO - Brasil.

Resumo

O bom raciocínio clínico possibilita identificar a doença e conhecer o paciente, propor a melhor alternativa terapêutica e estabelecer com alguma segurança a evolução e o prognóstico da doença. Constitui-se em um processo mental contínuo, flexível, dinâmico, até certo ponto semelhante à busca das peças adequadas para resolver um quebra-cabeça. Baseia-se em quatro etapas em que se estabelece: a correta coleta de dados em que se assentam as bases do raciocínio diagnóstico; a aquisição de conhecimentos que possam ser correlacionados com os sintomas e os sinais encontrados no exame clínico; o estabelecimento do valor de cada elemento semiótico e o estabelecimento de hipótese(s) diagnóstica(s), que poderao ser confirmadas ou não pelos exames complementares, exames que poderao fornecer novas pistas para a identificação, a mais completa possível, da doença; até a comprovação diagnóstica, seja com base nos dados clínicos ou por eles direcionados para a escolha de exames que a(s) confirme(m) ou exclua(m). Com esses dados, é possível decidir por uma proposta terapêutica e avaliação prognóstica, completando o processo que teve início na queixa do paciente.

Palavras-chave: Medicina; Estudantes de Medicina; Relações Médico-Paciente; Educação Médica; Humanismo.

 

Ao longo dos anos, cheguei à conclusão de que está errada a maneira como ensinamos aos estudantes o raciocínio diagnóstico, melhor dizendo, o raciocínio clínico, porque fazem parte dele não apenas a decisão diagnóstica, mas, também, a proposta terapêutica e a avaliação prognóstica.

Isso porque, no início da aprendizagem clínica, o estudante costuma ficar limitado à "técnica" da coleta dos dados clínicos do paciente, sem preocupação diagnóstica e terapêutica. O paciente é examinado de modo estereotipado, com o objetivo de preencher um prontuário, quase sempre seguindo rigorosamente um roteiro. Até certo ponto, isso é justificável para facilitar o ensino, mas não corresponde ao mundo real da prática médica.

Só após o preenchimento do prontuário o estudante se dedica ao raciocínio diagnóstico. Relaciona "todos" os dados anormais, seja da história ou do exame físico, e, integrando os achados, à luz de seus conhecimentos de anatomia, fisiologia, e fisiopatologia, aventura-se a formular hipóteses diagnósticas sob a forma de síndromes ou de entidades clínicas.

O médico desempenha esta tarefa de um modo muito mais dinâmico, sem segmentar seu trabalho em etapas tao estereotipadas. A partir da queixa principal, ou, antes mesmo, tao logo lança um olhar ao paciente, o médico inicia o raciocínio clínico, procurando compreender o problema e formulando hipótese(s). A medida que acumula informações, vai integrando e correlacionando os dados com os conhecimentos armazenados em sua memória. Tal processo mental gera a necessidade de novos dados que vao reforçar ou enfraquecer a hipótese inicial.

Por exemplo, quando o paciente se apresenta ao médico com edema generalizado, ocorre de imediato a possibilidade de um distúrbio cardíaco, hepático ou renal. A medida que vai obtendo novos dados, o raciocínio diagnóstico vai avançando. Assim, se o paciente relata dispneia e palpitações, a hipótese de doença cardíaca passa a ocupar o primeiro lugar. Se o paciente informa ser alcoolista, a possibilidade de distúrbio hepático cria corpo na mente do médico. É um processo mental contínuo, flexível, dinâmico, até certo ponto semelhante à busca das peças adequadas para resolver um quebra-cabeça.

De maneira esquemática, o aprendizado do raciocínio diagnóstico pode ser dividido em quatro etapas. Na primeira, quando o estudante está fazendo sua iniciação clínica, ele é obrigado – e isto é inevitável – a fixar sua atenção na "técnica da entrevista". Isso porque é na correta coleta de dados que se assentam as bases do raciocínio diagnóstico. Chega a lhe causar certa frustração ao não conseguir transformar os dados que obtém no exame do paciente em hipóteses diagnósticas. Contudo, esta etapa logo é superada.

A segunda etapa no desenvolvimento do raciocínio clínico depende de aquisição de conhecimentos anatomopatológicos e fisiopatológicos, ou seja, é necessário armazenar na mente certo número de informações que possam ser correlacionadas com os sintomas e os sinais encontrados no exame clínico. Voltando à comparação, seria como o processo mental de se armar um quebra-cabeça, sabendo-se de antemão qual figura deve ser formada. Um bom raciocínio consiste exatamente em colocar cada peça no local correto. Se as peças entram no lugar certo a figura vai surgindo, ou seja, a hipótese diagnóstica vai se tomando forma.

Na terceira etapa, só alcançável ao longo dos anos, o raciocínio diagnóstico passa a caminhar lado a lado com a obtenção dos dados, tal como faz um médico experiente. A cada elemento obtido no exame de um paciente, hipóteses diagnósticas vao se fortalecendo ou enfraquecendo, à medida que novos achados semióticos vao surgindo. Em determinados casos, nem sempre se consegue chegar a uma hipótese diagnóstica consistente, mas é sempre possível levantar hipóteses prováveis que poderao depender inclusive de dados fornecidos por exames complementares para se fortalecerem.

Chega-se, entao, ao momento de escolher o(s) exame(s) complementar(es) que comprova(m) o diagnóstico, praticamente indispensável(eis) na medicina moderna. Os resultados desses exames podem fornecer novas pistas para a identificação, a mais completa possível, da doença.

A quarta e última etapa é a comprovação diagnóstica que, em alguns casos, pode ser feita apenas com dados clínicos, mas, com frequência, vai depender de exames laboratoriais, de imagens, cito ou histopatológicos.

Com esses dados em mãos e conhecendo-se as características pessoais do paciente, é possível decidir por uma proposta terapêutica e uma avaliação prognóstica, fechando-se o processo que teve início na queixa do paciente.

Em resumo, um bom raciocínio clínico possibilita identificar a doença e conhecer o paciente. Aí, entao, torna-se possível fazer um diagnóstico correto, propor a melhor alternativa terapêutica e estabelecer com alguma segurança a evolução e o prognóstico da doença.

 

*Texto extraído da obra: Porto CC. Carta aos estudantes de Medicina. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2014. Autorizado pela Editora Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2015.