RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 27 e-1909

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Artigo Original

Técnicas estatísticas servem para analisar sinais e sintomas?*

Statistical techniques serve to analyze signs and symptoms

Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduaçao em Ciências da Saúde. Goiânia, GO - Brasil

Endereço para correspondência

Celmo Celeno Porto
E-mail: celeno@cardiol.br

Recebido em: 01/08/2017
Aprovado em: 20/08/2017

Instituiçao: Universidade Federal de Goiás - UFG Goiânia, GO - Brasil

Resumo

A aplicação de técnicas estatísticas aos dados clínicos requer, antes de tudo, a consideração que a Medicina não é ciência exata, nem o paciente uma máquina com peça avariada. A objetividade é indispensável na tomada das decisões clínico-terapêuticas, mas é preciso sempre considerar que "não existe doença, mas doente", e o paciente está inserido em seu contexto pessoal, familiar, social, enfrentando desafios pessoais, em busca de seu bem-estar, que é definido, muitas vezes, por ele mesmo. Este é o maior desafio da medicina de excelência: procurar ser o mais exato possível no meio de tantas incertezas.

Palavras-chave: Medicina; Estudantes de Medicina; Relações Médico-Paciente; Educação Médica; Humanismo.

 

Como subproduto do movimento que deu origem à medicina baseada em evidência (MBE), surgiram propostas para se aplicar técnicas estatísticas para avaliação dos sinais e sintomas relatados pelos pacientes; entre estas, destaca-se o manual Evidence-Based Physical Diagnosis, de Steven McGee,1 cuja primeira edição foi publicada em 2000 e a segunda em 2007.

O valor das técnicas estatísticas, essência da MBE, é inquestionável na avaliação da eficácia de medicamentos e outros modos de tratamento, bem como na definição do valor diagnóstico de novos equipamentos e testes laboratoriais.

A proposta básica de McGee foi analisar a sensibilidade e a especificidade de dados obtidos no exame físico, assim como o poder discriminatório dos sinais e sintomas para aventar hipóteses diagnósticas, mas também para avaliar outros parâmetros, tais como risco de viver e tempo de internação.

Contudo, as técnicas estatísticas disponíveis não são inteiramente adequadas para isso, em virtude da variabilidade das manifestações clínicas e do grande número de combinações possíveis. O raciocínio diagnóstico exige que a interpretação do significado dos sinais e sintomas seja feita no contexto de cada paciente. Apenas em situações especiais é possível interpretar isoladamente um determinado sinal ou sintoma: são os chamados sinais ou sintomas patognomônicos. Nesses casos pouco ou nada acrescentam as técnicas estatísticas no raciocínio diagnóstico.

O mesmo não acontece quando se faz o raciocínio a partir de dois ou mais sintomas; aí, entao, a sensibilidade e a especificidade de cada um deles dependem do contexto clínico no qual sempre são encontradas inúmeras variáveis. Basta, por exemplo mudar a idade do paciente para modificar radicalmente o significado diagnóstico de um sintoma ou sinal. Tomemos como modelo a febre. Considerada de maneira isolada, seu poder discriminatório é muito baixo, pois um sem-número de doenças infecciosas ou de outras naturezas podem se acompanhar de febre. Portanto, tanto a sensibilidade como a especificidade são muito baixas. Se acrescentarmos outro sinal ou sintoma em um paciente com febre, o poder discriminatório deste sinal se modifica completamente. Se o sintoma for tosse, a possibilidade de uma infecção pulmonar é evidente, mas se a febre for de longa duração, o raciocínio diagnóstico nos encaminha para tuberculose pulmonar; se for de curta duração, a possibilidade de pneumonia bacteriana passa para primeiro lugar; se a febre estiver associada a linfadenopatia, isso muda inteiramente o raciocínio diagnóstico, e assim por diante.

A sensibilidade, a especificidade e o poder discriminatório de sinais e sintomas não precisam ser "quantificados" estatisticamente para serem bem utilizados no raciocínio diagnóstico. A "sensibilidade clínica" é que nos leva à hierarquização das manifestações clínicas no complexo processo mental que é o raciocínio diagnóstico.

Como salienta Trisha Greenhalgh em seu livro Como ler artigos científicos. Fundamentos da medicina baseada em evidências:2 "as pesquisas qualitativas procuram uma verdade mais profunda; para isso visam estudar as coisas em sua situação natural preservando a complexidade, ao invés de simplificar o estudo, eliminando os fatores de confusão. Muitas vezes é necessário alterar a hipótese e o método de pesquisa, o que contraria radicalmente os preceitos das pesquisas quantitativas, sempre baseadas em técnicas estatísticas, comprovadamente insuficientes diante da impossibilidade de padronizar as maneiras de um paciente sentir-se doente."

Conclui-se, entao, que, quando se deseja aplicar técnicas estatísticas aos dados clínicos, é necessário ter em mente que a medicina não é uma ciência exata e o paciente não é uma máquina com uma peça avariada. Isso não quer dizer que se pode dispensar a maior objetividade possível nas decisões diagnósticas e nas propostas terapêuticas. Este é o maior desafio da medicina de excelência: procurar ser o mais exato possível no meio de tantas incertezas.

 

REFERENCIAS

1. McGee S. Evidence-Based Physical Diagnosis. Philadelphia: Saunders/Elsevier; 2000.

2. Greenhalgh T. Como Ler Artigos Científicos. Fundamentos da Medicina Baseada em Evidências. 2a Ed. Porto Alegre: Artmed; 2005.

 

*Texto extraído da obra: Porto CC. Carta aos estudantes de Medicina. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2014. Autorizado pela Editora Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2015.