RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 17. 1-2

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Artigo Original

Aplicabilidade do conhecimento dos médicos no cuidado do pé diabético em Belo Horizonte

Applicability of physicians' knowledge about diabetic foot care in Belo Horizonte

Dênis Paiva Ferraz1,2; Marco Aurélio Silveira Almeida1; Melissa Papazoglu2; Petúnia Crispim2; Taísa Faria e Silva2

1. Serviço de Endocrinologia e Metabologia da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora; MG/Brasil
2. Hospital Universitário São José da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais; MG/Brasil

Endereço para correspondência

Marco Aurélio S. Almeida
Rua Barão do Rio Branco, nº. 76/302, Centro
CEP 37410-000 - Três Corações - MG
e-mail: drmarcoaurelioalmeida@gmail.com

Resumo

OBJETIVO: avaliar com que freqüência médicos de diferentes especialidades (endocrinologistas, cardiologistas e clínicos gerais) examinam os pés de seus pacientes com diabetes mellitus tipo 2.
MÉTODOS: avaliou-se, a partir de quesitos, 100 pacientes portadores de diabetes tipo 2 da rede pública e privada em Belo Horizonte (MG).
RESULTADOS: observou-se que a maioria dos pacientes (72%) nunca tinha seus pés examinados. Isso inclui os pacientes seguidos pelos endocrinologistas (71%), cardiologistas (86%) e clínicos gerais (67%).
CONCLUSÃO: é necessário estimular a aplicação dos conhecimentos existentes no cuidado com os pés dos pacientes diabéticos e sensibilizar os médicos para a importância de um diagnóstico precoce de alterações associadas ao diabetes mellitus. A boa avaliação dos pés reduz os prejuízos para os pacientes e para a sociedade.

Palavras-chave: Diabetes; Pé Diabético; Cuidado e Prevenção do Pé Diabético.

 

INTRODUÇÃO

O diabetes mellitus (DM) constitui-se em um grupo de doenças com etiologia diversa caracterizada por um distúrbio metabólico com hiperglicemia, que resulta de uma deficiência na secreção e/ou na ação da insulina.1 Estimou-se para 2005 cerca de 300 milhões de diabéticos em todo o mundo. Um estudo multicêntrico brasileiro em 1980 mostrou prevalência de 7,6% na faixa etária de 30 a 69 anos e 17,4% entre 60 e 69 anos.2

A neuropatia diabética é uma síndrome complexa e faz parte de um conjunto de complicações acarretadas pelo DM. Trata-se da mais comum forma das neuropatias existentes no mundo e é responsável por 50 a 75% dos traumatismos e amputações não traumáticas que ocorrem nos membros inferiores.3 A polineuropatia diabética ocorre em cerca de 50% dos pacientes com 25 anos de evolução da doença4 e é citada como fator causal de úlceras nos pés em aproximadamente 80-90% desses pacientes.5,6 Pessoas diabéticas podem ter risco de amputação nos membros inferiores até aproximadamente 15 vezes mais do que nas não diabéticas. Nos EUA, ocorrem cerca de 85.000 amputações por ano em pacientes diabéticos, uma a cada 10 minutos, sendo que mais de 75% poderiam ser prevenidas.7 A Tabela 1 cita os riscos para os pés do paciente diabético e posteriores lesões e amputações.

 

 

O custo da neuropatia diabética está estimado em sete mil dólares/ano nos EUA, enquanto aquelas que resultam em amputação totalizam o custo de 50 mil dólares.8 Esses valores são muito reduzidos com investimentos em prevenções.

Sabe-se que o melhor meio para prevenir a neuropatia diabética é o controle glicêmico adequado e o exame regular dos pés. Se ambas as medidas fossem feitas, a incidência de úlceras e amputações dos pés diabéticos seria reduzida significativamente.9

Sabe-se também que a neuropatia diabética, com destaque para a forma sensitivo-motora crônica, é o principal fator predisponente para ulceração de membros inferiores. Aproximadamente 40-60% das ulcerações são puramente neuropáticas, até 45% são neuroisquêmicas e apenas 10% são puramente isquêmicas. As amputações de membros inferiores em diabéticos são precedidas por ulcerações em 85% dos casos.

O objetivo deste trabalho é avaliar o grau de aplicabilidade dessas informações, certamente conhecidas dos médicos (principalmente dos endocrinologistas) e pacientes sobre a importância do exame dos pés dos diabéticos.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

A metodologia empregada foi a realização de um questionário com diabéticos. Foram excluídos pacientes com DM tipo 1 e com glicemia de jejum acima de 420mg/dl.

A coleta dos dados foi realizada por entrevista direta feita antes de qualquer questionário específico e do exame físico. Todos os pacientes estavam em Belo Horizonte (MG) e eram oriundos de clínicas particulares ou públicas da cidade.

As perguntas realizadas no questionário em anexo foram baseadas nos fatores de risco citados na introdução. Foi realizado também um exame físico no qual foram abordadas alterações como atrofias dos interósseos, dedos em garra, fissuras, onicodistrofias, macerações e úlceras. A hiperceratose plantar foi avaliada pela ausência ou presença de calos, espessamentos e/ou descamações. Sinais de insuficiência venosa crônica foram avaliados pesquisando presença de varizes, dermatite ocre, edema, úlceras, pele fina atrófica e cianótica. A insuficiência crônica arterial foi avaliada pelo exame dos pulsos pediosos. Avaliaram-se também a temperatura regional da pele e a presença de cianose.

Após o questionário, foram realizados exame físico dos pés e teste com o monofilamento de Semmes-Weinstein de 10 gramas em seis diferentes localizações em cada pé (Figura 1). A grande vantagem do monofilamento é a sensibilidade determinada por alguns estudos, de 99%, e a especificidade de 77%. A insensibilidade ao monofilamento representa risco de lesão 18 vezes mais alto.8,10 O teste foi realizado pelo método sim/não de Berke e Sims, que instrui o paciente a dizer sim ou não, sem olhar, ao ato de sentir a aplicação do monofilamento nas seguintes localizações representadas pela Figura 1.

 

 

 


Figura 1 - Pontos de exame com o monofilamento de Semmes-Weinstein de 10 gramas.

 

Esses dados foram arquivados em um banco de dados e analisados pelos seguintes programas: Excell; Epi Info 2002 e Epi Info V06.

 

RESULTADOS

Foram entrevistados 100 pacientes - 69 (69%) mulheres e 31 (31%) homens. A média de idade foi de 60,54 anos, sendo o intervalo de 26 a 88 anos, mediana de 62 anos. A média do tempo da doença dos pacientes entrevistados foi de 8,33 anos, variando no intervalo de dois meses a 35 anos. Entre os entrevistados, 56 (56%) originavam de uma instituição privada e 44 (44%) de uma instituição pública (NS). Os questionários foram coletados no período de setembro de 2003 a março de 2004.

Entre os pacientes avaliados, 40 (40%) relataram fazer controle da doença com clínicos generalistas, 38 (38%) com endocrinologistas; 15 (15%) com cardiologistas; e sete (7%) com demais especialistas.

Na avaliação da ferida ou lesão nos pés, os resultados encontrados foram: 26 (26%) pacientes relataram que possuíam lesões nos pés; 53 (53%) declararam sabidamente não possuir lesões nos pés; 15 (15%) não sabiam, pois não sentiam alterações nos pés; e seis (6%) não sabiam, pois não olhavam os pés.

A Tabela 2 ilustra a freqüência dos exames, subdividindo-os entre as diversas especialidades médicas avaliadas. Observou-se que sete (7%) pacientes não souberam informar esses dados e, portanto, não estão incluídos nessa Tabela. Os Gráficos da Figura 2 mostram esses dados em porcentagem.

 

 

 


Figura 2 - Freqüência de exames dos pés nos pacientes diabéticos tipo 2, em porcentagem.

 

Considerando que a freqüência de exame dos pés dos pacientes diabéticos deve ser de no mínimo uma vez ao ano, verificou-se que não há diferença estatística entre clínicos gerais, cardiologistas ou endocrinologistas (p=0,364) e o mesmo se nota quando se agrupam clínicos gerais e cardiologistas e comparando-se com endocrinologistas (p=0,859).

Quando submetidos à inspeção, nove pacientes (9%) não apresentavam anormalidades nos pés, ao contrário de 91 (91%), sendo nestes as mais freqüentes: onicodistrofias, hiperceratose plantar difusa e hiperceratose plantar localizada.

Infelizmente, quer os pacientes fizessem ou não acompanhamento com clínicos (p=0,88), cardiologistas (p=0,59) e mesmo endocrinologistas (p=0,97), a incidência de alterações nos pés não teve sua presença diminuída. Isto demonstra que, independentemente da especialidade do médicoassistente, a aplicação de métodos simples, rápidos e sem custo, como exame físico adequado e o teste com o monofilamento de Semmes-Weinstein de 10 gramas, não estava sendo realizado conforme recomendado no acompanhamento a esses pacientes diabéticos.

 

DISCUSSÃO

Neste trabalho, verificou-se maioria de pacientes do sexo feminino, com idade média de 60,54. Vários estudos demonstram maior freqüência de lesões relacionadas ao pé diabético no sexo masculino. Murray et al. relataram lesões em 68% pacientes do sexo masculino com média de 62anos.11

Segundo Levin12, pessoas diabéticas comparadas às não diabéticas têm risco de amputação de membros inferiores estimado em 10,3 vezes mais alto para homens e 13,8 para mulheres, sendo, assim, um risco mais alto para mulheres.

O tempo médio de evolução do diabetes neste estudo foi de 8,33 anos; todavia, ressalta-se ser esse o tempo de diagnóstico conhecido e informado pelos pacientes, não podendo afastar a hipótese de que a doença já existia há mais tempo. Lavery et al.13 relataram a presença de lesões ulceradas em paciente diabético com mais de 10 anos da doença em 54% dos casos e de 21% em doentes com menos de 10 anos de doença.

A Associação Americana de Diabetes informa que 60% dos pacientes com diabetes possuem alguma forma de neuropatia e em muitos casos o seu desenvolvimento é lento, sendo que 30 a 40% dos doentes não apresentam sintomas iniciais; afirma, ainda, que o inadequado controle glicêmico constitui um fator de risco para úlceras e amputações. A polineuropatia diabética está presente em 50% dos pacientes com 25 anos de duração de diabetes e em 80% deles ela é fator causal de úlceras nos pés.14,15 O UKPDS mostrou que níveis de hemoglobina glicada de 7% reduz em 25% o risco de doenças microvasculares em comparação à HbA1c de 7,9%.16 Sabe-se que as úlceras dos pés e amputações de membros inferiores são os principais responsáveis pela morbidade e gastos com complicações.3

A identificação do paciente com pé em risco de lesão deve ser preocupação do profissional, bem como do paciente, e ocupação de cada membro da equipe de atenção a pacientes diabéticos.

Devem ser realizadas a identificação e a redução dos fatores de risco, como: a melhoria dos cuidados com os pés, o uso de calçados adequados para proteção e inspecioná-los antes de calçar, palmilhas para amortecimento, sempre usar calçados com meias e trocá-las diariamente, cortar as unhas de forma reta, não colocar os pés de molho em água quente, remoção de calos cirurgicamente por profissional competente, enxugar os pés adequadamente (inclusive entre os dedos), hidratação da pele (mas não entre os dedos) e educação dos pacientes e seus familiares.17,18,19,20

Assim, existem várias informações que atestam a negligência ao exame dos pés. A OMS avaliou 14.539 indivíduos diabéticos e verificou que apenas 6% dos exames nos pés foram documentados. Outra fonte mostrou que apenas 12% dos médicos examinavam os pés dos pacientes assintomáticos.8 A Associação Americana de Diabetes registrou que, entre 14.434 médicos, 50% realizavam avaliação neurológica anual e exame dos pés, evidenciando que, a partir de uma sensibilização, a atitude dos profissionais de saúde, sobretudo médicos, é passível de mudança.1,21

Dessa forma, neste estudo verificou-se que a maioria dos pacientes nunca teve seus pés examinados (67%) e que mais incentivos precisam ser feitos na área de saúde para reverter-se esse quadro.

Notou-se, ainda, que a maioria dos pacientes fazia controle com clínicos generalistas, seguido pelos endocrinologistas.

Os piores controles glicêmicos (HbA1c >7,7%) foram encontrados nos pacientes que se tratavam com endocrinologistas - pode-se pensar que talvez tais pacientes seguiam sua doença com endocrinologistas justamente por serem "mais complexos" que os conduzidos por outras especialidades. Porém, 27 (71%) deles nunca tiveram seus pés examinados. Se aceitar-se a explicação da "maior complexidade", parece estranha essa diferença em relação a cuidados básicos com o diabético, o que seria inclusive um motivo a mais para um exame atencioso.

Sugere-se, assim, que talvez haja, no grupo avaliado, descuido por parte desses profissionais (não se coletaram nomes dos profissionais por uma questão ética). Os endocrinologistas do estudo perderam apenas para os cardiologistas, cujos 86,6% de seus pacientes nunca tiveram seus pés examinados.

 

CONCLUSÃO

Assim como uma grande parcela de pacientes com diabetes mellitus tipo 2 evoluem com ulcerações e risco de amputação, trazendo uma série de implicações humanas, sociais e econômicas e vários estudos já terem demonstrado a importância da prevenção e diminuição dos fatores de risco, este trabalho tenta sensibilizar os médicos que lidam com pacientes diabéticos para a importância do diagnóstico precoce e da boa avaliação dos seus pés. A maioria dos participantes desta pesquisa nunca teve seus pés examinados. Mais incentivos precisam ser feitos na área da saúde para reverter esse quadro de notório conhecimento teórico para uma atitude prática mais efetiva.

 

REFERÊNCIAS

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