RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 27 e-1910 DOI: https://dx.doi.org/ 10.5935/2238-3182.20170092

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Relato de Caso

Tratamento cirúrgico de fratura cominutiva da tíbia com utilização de duas placas com áreas de trabalho consecutivas e sobrepostas

Treatment of tibial cominutive fracture using two plates with consecutive and overlay work areas: case report

Lucas Amaral Santos1; Filipe Machado Barcelos2; Davison Fernandes Julian Dias3

1. Santa Casa de Belo Horizonte, Hospital Vera Cruz e Hospital Universitário Risoleta Tolentino Neves, Cirurgiao de Quadril - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
2. Santa Casa de Belo Horizonte, Médico residente - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
3. Santa Casa de Belo Horizonte, Hospital Regional de Betim/ MG, Cirurgiao de Joelho - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência

Lucas Amaral Santos

E-mail: lucasamaralsantos@gmail.com

Recebido em: 02/08/2017
Aprovado em: 24/11/2017

Instituiçao: Santa Casa de Belo Horizonte- Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil

Resumo

OBJETIVO: Relatar um caso no qual foi realizado tratamento cirúrgico de fratura cominutiva da tíbia de um homem de 26 anos, com utilização de duas placas com áreas de trabalho consecutivas e sobrepostas no Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital Galba Velloso, de Belo Horizonte, Minas Gerais.
MÉTODOS: Realizou-se extensa revisão bibliográfica em revistas, periódicos e literatura especializada, bem como foi acompanhado o pré e pós-operatório de um caso de fratura cominutiva de tíbia no qual foram utilizadas placas duplas no mesmo osso.
CONCLUSÃO: A osteossíntese com sistema de duas placas com áreas de trabalho consecutivas e sobrepostas, apresentada no caso relatado, se mostrou estável e eficaz.

Palavras-chave: Fraturas da Tíbia; Placas Osseas; Fraturas Cominutivas; Fixação Interna de Fraturas.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To report a case of comminuted tibial fracture surgical treatment in a 26 year old man, using two plates with consecutive and overlapping Working area in the Orthopedics and Traumatology Hospital Galba Velloso in Belo Horizonte, Minas Gerais.
METHODS: We performed extensive bibliographic review in journals, periodicals and specialized Literature and a preoperative and postoperative case of a comminuted tíbia fracture in which double plates were used in the same bone was accompanied.
CONCLUSION: Osteosynthesis with two-plate system with consecutive and overlapping work areas, presented in the case reported, was shown to be stable and efficient.

Palavras-chave: Tibial Fractures; Bone Plates; Fractures, Comminuted; Fracture Fixation, Internal.

 

INTRODUÇÃO

As fraturas da diáfise da tíbia e da fíbula são as mais comuns entre os ossos longos do corpo. Em média na população ocorrem 26 fraturas da diáfise da tíbia por 100.000 habitantes por ano. Os homens são mais acometidos que as mulheres, com incidência no sexo masculino de 41 por 100.000 ao ano e no sexo feminino 12 por 100.000 ao ano. A idade média dos pacientes que apresentam essa entidade é de 54 anos, tanto entre os homens como nas mulheres.1

Pires et al.2 demonstraram que a maioria dos ortopedistas brasileiros (91%) utiliza alguma classificação para essas fraturas, sendo que a mais utilizada foi a do grupo AO-ASIF, por 84% dos entrevistados.

As fraturas diafisárias fechadas, cujo desvio em varo e valgo não ultrapasse cinco graus podem ser tratadas inicialmente por meio de aplicação de tala gessada, que posteriormente é substituída por aparelho gessado tipo PTB. Em caso de fraturas desviadas tratadas incruentamente, observa-se piores resultados funcionais em relação à redução e amplitude de movimento.3,4

Em relação ao tratamento operatório, o consenso é que a haste intramedular fresada é preferida em detrimento das não fresadas, pois a primeira, além de levar enxerto ósseo autólogo ao foco fraturário, possibilita introdução de hastes de maior diâmetro (até 11 mm).5 Também é sabido que a fresagem, ao destruir a circulação endosteal, promove uma inversão no padrao vascular, tornando a circulação exosteal (periosteal) mais ativa, culminando numa osteoconsolidação mais efetiva.

Já em fraturas com grande desvio ou instabilidade do terço proximal ou distal da diáfise tibial, a fixação por placas é mais bem indicada, uma vez que nessas áreas a haste intramedular não promove redução adequada. Não obstante, se o paciente necessitar de carga precoce ou se as condições de partes moles perilesionais estiverem inadequadas, o uso de placas é contraindicado, sendo a fixação externa uma opção plausível.6,7

Outro aspecto relevante em relação à aplicação das placas é que as mesmas necessitam de uma área de trabalho adequada para aplicação, seja nas fraturas nas quais o cirurgiao opta por estabilidade absoluta por princípio de compressão interfragmentar, seja naquelas em que se prefere aplicar estabilidade relativa, por princípio de tutoramento externo.

Areas de trabalho muito pequenas podem levar a estresse excessivo do material de síntese, bem como rigidez em excesso no foco fraturário, o que é indesejável se o princípio escolhido for o de tutoramento externo em caso de estabilidade relativa.

As placas devem ser únicas, de preferência mediais, com tamanho suficiente para serem fixadas proximal e distalmente à fratura, mantendo distância suficiente entre o parafuso proximal e distal à fratura para que haja área de trabalho suficiente em caso de estabilidade relativa. A placa permite o controle da rotação e do encurtamento do osso.8

Deve se priorizar placas que respeitem os princípios de consolidação biológica, minimizando lesões vasculares periosteais, e o cirurgiao deve evitar agressão aos tecidos moles durante a realização dos acesos cirúrgicos.9

O uso de placas não permite o apoio precoce do membro fraturado, mas esta desvantagem é compensada com a total imobilização do foco de fratura, permitindo consolidação direta.

 

RELATO DE CASO

Paciente masculino de 26 anos, vítima de ferimento por projétil de arma de fogo (PAF) em terço proximal da tíbia esquerda em 06/05/2013, sendo seu primeiro atendimento realizado na Santa Casa de Misericórdia de Nova Serrana, Minas Gerais. Foi encaminhado em 24 horas ao Pronto-Socorro do Hospital Joao XXIII, em Belo Horizonte, MG, onde a fratura foi classificada segundo Gustillo e Anderson (1976) em IIIA e posteriormente submetido a debridamento cirúrgico de tecidos desvitalizados, antibioticoterapia com cefazolina, 1000 mg endovenosa de oito em oito horas e gentamicina 240 mg endovenosa de 24 em 24 horas, tratamento mantido por 72 horas, quando foi encaminhado ao Hospital Galba Velloso, também em Belo Horizonte.

Ao exame físico regional, foram identificados dor, edema, deformidade, e redução de amplitude de movimento (ADM) em joelho esquerdo, ferida perfurocontusa causada por orifício de entrada de PAF (Projétil de Arma de Fogo) em terço proximal da perna esquerda, sem sinais flogísticos. Status neurovascular preservado.

Exames de imagem evidenciam fratura cominutiva do terço proximal da tíbia esquerda com traço em espiral, com extensão de 15 cm em direção distal. Fratura transversa simples em regiao imediatamente distal ao colo da fíbula ipsilateral. Articulações do joelho e tornozelo esquerdos mantiveram-se sem alterações. Classificada seguindo normas do grupo AO-ASIF em 42 C3 (Figura 1).

 


Figura 1. Radiografias da perna esquarda em AP e perfil.

 

O paciente foi abordado cirurgicamente quatorze dias após o trauma. Sendo descartado o uso de haste intramedular (HIM) devido a localização da área de cominuição no terço proximal da tíbia esquerda, pois a mesma não corrigiria o desvio em antecurvato que a fratura apresentava, principalmente devido à cominuição posterior (Figura 2).

 


Figura 2. Imagem radiográfica em perfil da perna esquerda com representação esquemática do planejamento pré operatório caso fosse utilizada HIM. Notar que o antecurvato de 22 graus não seria corrigido pelo material.

 

Devido à ausência da placa de compressão dinâmica (DCP) de 14 furos solicitada, a equipe se viu obrigada a mudar o planejamento cirúrgico inicial (Figura 3), uma vez que somente estavam disponíveis no arsenal cirúrgico placas DCP de 11 furos ou menores.

 


Figura 3. Imagem radiográfica em perfil da perna esquerda com representação esquemática do planejamento pré operatório caso fosse utilizada placa DCP longa de 14 furos. Traços em amarelo mostram a contagem de furos da placa onde não seriam aplicados parafusos, traços em branco demonstram a colocação de parafusos.

 

Optou-se pelo tratamento individualizado da fratura cominutiva por meio de aplicação de placa em ponte e da extensão do traço para a metáfise por compressão interfragmentar com placa DCP e parafusos bicorticais.

Foi realizado acesso longitudinal de 3 cm em regiao proximal e medial da perna esquerda, por onde foi introduzida placa em "T" de platô com 11 furos. Foram utilizados três parafusos esponjosos de rosca 32 mm unicorticais proximais e um parafuso bicortical de grandes fragmentos para fixação da regiao proximal da placa. Para fixação distal, foram utilizados quatro parafusos bicorticais consecutivos.

Para tratamento da extensão diafisária da fratura foi realizado acesso lateral à margem anterior da tíbia com afastamento lateral do compartimento muscular anterior. Foi aplicada placa DCP de 11 furos na regiao lateral da tíbia esquerda, com quatro parafusos bicorticais proximais e três distais, tomando-se a precaução de sobrepor as duas placas, medial e lateral, em área equivalente a quatro furos das duas placas, bem como evitou-se colocação de parafusos na placa lateral imediatamente abaixo à placa medial, respeitando-se também uma distância de quatro furos. Esses cuidados foram seguidos para se reduzir a área de estresse da tíbia e manter adequada área de trabalho para ambas as placas (Figura 4).

 


Figura 4. Imagem radiográfica em AP e perfil da perna esquerda, pós operatório imediato. Notar eixo em AP em neutro e recurvato residual de nove graus.

 

Manteve-se tala gessada cruropodálica por quatro semanas. Paciente evoluiu bem no pós-operatório, com consolidação adequada da fratura e funcionalidade articular de joelho e tornozelo.

 

DISCUSSÃO

As fraturas cominutivas da diáfise da tíbia representam um grande desafio ao cirurgiao ortopedista, pois, como já mencionado anteriormente, esse osso suporta aproximadamente 75% do peso sobre o membro inferior em apoio monopodálico. O mecanismo de trauma mais comum é o direto de alta energia, provocando fraturas multifragmentadas e intenso dano às partes moles, e, assim, podem ocorrer diversas sequelas e/ou complicações oriundas da própria fratura e/ou do tratamento proposto.

Dentre as complicações possíveis, pode-se citar a consolidação viciosa, pseudoartrose, infecção seja de partes moles, seja osteomielite, rigidez no joelho e/ou no tornozelo ipsilaterais, quebra do material por má utilização da técnica ou por utilização de material inadequado, necrose térmica da diáfise durante a fresagem, distrofia simpática reflexa devido à imobilização prolongada, síndrome de compartimento, sendo o compartimento anterior o mais comum. Deve-se atentar para o acometimento do compartimento posterior profundo com anterior íntegro, o que pode levar a sequelas como dedos em garra.1

Nas fraturas como as do caso descrito, nas quais há intensa cominuição, tipo C, está indicada a osteossíntese pelo princípio da estabilidade relativa, sendo as opções e implantes para obtenção desse princípio a fixação externa, a haste intramedular e a placa em ponte. A haste intramedular bloqueada é considerada por muitos autores o método de escolha no tratamento definitivo das fraturas diafisárias do tipo C dos ossos longos dos membros inferiores.

Entretanto, há situações nas quais o uso da haste é limitado como nas fraturas da diáfise com extensão articular, traços de fratura na transição diáfise-metáfise, lesões cutâneas no ponto de entrada da haste, indisponibilidade de radioscopia e restrição ao uso da haste pelo elevado custo do implante. Nesses casos uma opção terapêutica é a placa em ponte como utilizado no caso.

Contudo, não existe na literatura uma definição em relação ao comprimento da placa e o número de parafusos a serem utilizados na osteossíntese da fratura, bem como qual seria a distância de segurança caso se fizesse necessária aplicação de duas ou mais placas. Törnkvist et al.,10 em um estudo sobre a relação do número e posição dos parafusos em estabilização de fraturas chegaram à conclusão que a força em torsão é dependente do número de parafusos e a força em flexão aumenta com o espaçamento entre os parafusos.

Sanders et al.,11 em um estudo biomecânico com ulnas de cadáveres, concluíram que o número de parafusos é menos importante que o comprimento da placa com relação a rigidez em flexão do modelo. Stoffel et al.12 sugerem para a fixação de fraturas tibiais o uso de placas longas com poucos parafusos.

Em outro trabalho sobre biomecânica, Stoffel et al.13 chegaram às seguintes recomendações: para fixação de fraturas com placa em ponte do membro inferior 2 ou 3 parafusos devem ser usados em cada fragmento; já para o membro superior, esse número é de 3 ou 4; em fraturas com traço simples 1 ou 2 furos da placa devem ser omitidos de cada lado da fratura; já em fraturas com grande área de cominuição, os furos mais próximos da fratura devem ser preenchidos.

 

CONCLUSÃO

O sistema com duas placas e as distâncias respeitadas entre suas fixações no caso apresentado se mostrou estável e eficaz. Abrem-se portas para novos estudos que levem em consideração a associação de mais de uma placa no mesmo osso, a fim de elucidar biológica e biomecanicamente a reação da consolidação óssea frente a esse tipo de sistema.

 

REFERENCIAS

1. Egol K, Koval KJ, Zuckerman JD. Handbook of Fractures. 3ª ed. Philadelphia: Lippincott, Williams & Wilkins; 2010.

2. Pires RES, Fernandes HJA, Belloti JC, Balbachevsky D, Faloppa F, Reis FB. Como são tratadas as fraturas diafisárias fechadas do fêmur no brasil? Estudo transversal. Acta Ortop Bras. 2006;14(3):165-9.

3. Bone LB, Sucato D, Stegemann PM, Rohrbacher BJ. Displaced isolated fractures of the tibial shaft treated with either a cast or intramedullary nailing. An outcome analysis of matched pairs of patients. J Bone Joint Surg Am. 1997;79(9):1336-41.

4. Karladani AH, Granhed H, Edshage B, Jerre R, Styf J. Displaced tibial shaft fractures: a prospective randomized study of closed intramedullary nailing versus cast treatment in 53 patients. Acta Orthop Scand. 2000;71(2):160-7.

5. Whittle AP, Wester W, Russell TA. Fatigue failure in small diameter tibial nails. Clin Orthop Relat Res. 1995;(315):119-28.

6. Lang GJ, Cohen BE, Bosse MJ, Kellam JF. Proximal third tibial shaft fractures. Should they be nailed? Clin Orthop Relat Res. 1995;(315):64-74.

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8. Burwell HN. Plate fixation of tibial shaft fractures. A survey of 181 injuries. J Bone Joint Surg Br. 1971;53(2):258-71.

9. Rüedi T, Webb JK, Allgöwer M. Experience with the dynamic compression plate (DCP) in 418 recent fractures of the tibial shaft. Injury. 1976;7(4):252-7.

10. Törnkvist H, Hearn TC, Schatzker J. The strength of plate fixation in relation to the number and spacing of bone screws. J Orthop Trauma. 1996;10(3):204-8.

11. Sanders R, Haidukewych GJ, Milne T, Dennis J, Latta LL. Minimal versus maximal plate fixation techniques of the ulna: the biomechanical effect of number of screws and plate length. J Orthop Trauma. 2002;16(3):166-71.

12. Stoffel K, Stachowiak G, Forster T, Gächter A, Kuster M. Oblique screws at the plate ends increase the fixation strength in synthetic bone test medium. J Orthop Trauma. 2004;18(9):611-6.

13. Stoffel K, Dieter U, Stachowiak G, Gächter A, Kuster MS. Biomechanical testing of the LCP--how can stability in locked internal fixators be controlled? Injury. 2003;34 Suppl 2:B11-9.