RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 17. 1-2

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Artigo Original

O paciente poliqueixoso e o trauma físico e psíquico

The patient with multiple complaints and the physical and psychic trauma

Sebastião Abrão Salim

Membro Efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, Membro Titular da Associação Brasileira de Psiquiatria, Professor Adjunto Aposentado do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG

Endereço para correspondência

Rua do Ouro nº 104 s/ 904 - Bairro Serra
BH MG Cep 30220-000
E-mail sebastiaosalim@superig.com.br

Resumo

INTRODUÇÃO E OBJETIVO: o entendimento do paciente poliqueixoso requer o entendimento do trauma, estresse e o retraimento autístico. Este trabalho busca avaliar os vários fatores que influenciam as queixas clínicas.
METODOLOGIA: são apresentados casos clínicos típicos para auxiliar a avaliação do poliqueixoso que é portador de transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) e costuma ser de difícil manejo clínico, pela diversidade e antagonismo da sua sintomatologia. É, comumente, objeto de exames complementares invasivos pelo médico especialista com o fim de excluir ou encontrar uma etiologia orgânica para seus sintomas. O autor não concorda com essa prática clínica habitual porque o paciente já está traumatizado e porque esse procedimento médico pode prejudicar a importância do elemento afetivo presente em sua relação pessoal com o paciente.
RESULTADOS: o elemento afetivo é o mais importante quesito terapêutico para a psicoterapia psicanalítica do que a psicoterapia cognitiva ou a comportamental, porque o enfatiza.
CONCLUSÃO: para familiarizar o médico especialista com esse elemento afetivo e seu manejo clínico, recomendam-se os cursos tipo grupo Balint, assim como o estudo teórico do TEPT.

Palavras-chave: Poliqueixoso; Trauma; Retraimento Autístico; Estresse; TEPT.

 

INTRODUÇÃO

Existe na clínica médica um paciente denominado poliqueixoso. Seu diagnóstico é feito a partir de queixas repetitivas, de natureza somática e psíquica, com oscilação da intensidade, da variedade e da inespecificidade das mesmas, algumas até antagônicas. São submetidos a vários exames complementares pelos médicos especialistas e conclui-se tratar de queixas funcionais sem causa orgânica específica.

Com os estudos sobre o TEPT, acredita-se que se possa entender essas queixas como parte desse transtorno e o diagnóstico clínico ser feito por inclusão, diferentemente de quando é feito por exclusão mediante exames complementares invasivos para um paciente já traumatizado.

Habitualmente, é atendido por seguidos especialistas, com resultados terapêuticos precários, como é sua própria vida pessoal, familiar, social e profissional. Sua doença se prolonga por tempo indeterminado, acompanhada de sofrimento físico e psíquico e tende à cronicidade.

Essa evolução torna-se por si só incomoda para o paciente e para seus familiares. Apresenta tendência a se prender ao médico que o assiste, pelo desamparo que sente, adesão esta temida por alguns profissionais.

Por vezes, é subestimado e julgado sem força de vontade para melhorar ou considerado simulador em busca de um benefício pessoal secundário de ordem psíquica ou material, como uma aposentadoria precoce, um atestado para licença médica e outros fins.

O interesse pelo estudo desse paciente surgiu quando foram desenvolvidos os estudos sobre o trauma, o estresse e o retraimento autístico, a partir da articulação da Psicanálise com a Psiquiatria, a Neurociência e sua prática clínica, tendo o autor publicado alguns trabalhos1,2,3,4 que lhe permitiram exame mais aprofundado da sintomatologia e da etiologia do transtorno do estresse pós-traumático (TEPT).

Depois, ao avaliá-lo, verificou-se que ele tem muitas características do portador do TEPT e pensa poder sugerir que todo paciente poliqueixoso é portador de TEPT.

Este trabalho pretende mostrar que esse paciente foi vítima de um evento traumático e tem como característica central a tendência a se esquivar de lembrar-se e de falar sobre o mesmo, apesar do fato voltar de modo incontrolável sob a forma de memórias relâmpagos e sonhos repetitivos. Devido a essa atitude, ele permanece de forma circular no relato de suas queixas somáticas e psíquicas.

Propõe-se a hipótese de que esse paciente usa o próprio corpo como uma segunda mãe na tentativa de se acalmar pelo medo de morrer ou de se desfazer, como decorrência do evento traumático de que foi vítima.

Esse conceito do próprio corpo como uma mãe tem a ver com o retraimento autístico que, por sua vez, relaciona-se com a homeostase das funções vitais existente no feto logo após a fecundação, como será mais explicado adiante.

O retraimento autístico, o trauma e o estresse são os elementos centrais da psicopatologia do paciente poliqueixoso.

 

O RETRAIMENTO AUTÍSTICO

Ao estudar o desenvolvimento psíquico e biológico inicial, postulou-se a existência de um estado inicial do feto, no qual existe uma regularidade dos ritmos das funções vitais, ditados pela filogênese, que resulta em experiências-sensação ritmadas a partir das quais o feto tem a noção subjetiva de que está existindo acompanhado da maturação progressiva dos processos cognitivos e adaptativos. Pode-se denominá-lo de estado homeostático, que funciona como uma mãe bastante suficiente para prover o recém-nascido dos cuidados de que necessita para manter-se sereno. Esse estado instala-se logo após a fecundação e é registrado por incipientes estruturas neurais. Destas, origina-se a memória de procedimento de fundamental importância para a sobrevivência. Essa memória, segundo Kandel5, acompanha o feto por toda a vida e está sempre se enriquecendo com procedimentos visando à sobrevivência de seu portador. Estudos da Neurociência, de acordo com Sidarta6, vêm mostrando que esse enriquecimento da memória de procedimento é a principal função do sonho, contrariando a teoria de Freud7 de que o sonho é uma forma de realização de desejos sexuais reprimidos.

Esse estado é chamado de autístico por ser o primeiro estado psíquico. Nele o feto basta a si mesmo e tem a ver com o estado autista existente no autismo psicogênico.

A vítima de um trauma, que tanto pode ser um feto como uma pessoa idosa, volta a esse estado de homeostase, cujo retorno é denominado retraimento autístico devido à semelhança com o estado autista propriamente dito.

As experiências de Harlow8 com macacos recém-nascidos demonstraram que, se isolados dos outros macacos logo ao nascer, por um período de seis meses, quando recolocados de volta ao convívio com os mesmos desenvolviam sintomas autísticos, como isolamento, imobilidade e animação suspensa, isto é, faziam o mínimo necessário só para sobreviverem. O mesmo não acontecia quando eram separados após 10 dias do nascimento. Ao serem recolocados com outros macacos tinham socialização e mobilidade motora pouco prejudicada.

Depois Levine9 fez o mesmo estudo com ratos recém-nascidos em laboratório e observou que apresentavam as mesmas reações descritas por Harlow8.

Como existe um paralelismo aceito pela ciência entre as reações dos animais e dos homens em relação aos seus reflexos inatos e adquiridos, essas experiências subsidiaram os estudos do autor4 sobre o desenvolvimento psíquico inicial e permitiram-lhe postular que existe uma matriz psicobiológica inicial capaz de gerar sintomas e comportamentos típicos com características autísticas. Esse fato é muito importante para o entendimento da psicopatologia do paciente poliqueixoso, a qual tem natureza reflexa e não tem conteúdo de desejo ou impulso reprimido. Portanto, não cabem interpretações simbólicas, como até hoje preconiza a Medicina Psicossomática inspirada nos conceitos psicanalíticos e sua teoria da "linguagem dos órgãos" baseada na repressão de desejos inconscientes.

 

O TRAUMA

A palavra trauma, de etimologia grega, é traduzida para o português como ferida. Para tornar-se patogênico, segundo o DSM-IV10, deve produzir na sua vítima ou na sua testemunha um medo consistente de morte e é com este sentido vai ser usado neste trabalho.

Com base nos estudos mencionados, para o desenvolvimento do TEPT ou da sintomatologia do paciente poliqueixoso é necessário que, além do evento traumático recente (um acidente automobilístico, um seqüestro, uma tortura física ou psíquica, um abandono, uma infidelidade e outros), tenha ocorrido um trauma entre o período fetal até 10 dias após o nascimento, com a sensação de interrupção da noção sentida de "continuar sendo" ou do sentir "continuar existindo". O traumatismo do parto é o mais habitual.

Para melhor explicar a fisiopatologia do trauma, ele será aqui comparado a um fenômeno físico. Na ocorrência de uma ruptura da camada protetora de um recipiente por um trauma, seu conteúdo tende a vazar por essa ruptura. Do mesmo modo, pode-se conceber o cérebro como um recipiente para conteúdos psicobiológicos, tais como os registros da memória de procedimento para a sobrevivência e os registros da maturação dos processos cognitivos e de adaptação, desenvolvidos laboriosamente e que propiciam a sensação de estar existindo. Qualquer ferida em sua estrutura ou em sua superfície desperta o medo e a noção subjetiva de que esses conteúdos armazenados podem vazar por essa ferida. Resulta em um temor de aniquilamento, de ficar esvaziado de todo e de se desfazer. Como o tecido nervoso e a pele são embriologicamente originados do ectoderma, é lícito supor, também, que uma ferida desta última, que tem a função de revestimento para o corpo, promova o mesmo estado de angústia, como ocorre na prática. Certas pessoas diante de um ferimento pequeno da pele tornam-se aflitas e até podem desfalecer pelo temor de desfazeremse devido ao medo de vazamento de seus conteúdos, como o sangue, as fezes e a urina.

Salim3 descreveu uma sintomatologia psíquica e física específica oriunda dos recursos empregados pela vítima do trauma para tentar refazer a ruptura sofrida e da sintomatologia resultante dos temores de vazamento. Deu-lhe o nome de "remendos para uma superfície sensorial".

Além desses recursos para remendar-se, a vítima de um evento traumático retorna ao seu estado de retraimento autístico em busca de segurança e serenidade. Esse movimento está a serviço da sobrevivência e nisto se diferencia do conceito clássico da Psicanálise de regressão libidinal ou de regressão à dependência.

 

O ESTRESSE

Ao retornar ao estado de retraimento autístico, a vítima de um trauma recente volta a um estado de funcionamento físico e psíquico com um mínimo de produção e consumo de oxigênio pelas células, onde as demandas para a sobrevivência são menores.

Ele sobrevive com o mínimo de oxigênio celular, tal como se faz para prolongar a vida de órgãos para transplante, segundo Eric11.

Se a vítima for jovem ou adulta, vai precisar contar consigo mesma e com o meio externo, nem sempre favorável para auxiliá-lo, pela sua idade, nas suas obrigações profissionais, sociais e pessoais, empurrado que é pelo instinto de vida que o leva a mover sempre para frente e as imposições de seu próprio superego para com suas insuficiências. Incapaz de atender as demandas dessa realidade, porque seu equipamento cognitivo e motor no estado autístico são precários para tanto, vai lhe ser exigido um esforço maior para manter-se e após algum tempo vai mostrar os primeiros sinais e sintomas de desgaste. É a esta situação de desgaste crescente por um esforço maior que Selye12 denominou de estresse e ao conjunto de reações e respostas associadas denominou de "síndrome de adaptação geral". Tem semelhança com o desgaste que sofre um motor defasado para uma determinada tarefa.

O estresse agudo resultante dessa experiência traumática não tem duração suficiente para promover alterações morfológicas em suas estruturas neurais, segundo Kandel5. Mas se o estresse se torna crônico, ocorre uma liberação mais prolongada e acentuada de substâncias químicas, especialmente os glicocorticóides que atuam no hipocampo, promovendo uma atrofia de suas estruturas responsáveis pela normalidade da vida instintiva.

 

O TEPT

O paciente poliqueixoso é portador de TEPT e por isto o que é válido para o TEPT é válido para ele. Seguem-se algumas referências.

Segundo Bernik13, 30% das vítimas de traumas desenvolvem o TEPT e sua prevalência na vida da população civil urbana é de 10% nos homens e de 18% nas mulheres pelas estatísticas americanas. Em nosso país, pode-se esperar incidência mais alta em virtude do alto índice de violência existente.

Para Figueira14, o diagnóstico do TEPT "tem uma tríade psicopatológica em resposta a um evento traumático. Desenvolvem-se três dimensões de sintomas: o reexperimentar o evento traumático, a evitação de estímulos a ele associados e a presença persistente de sintomas de hiperestimulação autonômica".

A esses sintomas de hiperestimulação juntam-se outros com características de hipoestimulação, como se seguem:

A - Hiperestimulação: insônia, irritabilidade, impaciência, taquipsiquismo, estado constante de alerta, aumento da atividade psicomotora, taquicardia, hipertensão arterial, apego excessivo à ginástica e a corridas diárias, adição às drogas e ao álcool, sintomas psicóticos e outros.

B - Hipoestimulação: fadiga, cansaço, desânimo, sonolência, tristeza vazia ou fria, ausência de si mesmo, diminuição da capacidade cognitiva e motora, sensibilidade aumentada para os estímulos sensoriais, mialgias, perda do apetite e do interesse sexual, distúrbios menstruais, constipação intestinal e outros.

O estado de hipoestimulação pode ser confundido com o estado depressivo. No entanto, a tristeza no TEPT é descrita pelo paciente como fria, seca e vazia. Ele está distante, não chora e está desertificado. Sente que não habita o próprio corpo. Sua psicopatologia origina-se de um estágio do desenvolvimento, quando ainda não existe um sujeito interpretante, um ego. Por isto, não é pertinente falarse em depressão.

O estado de hiperestimulação pode ser confundido com um estado maníaco ou esquizóide. Ambos esses estados existem dialeticamente em um mesmo paciente, com prioridade de um sobre o outro. Devido a isso, às vezes, seu portador é diagnosticado como tendo um transtorno do humor bipolar ou mesmo esquizofrenia e tratado como tal se apresentar sintoma psicótico.

Geralmente, apresenta várias entidades clínicas associadas, denominadas co-morbidades, como distúrbios alimentares, adição às drogas e ao alcoolismo, perversões sexuais, fobia social, transtornos: depressivo, do pânico, psicossomático e psicótico.

Segundo o DSM-IV9, no TEPT os sintomas ocorrem dentro de quatro semanas após o evento traumático e tem duração mínima superior a um mês. Este último é o mais freqüente na nossa clínica e ao qual este trabalho dirige sua atenção.

 

MATERIAL CLÍNICO

D é uma paciente com 47 anos, casada e de escolaridade média. Chega para a consulta com as vestes e os cabelos descuidados. Causa impressão de desorganização pessoal. Tem expressão de desânimo e movimentos motores lentos. Diz estar sem esperanças de melhoras devido aos maus resultados com os tratamentos feitos para voltar a ser o que era. Havia visitado clínicos, psiquiatras e psicólogos. Veio indicada por uma ex-paciente que havia se beneficiado com o tratamento.

Relata insônia grave, entorpecimento para pensar, falta de concentração, memória fraca, tristeza indefinida, cansaço, impaciência, irritabilidade, estranhamento de si mesma, percebe-se desconectada e alheia ao que se passa ao seu redor e no seu corpo, medo de sair à rua, perda de apetite, perda do interesse por distrações, mialgias e queixas somático-generalizadas. Acha-se diferente do que era: ativa e participante.

D fala que há dois anos foi submetida à retirada do rim direito após um diagnóstico inesperado de câncer. Fez inúmeros exames sem que os médicos chegassem a um resultado. A partir daí seu estado agravou-se. Passou a apresentar as queixas citadas, acompanhadas de lembranças e sonhos repetitivos relacionados ao diagnóstico de câncer e à cirurgia realizada. Sentiu-se incapacitada para voltar ao trabalho, o que lhe acarretou sentimento de inutilidade, desvalorização e incômodo para todos, produzidos pelo seu rígido superego. Tornou-se repetitiva, queixosa e sem esperança. Não conseguiu deixar de pensar que era portadora de câncer. Fez uso de vários antidepressivos e sedativos, sem obter melhoras. Foi submetida a vários exames médicos invasivos que faziam piorar suas queixas.

Compreendeu-se seu estado de desamparo diante das inúmeras queixas apresentadas e os poucos resultados terapêuticos com os tratamentos realizados.

Sugeriu-se tratamento pela psicoterapia analítica com uma sessão semanal e o uso de um medicamento para sua insônia. Não foi prescrito antidepressivo porque a experiência clínica com esses pacientes mostra que isso não ajuda no tratamento, a não ser que ministrado após o estabelecimento de uma boa relação médico-paciente.

 

EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO

Após quatro meses de tratamento, D apresentou melhoras e mais confiança em si mesma. Aceitou com mais tranqüilidade a prorrogação de sua licença no trabalho, que evitava por temer críticas alheias e aquelas que movia contra si própria. De fato, era impiedosa e cruel consigo mesma, condição superegóica, que a mantinha em constante estresse. Seu sono estava mais normalizado. Contudo, ainda permanecia vivo o medo do câncer. As sessões caracterizavam-se pela repetição da avaliação das melhoras e pioras sentidas, como se estivesse se certificando de suas possibilidades de êxito. Percebeu-se que estava realmente e essa compreensão dava-lhe tranqüilidade. D ensaiava com essa repetição a possibilidade de um outro passo. Mostrava-se disposta a continuar o tratamento, embora continuasse falando pouco de si como pessoa, evitando a exposição de aspectos ligados aos traumas mencionados e de falar de sua intimidade e subjetividade. Prendia-se ao relato repetitivo de suas queixas. Sentia-se mais animada para o tratamento.

Era-lhe enfatizado que sua tendência repetitiva devia ser vista como natural e recomendava-se-lhe paciência para o seu sentimento de insuficiência. Era preciso compreendê-lo como resultante do trauma sofrido com sua doença renal, sem julgamento de que ela estaria de "corpo mole para melhorar".

 

COMENTÁRIOS ADICIONAIS

Os sintomas de D sugeriam o diagnóstico de: paciente funcional; paciente atípico; de difícil manejo clínico; de transtorno depressivo; de transtorno de ansiedade; de paciente borderline; de transtorno do humor bipolar; de transtorno esquizofrênico, como são habitualmente diagnosticados.

Geralmente, esse paciente não faz menção de traumas em sua vida pessoal, mas pode-se detectálos na clínica por:

uma psicopatologia específica originada da matriz psicobiológica inicial;

pelos sonhos e memórias repetitivas com esse trauma;

pela transferência e respostas contratransferências do médico-assistente, que vai desde sonolência, impaciência até um mal-estar físico, manifestações chamadas de pré-verbais.

Alguns pacientes poliqueixosos apresentam um tempo de latência entre o trauma e o aparecimento dos sintomas. Foi assim com D. Os desmaios ocorridos seis meses depois da cirurgia foram episódios de desfalecimento devido à angústia de se desfazer.

Um outro paciente desenvolveu um hematoma subdural por queda súbita devido a esse desfalecimento. Fez uma craniotomia e dois meses depois apresentou quadro de ansiedade seguido de vários sintomas gerais de TEPT e sintomas psicóticos. No primeiro contato, parecia tratar-se de um quadro de esquizofrenia. O paciente reiterava o delírio de que queria "voltar para sua casa antiga". Esse fato obrigava os parentes a manterem fechadas as portas de seu apartamento. Mais tarde, compreendeuse que esse insistente pedido significava o desejo de voltar a ser como era e seu diagnóstico principal era de TEPT.

Os sintomas do paciente poliqueixoso devem ser entendidos como concomitantes fisiológicos. Não têm conteúdo simbólico relacionado com a repressão de instintos sexuais reprimidos. Expressam a existência de uma angústia por medo de morte e as defesas relacionadas a ela, geradas pela matriz psicobiológica autista.

Ele sente e reage reflexamente, sem interferência de um ego, de uma cabeça para pensar.

O conhecimento desse significado dos sintomas pelo médico-assistente pode ajudá-lo no início da prática clínica da psicoterapia psicanalítica, facilitando uma postura côncava como a mãe que o paciente busca com seu corpo. É fundamental a empatia, assim como o estado de vitalização do médico para responder-lhe com a fala rítmica, com o brilho do seu olhar, com o calor do seu cumprimento de mão e com a constância do setting. Sua angústia central é de desamparo.

 

CONCLUSÃO

Concluiu-se que esse paciente está em estado de insuficiência pelo retraimento buscado para sentir-se seguro e sereno, mas que o deixa despojado das aquisições cognitivas do sistema nervoso central. Esse fato explica seu comportamento de apego exagerado ao médico-assistente, visto e sentido por ele como vital para sua sobrevivência.

Quando ele não é assistido adequadamente, pela sua própria precariedade material e emocional, utiliza o último recurso que lhe resta: apelar para o próprio corpo como uma segunda mãe vivificante em busca da experiência sensorial que lhe faz sentir com vida.

O meio ambiente externo, geralmente, o rechaça pela sua insuficiência, inutilidade e repetitivas queixas, assim como o próprio paciente se rejeita pelo seu superego exigente que não o aceita com insuficiências.

O paciente poliqueixoso está realmente incapacitado para o exercício de suas atividades no mundo adulto, onde, além de ser mal compreendido, ele habitualmente antecede às outras pessoas as criticas a si mesmo pela insuficiência e inutilidade das quais tem consciência.

Compete ao médico valorizar suas queixas e suas fragilidades em busca da sua sobrevivência, fato que dignifica o atendimento médico.

Seria desejável que o médico-assistente lhe ministrasse os primeiros cuidados psicoterápicos para sensibilizá-lo para uma psicoterapia maior de base psicanalítica, que é o melhor tratamento para ele.

As terapias cognitivas ou comportamentais não estão indicadas porque esse paciente não está em condições de dominar sua vontade própria diante de seus sintomas, que têm natureza biológica reflexa. Seu entendimento cognitivo não é suficiente para lidar com sua insuficiência e esses tipos de psicoterapia podem acentuar o estado de estresse ao solicitar-lhe atividades que não consegue realizar.

Considera-se que o médico pode se preparar melhor para o atendimento a esse paciente, por meio do denominado Grupo Balint de aprendizado da valorização do elemento afetivo presente na relação médico-paciente. Recomenda-se, ainda, um curso teórico e, se possível, prático sobre o TEPT.

É crescente a freqüência desse paciente na clínica atual, pelo aumento da violência nos tempos atuais.

 

REFERÊNCIAS

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5. Kandel E. A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado. Rev Psiquiat Rio Grande do Sul 2003;25:139-65.

6. Sidarta R. Sonho, memória e o reencontro de Freud com o cérebro. Rev Bras Psiquiat 2003;25(Supl 2):59-63.

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13. Bernik M, Laranjeiras M, Corregiari F. Tratamento farmacológico do Transtorno do estresse pós-traumático. Rev Bras Psiquiat 2003;25(Supl 1):46-50.

14. Figueira I, Mendlowickz M. Diagnóstico do transtorno do estresse pós-traumático. Rev Bras Psiquiat 2003;25(Supl. 1):12-6.

15. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu; 1975.