RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 28 e-1967 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20180057

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Atualização Terapêutica

Indicação de oxigenioterapia hiperbárica como auxiliar na cicatrização de úlceras de membro inferiores

Indication of hyperbaric oxygen therapy as an aid in healing lower limb wounds

Ana Cristina Diniz Silva

Perícia médica, Tribunal de Justiça de Minas Gerais Department of Postgraduate Studies, University of South Wales, UK

Endereço para correspondência

Ana Cristina Diniz Silva
E-mail: anacristina@sernobre.com.br

Recebido em: 26/04/2018
Aprovado em: 26/01/2016

Instituiçao: Clínica Ser Nobre, Ipatinga, MG - Brasil

Resumo

Esse artigo refere-se a um caso de perícia médica solicitada por motivo de ação judicial movida por paciente do sexo masculino de 49 anos de idade contra o município de Ipatinga, MG. O periciando é sabidamente portador de Doença Mista do Tecido Conjuntivo e Síndrome de Anticorpo Antifosfolípide, tendo desenvolvido, como consequência dessa última patologia, úlcera venosa crônica em membro inferior, não cicatrizada mesmo após duas cirurgias de enxertia. O paciente requer perante o juízo, por indicação de sua médica reumatologista, que o município arque com o procedimento de oxigenioterapia hiperbárica, considerando-se sua eficácia potencial na cicatrização de feridas. Deixando as considerações jurídicas do caso à parte, como médica perita do banco de peritos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, depois de avaliar clinicamente o paciente, realizei revisão da literatura médico-científica no que diz respeito aos benefícios e indicações dessa forma de terapia para o mesmo. O objetivo desse artigo é descrever acerca desse procedimento médico, bem como esclarecer suas indicações e limitações, especialmente no que tange ao caso concreto apresentado.

Palavras-chave: Ulcera. Feridas. Cicatrização.Terapia hiperbárica.

 

INTRODUÇÃO

Trata-se de paciente do sexo masculino, 49 anos, com diagnóstico clínico-reumatológico de Doença Mista do Tecido Conjuntivo e Síndrome de Anticorpo Antifosfolípide desde 2009, essa última caracterizada por trombofilia adquirida auto-imune. A trombofilia, por definição, causa hipercoagulabilidade o que resultou, nesse paciente, em trombose venosa profunda de membro inferior esquerdo. A trombose, por sua vez, evoluiu com ferida ulcerada no mesmo membro, de caráter crônico, de difícil cicatrização. Com o fim de cicatrizar tal ferida, o paciente foi submetido a duas intervenções cirúrgicas com enxertia de pele sa no local, tendo sido tais procedimentos inefetivos.

Recentemente, além dessa ferida ulcerada antiga, com cerca de 5 anos, houve surgimento de úlcera nova, localizada abaixo da primeira, essa última mais profunda. Devido a sua profundidade, houve exposição de haste de platina previamente inserida no tornozelo do paciente, o que alarmou os médicos assistentes pelo risco de osteomilelite aguda (infecção bacteriana grave do osso). Há 2 semanas, o paciente foi submetido à cirurgia ortopédica para remoção da haste de platina, visando à redução do risco de osteomielite no local, o que resultou em mais uma ferida no local (ferida cirúrgica).

O exame médico do paciente, realizado no dia 19/04/16, foi registrado com fotografias (figura 1). Ao exame, observaram-se duas feridas ulceradas em membro inferior esquerdo, na altura do maléolo medial, bem próximas uma da outra. A úlcera superior tem aspecto crônico, antigo, medindo 3,5x2,5cm, rasa, limpa, sem sinais de formação de tecido cicatricial. A ferida inferior tem aspecto novo, sendo mais profunda que a primeira. Também não foram visualizados sinais de infecção ou de tecido cicatricial no local. Nota-se ponto de sutura único nessa segunda ferida, por motivo da cirurgia ortopédica descrita. O paciente encontra-se em uso de antibiótico preventivo desde o procedimento cirúrgico, analgésicos, além dos medicamentos de uso contínuo pelas doenças de base, incluindo anticoagulante e corticoide.

 


Figura 1: Lesões ulceradas em membro inferior esquerdo, secundárias à Sindrome de Anticorpo Antifosfolípide, a qual cursa com trombofilia, trombose venosa e dificuldade de cicatrização. A úlcera superior, maior, tem aspecto crônico (duração de 5 anos). A lesão inferior, de aparecimento recente, é mais profunda. Nessa última, o paciente foi submetido à cirurgia ortopédica para remoção de haste óssea de platina, a qual se encontrava exposta devido à profundidade da ferida.

 

O CASO CONCRETO

A ação número 313.14.024.151-1, em trâmite perante a Vara da Fazenda Pública da Comarca de Ipatinga, na qual o paciente é autor, trata da indicação médica e da necessidade da oxigenioterapia hiperbárica como única e última alternativa de cicatrização das feridas acima descritas. É importante ressaltar, que mais importante que o dano estético provocado pelas úlceras, a sintomatologia e os riscos relacionados à patologia tornam o tratamento das mesmas uma prioridade para o paciente. Ulceração crônica de membro inferior causa dor local intensa, limitações motoras no que se refere a pisar e caminhar, necessidade de curativos diários e risco de infecção bacteriana secundária que pode trazer sérios riscos à saúde e integridade física do paciente devido à profundidade da segunda ferida e ao uso contínuo de corticosteroide, o qual sabidamente reduz a imunidade do organismo e dificulta a cicatrização de feridas.

Em relação à oxigenioterapia hiperbárica (HBOT), há que se fazer uma revisão detalhada da literatura médico-científica acerca desse procedimento, bem como suas indicações e resultados. Para isso, foram selecionados estudos de meta-análise ou revisões sistemáticas recentes, por constituírem as evidências mais confiáveis, de acordo com a hierarquia de conhecimento médico-científico. Por definição, a HBOT consiste na administração de oxigênio pressurizado, na concentração de 100%, com a finalidade de melhorar/otimizar a cicatrização de feridas crônicas e refratárias a outros tipos de tratamento. Anteriormente controversa como forma de terapia adjuvante, atualmente novas evidências têm elucidado os reais mecanismos de ação da HBOT, os quais incluem o aumento da produção de fatores de crescimento no local e a indução da síntese e liberação de células-tronco a partir da medula óssea. Além disso, aumento da tensão de oxigênio no organismo, principalmente nos sítios de feridas crônicas, estimulam a produção de neutrófilos e de colágeno, mecanismos importantes na imunidade local e cicatrização1.

Segundo Goldstein1, existem 14 indicações clínicas bem definidas para a realização de HBOT, sendo a mais relevante a melhoria das condições de cicatrização de determinados tipos de feridas. Dentre todas as feridas ulceradas, o tipo mais comum em que a HBOT deva ser considerada é a úlcera diabética refratária. Em 2004, uma revisão Cochrane (junta médico-científica britânica de grande reputação e confiabilidade) revisou sistematicamente dados publicados sobre a eficácia da HBOT e, com base em 3 ensaios clínicos que englobaram 118 pacientes, concluiu-se que a HBOT reduz o risco de amputação em casos complicados de pé diabético com ulceração na razao de 30% (variação de 13 a 71%, intervalo de confiança = 95%)2. Em 2009, um estudo de meta-análise incluindo 7 ensaios clínicos conduzido por Goldman, concluiu que a HBOT reduz os riscos de amputação na razao de 24% (variação de 13,7 a 42,8%, intervalo de confiança = 95%) e aumenta as chances de cicatrização em 10 vezes (variação de 3,9 a 25 vezes, intervalo de confiança = 95%)3.

A revisão Cochrane foi atualizada em 2012, com a inclusão de novos estudos. A meta-análise de 2012 também revelou aumento das taxas de cicatrização de feridas em pacientes tratados com HBOT (3 ensaios clínicos, com 140 participantes). Entretanto, no que diz respeito ao risco de amputações, essa revisão, ao contrário da publicada em 2004, não demonstrou reduções estatisticamente significativas nas taxas de amputação de membros com o uso de HBOT, em um número total de 309 participantes4.

A atualização Cochrane de 2015 incluiu 12 ensaios clínicos, com 577 participantes. A maioria dos estudos analisados (10 dos 12) era sobre úlceras de pé em pacientes diabéticos. Nesses casos, a meta-análise demonstrou que a HBOT aumenta as chances de cicatrização no curto-prazo, até 6 semanas, mas não após esse período. Além disso, de acordo com as evidências, HBOT reduz as taxas de amputação nos casos de complicações de pé diabético5.

As úlceras causadas por Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide são secundárias a trombose venosa profunda e, portanto, denominadas úlceras venosas ou úlceras de estase. Apesar de se associaram a baixas taxas de mortalidade, as úlceras de estase resultam em perda acentuada da qualidade de vida devido ao desconforto, às taxas de recidiva e ao longo curso evolutivo. Dados epidemiológicos demonstram que essas úlceras apresentam mau prognóstico em termos de morbidade: 50% cicatrizam em quatro meses6, 20% em dois anos7, e 8% em cinco anos8. Os índices de recidiva anual variam de 6 a 15%9.

HBOT não melhora o prognóstico das úlceras de estase, de acordo com a revisão sistemática da Cochrane de 2015. Em úlceras de estase, HBOT pode reduzir a área das lesões, porém tal benefício não se sustenta a médio e longo prazos5. Dessa forma, de acordo com as evidências robustas e atuais, HBOT não tem indicação no tratamento de úlceras de estase, ficando seu uso restrito a casos mais graves com acometimento de tecidos profundos ou exposição óssea.

 

CONCLUSÃO

Apesar de ter sido assunto controverso há algum tempo atrás, no que se referia à comprovação de eficácia da oxigenioterapia hiperbárica, hoje em dia há evidências substanciais quanto ao seu uso, indicações e resultados. Esse artigo trata de uma perícia médica realizada em paciente com diagnóstico de úlcera venosa crônica em membro inferior, decorrente de doença auto-imune que cursa com trombofilia e riscos aumentados de trombose. Após ter sido submetido a vários tratamentos clínicos e cirúrgicos visando à cicatrização das feridas, as doenças de base, bem como o uso de medicamentos anti-coagulantes, anti-inflamatórios e imunossupressores impediram os resultados positivos esperados. Como última opção de tratamento, o paciente entrou com ação judicial contra o município de Ipatinga para que o mesmo arque com 60 sessões de oxigenioterapia hiperbárica.

Como médica perita, depois de avaliar clinicamente o paciente, realizei revisão da literatura médico-científica no que diz respeito aos benefícios e indicações dessa forma de terapia para o mesmo. As evidências demonstram alguns benefícios da HBOT nas úlceras diabéticas, porém, no caso das úlceras de estase, a redução do tamanho das lesões não é sustentável ao longo do tempo. Em outras palavras, não há nenhuma comprovação contundente de que a oxigenioterapia hiperbárica modifique ou melhore o prognóstico das úlceras de etiologia venosa. Conclui-se que o custo é muito alto para um benefício pequeno e de curta duração, uma vez que a doença de base apresenta prognóstico ruim em termos de cicatrização e de recidiva.

 

REFERENCIAS

1. Goldstein L. Hyperbaric oxygen for chronic wounds. Dermatologic Therapy. 2013;26(3):207-214.

2. Kranke P, Bennett M, Roeckl-Wiedmann I & Debus S. Hyperbaric oxygen therapy for chronic wounds. Cochrane Database Syst Rev. 2004;2(2).

3. Goldman R. Hyperbaric Oxygen Therapy for Wound Healing and Limb Salvage: A Systematic Review. PM&R. 2009;1(5):471-489.

4. Kranke P, Bennett MH, Martyn-St James M, Schnabel A & Debus SE. Hyperbaric oxygen therapy for chronic wounds. Cochrane Database Syst Rev. 2012;4.

5. Kranke P, Bennett MH, Martyn-St James M, Schnabel A & Debus SE. Hyperbaric oxygen therapy for chronic wounds. Cochrane Database Syst Rev. 2015;6.

6. Skene AI, Smith JM, Dore CJ, Charlett A & Lewis JD. Venous leg ulcer: a prognostic index to predict time to healing. B M J. 1992;305:1119-21.

7. Callum, MJ, Harper DR & Dale JJ. Chronic ulcer of the leg: clinical history. Br Med J. 1987;294:1389-91.

8. Mayberry, JC, Moneta GL, De Frang RD & Porter JM. The influence of elastic compression stockings on deep venous haemodynamics. J Vasc Surg. 1991;13: 91-100.

9. Dinn E & Henry M. Treatment of venous ulceration by injection sclerotherapy and compression hosiery: a 5 year study. Phlebology. 1992;7: 23-6.