ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Tricobezoar gástrico: relato de um caso
Gastric trichobezoar: case report
Eurides Maria Maia Atallah Haun de Barros1; Antônio Prates Caldeira2; Cláudio Henrique Rebelo Gomes3; Antônio Sérgio Barcala Jorge4
1. Médica; Especialista em Saúde da Família
2. Médico; Pediatra; Doutor em Pediatria; Professor Adjunto do Departamento de Saúde da Mulher e da Criança da Faculdade de Medicina da UNIMONTES
3. Médico; Cirurgião Geral; Professor Assistente do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UNIMONTES
4. Médico; Cirurgião Geral; Mestre em Cirurgia; Professor Assistente do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UNIMONTES
Antônio Prates Caldeira
Rua Monte Pascoal, 225 - Ibituruna
Montes Claros (MG) - CEP: 39401-347
antonio.caldeira@unimontes.br l
Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES
Resumo
Os bezoares resultam da ingestão de materiais inorgânicos ou orgânicos não digeríveis que formam uma massa em trato gastrintestinal, normalmente no estômago. Os tricobezoares são formados a partir da ingestão de cabelos. São geralmente encontrados em adolescentes do sexo feminino, especialmente com depressão ou retardo mental. A remoção é obrigatória pelo risco de complicações potencialmente fatais. Este trabalho apresenta o caso de um grande tricobezoar gástrico em uma jovem de 14 anos. A paciente foi submetida à laparotomia, durante a qual uma sólida massa de cabelos foi completamente retirada por gastrotomia anterior. O período pós-operatório foi sem intercorrências e com o acompanhamento psiquiátrico adequado.
Palavras-chave: Bezoares; Tricobezoares; Dor Abdominal.
INTRODUÇÃO
O termo bezoar é utilizado para designar o acúmulo de algumas substâncias ingeridas e não digeridas no estômago ou no intestino. Embora não seja de ocorrência freqüente, representa causa importante de dor abdominal. Quando não diagnosticado, pode resultar em complicações graves, com taxa de mortalidade de até 30%1. Os bezoares são classificados segundo o material que os formam. Os principais são os fitobezoares, os tricobezoares, os litobezoares e os lactobezoares. O tricobezoar é resultante da ingestão de cabelo humano, cabelos de bonecas, pêlos de animais ou fibras de tapetes, sendo o tipo mais comum na faixa etária pediátrico com cerca de 90% dos casos ocorrendo em crianças e adolescentes do sexo feminino2. O surgimento de tricobezoar está muitas vezes associado a transtornos psicológicos, como a tricotilomania, um impulso incontrolado de arrancar-se o próprio cabelo e a tricofagia3. Também tem sido associado a retardo mental, enurese, pica, transtornos de personalidade, onicofagia, sucção do polegar e transtornos depressivos3,4.
O diagnóstico de tricobezoar nem sempre é fácil.5 A rarefação capilar pode não ser significativa. Freqüentemente, o paciente omite a tricofagia. Na verdade, o relato de tricotilomania e tricofagia é obtido em menos de 50% dos casos2. Quadros de obstrução total ou parcial, acompanhados de dor epigátrica, especialmente se associados a episódios de vômitos com a presença de cabelos e secreção fecalóide são bastante sugestivos6. Outras manifestações que podem estar associadas são hiporrexia, saciedade precoce, perda de peso, hematêmese, diarréia ou constipação intestinal4,6. O exame físico evidencia em até 70% dos casos a presença de massa móvel em região epigástrica, além de áreas de alopécia4.
O objetivo deste trabalho é o de apresentar o caso clínico de volumoso tricobezoar gástrico identificado em unidade do Programa de Saúde da Família e reforçar a importância de incluir tal entidade no diagnóstico diferencial das dores abdominais, mesmo para unidades de cuidado primário.
DESCRIÇÃO DO CASO
Trata-se de KNF, sexo feminino, 14 anos, com relato de dor abdominal intermitente, de forte intensidade, em cólica acompanhada de náuseas e vômitos ocasionais de conteúdo alimentar e bilioso. A paciente referia início dos sintomas há cerca de nove meses, com internação em sua fase inicial por seis dias, quando recebeu o diagnóstico de pancreatite. Havia relato de perda de peso de aproximadamente cinco quilos desde o início dos sintomas. A família também notificou queda de cabelo, observada nos últimos meses, fato que a paciente não relatou em sua entrevista. O contexto social destacava pais separados desde o nascimento e relacionamento ruim com o pai. A adolescente convivia com a tia e outros familiares desde o nascimento, pois a mãe apresentava doença crônica incapacitante e falecera há seis meses, cerca de três meses após a referida internação.
Ao exame físico, apresentava-se emagrecida, com ligeira palidez mucosa. Os sinais vitais mostravam-se estáveis. No couro cabeludo havia área de rarefação capilar em região biparietal. Esse sinal foi apontado pela família, pois a paciente procurava ocultar a área de alopécia com mudanças no penteado. O abdome, plano e normotenso, evidenciava, à palpação, massa localizada em hipocôndrio esquerdo, que se estendia até a cicatriz umbilical e apresentava superfície e contorno regulares, consistência firme e indolor.
A propedêutica realizada não mostrou alterações significativas nos exames bioquímicos e hematológicos, exceto por discreto aumento da amilase sérica: 150 U/dl (VR= até 120 U/dl). A tomografia computadorizada mostrava acentuada distensão gástrica, com conteúdo heterogêneo, delimitado por halo de contraste oral preenchendo totalmente e emoldurando a cavidade gástrica. A tomografia, foi realizada com contraste oral radiopaco, o que permitiu identificar, além do aumento de volume, falhas de enchimento do estômago e aparente hipotonia com deformidade bulbar (Figura 1). A endoscopia digestiva alta evidenciou conteúdo gástrico ocupado quase completamente por uma massa disforme, tubular, constituída de enovelado de fios de cabelo.
Após avaliação pré-operatória de rotina, a paciente foi submetida à intervenção cirúrgica. Foi realizada laparotomia com acesso mediano supra-umbilical, gastrotomia de aproximadamente 10 cm em parede anterior, paralela à grande curvatura (Figura 2). Seguiu-se extração de volumoso corpo estranho, constituído por massa densa de enovelado de fios de cabelos, que moldava todo o fundo, o corpo e o antro gástrico (Figura 3). Foi feito fechamento em dois planos, com pontos separados. A dieta foi retomada 24 horas após a intervenção, com boa tolerância. A paciente evoluiu bem, sem intercorrências e recebeu alta hospitalar após 48 horas. No ambulatório, foi encaminhada para o serviço de saúde mental.
DISCUSSÃO
Originados principalmente da ingestão de cabelos, os tricobezoares geralmente se formam de modo lento e gradual e preferencialmente no estômago. Ocasionalmente se estendem até as porções iniciais do intestino delgado, originando um quadro descrito pela primeira vez em 1968 como "síndrome de Rapunzel"7. Acredita-se que o muco gástrico tenha papel importante no processo de desnaturação protéica dos cabelos, conferindo-lhes cor escura, independentemente da sua tonalidade original e facilitando a sua aderência à parede do estômago. Uma vez ingeridos e parcialmente retidos nas paredes da mucosa gástrica, os fios de cabelos evoluem para um processo de entrelaçamento que facilita a retenção de alimentos e aumentam mais ainda o volume da massa intragástrica5. Alguns autores sugerem que a tricofagia isoladamente não seria suficiente para desencadear quadro clínico com intensa sintomatologia e apontam que outros fatores poderiam estar envolvidos, tais como o comprimento dos fios de cabelos ingeridos, a quantidade, redução do peristaltismo, alterações próprias da mucosa gástrica e a quantidade de gorduras na dieta2.
Na apresentação clínica do tricobezoar, a intensidade dos sintomas está associada ao volume do bezoar, à elasticidade do estômago e ao surgimento de complicações5. As queixas mais freqüentemente descritas pela literatura são: dor abdominal, náuseas, vômitos e perda de peso4. O exame clínico identifica quase sempre massa abdominal endurecida e área de alopécia mais ou menos extensa3,5.
Todavia, o histórico clínico do tricobezoar nem sempre é característico. Ocasionalmente, o diagnóstico exige habilidade do profissional e alto grau de suspeição. O caso apresentado destaca a importância de se incluírem os bezoares entre os diagnósticos diferenciais de dor abdominal, particularmente em crianças e adolescentes do sexo feminino, inseridas em um contexto sociofamilar facilitador de conflitos psicológicos. Na história clínica da paciente havia relato de internação na fase inicial dos sintomas de dor cerca de nove meses antes do diagnóstico de tricobezoar. Os autores tiveram acesso ao prontuário e à propedêutica realizada na ocasião. À internação, ela apresentava dor abdominal de forte intensidade e vômitos e o exame clínico descrito revelava palidez e desidratação, com abdome tenso. Não havia descrição de massas palpáveis.
A propedêutica laboratorial realizada durante a internação mostrava níveis séricos de amilase bastante elevados (500 UI/dl) e a tomografia de abdome mostrava "discreta hepatoesplenomegalia" e "discreto aumento do volume do pâncreas". Não foi identificada distensão gástrica ou qualquer imagem sugestiva de bezoar no exame tomográfico. É difícil definir se a paciente apresentava-se ou não, na ocasião da internação hospitalar, em uma fase inicial de formação do tricobezoar. Nos estágios iniciais os sintomas não permitem diagnóstico de forma fácil (nem pela clínica, nem pelos exames realizados). É possível, inclusive, que, em fase de formação do tricobezoar, fragmentos de cabelos tenham desencadeado a pancreatite.
Essa situação não é inédita. Shawis et al. (1984) descreveram um caso de pancreatite associada a tricobezoar gástrico em uma menina paquistanesa8. Atribuíram o fato à irritação e obstrução da ampola de Vater pela cauda do tricobezoar. Também é possível que ela tenha desenvolvido o evento após o episódio de internação, quando sofreu a perda da mãe. Realmente, os familiares somente observaram a "queda de cabelo" a partir dessa ocorrência e a tricotilomania e tricofagia, embora possam estar presentes em adolescentes sem distúrbios mentais, estão geralmente associadas a problemas psicológicos3.
A literatura disponível não apresenta com precisão o tempo de formação dos bezoares. Kanetaka et al. (2003) descrevem o caso de um adolescente de 11 anos cuja mãe somente percebera a tricofagia nos últimos quatro meses antecedentes ao diagnóstico e que não apresentava massa abdominal palpável, mas que a propedêutica revelou tratar-se de um volumoso tricobezoar9. Spadella et al.6 referenciam um caso cuja queixa de dor abdominal tinha duração de dois meses apenas e há descrições de tricobezoares volumosos em crianças de apenas três anos de idade10.
O presente caso foi identificado em uma Unidade Básica do Programa de Saúde da Família. Os autores acreditam que a descrição permitirá a outros profissionais que trabalham com cuidados primários a possibilidade de diagnóstico precoce para situações semelhantes, especialmente porque, após o surgimento das complicações, a morbimortalidade aumenta consideravelmente para a afecção. Salienta-se, ainda, a necessidade de atendimento continuado ao paciente, em particular por um profissional da área da saúde mental, de modo a realizar um atendimento efetivamente integral, evitando-se possíveis recidivas.
REFERÊNCIAS
1. Williams RS. The fascinating history of bezoars. Aust Med L 1986;145:613-4.
2. Lee J. Bezoars and foreign bodies of the stomach. Gastrointest Endosc 1996;6:605-19.
3. Velasco-Sanches B, Paredes-Estean RM.Tricobezoar: un problema psicológico. An Esp Pediar 2001;55:383-4.
4. Bollini R, Curci V, Perdoni M, Marti C, Dominguez R, Otero L et al. Bezoares. Experiencia em 10 años. Rev Cir Infant 2001;11:217-21.
5. Parrili JC, Gómez TA, Rincón N, Berrios C. Tricobezoar: Diagnóstico Inusual. Reporte de 3 casos. GEN 1995;49:157-60.
6. Spadella CT, Saad-Hossne R, Saad LHC. Tricobezoar gástrico: relato de caso e revisão da literatura. Acta Cir Bras 1998;13:110-5.
7. Vaughan ED, Sawyers JL, Scott, HW. The Rapunzel syndrome.An unusual complication of intestinal bezoar. Surgery 1968;63:339-43.
8. Shawis RN, Doig CM. Gastric trichobezoar associated with transient pancreatitis. Arch Dis Child 1984 Oct;59(10):994-5.
9. Kanetaka K, Azuma T, Ito S, Matsuo S, Yamaguchi S, Shirono K, et al. Two-channel method for Retrieval of Gastric Trichobezoar: Report of a case. J Pediatr Surg 2003; 38:E7.
10. Aguilar-Arauz M, Rodríguez-Gutiérrez F, Hernández-Mena C. Síndrome de Rapunzel. Reporte de un caso. Acta Méd Costarric 2003;45:80-3.
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