RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 28. (Suppl.5) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20180116

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Artigo Original

Conhecimento e atitude dos enfermeiros frente ao processo de doação de órgaos

Knowledge And Attitude Of Nurses Against The Organ Donation Process

Maria de Fátima da Silva Castro1; Renata Lacerda Prata Rocha2; Lorena Pereira Fialho3; Patrick Anderson Teixeira da Silva4; Rosana Silva Pereira Oliveira5; Maria de Lourdes Costa6

1. Enfermeira. Professora do Centro universitário UNA. Belo Horizonte, MG- Brasil
2. Enfermeira. Professora do Centro universitário UNA. Belo Horizonte, MG- Brasil
3. Acadêmica de Enfermagem do Centro Universitário UNA. Belo Horizonte, MG- Brasil
4. Acadêmico de Enfermagem do Centro Universitário UNA. Belo Horizonte, MG- Brasil
5. Acadêmica de Enfermagem do Centro Universitário UNA. Belo Horizonte, MG- Brasil
6. Acadêmica de Enfermagem do Centro Universitário UNA. Belo Horizonte, MG- Brasil

Endereço para correspondência

Maria de Fátima da Silva Castro
Centro universitário UNA. Belo Horizonte, MG - Brasil
E-mail: castrofatima33@gmail.com

Resumo

INTRODUÇÃO: o transplante de órgaos muitas vezes é a única alternativa para alguns pacientes. Porém, há uma grande desproporção entre o ritmo de crescimento da lista de espera e o número de transplantes realizados. Nesse cenário, é de suma importância o conhecimento e a atitude do enfermeiro diante do paciente em morte encefálica (ME) e potencial doador de órgaos (PD).
OBJETIVO: identificar qual é o conhecimento e a atitude do enfermeiro frente ao paciente em ME com potencial para doação de órgaos.
MATERIAIS E MÉTODOS: trata-se de um estudo de campo de caráter descritivo, de abordagem quali-quantitativa, tendo como participantes os enfermeiros de uma UTI de um hospital público na regiao leste de Belo Horizonte. Os dados foram obtidos por meio de questionário semiestruturado, após cumprimento dos protocolos relacionados à pesquisa com seres humanos. Os dados foram transcritos e submetidos à análise de conteúdo temático, conforme proposto por Bardin.
RESULTADOS: os enfermeiros expressam uma variação de sentimentos, tais como tristeza pela morte de um paciente e alegria pela doação de órgaos que salvarao outras vidas. Entretanto, eles se sentem despreparados para lidar com o sofrimento familiar e isso é um empecilho que dificulta a relação entre eles. Além disso, há lacunas na assistência, as quais perpassam inclusive pelo nível de conhecimento dos profissionais da UTI.
CONCLUSÃO: o estudo identificou uma variação de sentimentos que impactam nas atitudes dos profissionais frente aos pacientes em ME, além de dificuldades relacionadas ao conhecimento sobre os protocolos básicos a serem cumpridos, tais como os níveis pressóricos e glicêmicos que devem ser mantidos.

Palavras-chave: Doação de órgaos; Transplante de órgaos; Enfermagem e transplante; Morte encefálica.

 

INTRODUÇÃO

A morte encefálica (ME) consiste na perda da função total e irreversível do encéfalo (cérebro e tronco encefálico) que gera modificações na fisiologia do organismo. Esse fato ocorre devido a alterações no centro vasomotor e pela insuficiência de hormônios como, por exemplo, o antidiurético, devido à falência do hipotálamo e a diminuição de catecolaminas, que causa vasodilatação e diminuição da resistência vascular periférica.1

No Brasil, as causas mais rotineiras de ME são os traumatismos crânio encefálico o acidente vascular encefálico, que juntos resultam em quase 90% dos casos. As outras causas identificadas são os tumores cerebrais, infecções do sistema nervoso central e anóxia pós-parada cardiovascular.2

O diagnóstico de ME é determinado inicialmente pela observação dos parâmetros clínicos estabelecidos e posteriormente pela realização de exames complementares, que comprovam o coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra espinal e apneia.3 Quando diagnosticada em tempo hábil, a ME possibilita a captação de órgaos, favorecendo o transplante, que se configura em uma única alternativa terapêutica, frente a diversas doenças que causam insuficiência ou falência de órgaos ou tecidos, tais como a insuficiência renal ou cardíaca, por exemplo.4

Neste contexto, um único potencial doador de órgaos em boas condições pode beneficiar mais de 10 pacientes através de transplantes de diversos órgaos e tecidos. No entanto, no Brasil há uma desproporção entre o ritmo de crescimento da demanda por órgaos para transplante e o número de transplantes que são realizados efetivamente.1

Essa desproporção é resultado de várias inconformidades no decorrer do processo de doação de órgaos. Só no ano de 2013 foi registrado 8.871 casos de potenciais doadores de órgaos, mas apenas 2.526 destes tornaram doadores efetivos. Essa grande perda é causada por motivos tais como a ocorrência de falhas no reconhecimento da ME; complicações técnicas causadas por falta de preparo da equipe e ausência de estrutura física para realização do diagnóstico de ME; subnotificação das ME pela equipe de saúde nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI); não autorização dos familiares do potencial doador de órgaos para a retirada de órgaos e perdas do potencial doador de órgaos causadas por falhas da equipe em manter a estabilidade hemodinâmica.4

O enfermeiro, neste contexto, é uma das peçaschave, visto que cabe a ele, além da prestação de serviços assistenciais, o gerenciamento da equipe para qualificação do atendimento ao paciente e aos seus familiares. Sendo assim, é esperado que ele tenha conhecimento científico e formação adequada, não somente para repassar informações aos familiares, mas também para participar na identificação de um possível doador e, em seguida, efetivar as ações a fim de se evitar as reações deletérias da fisiopatologia própria da ME.5

Ocorre que a assistência de enfermagem ao paciente em ME e potencial doador de órgaos e tecidos, muitas vezes ainda está vinculada ao modelo biomédico, que vê apenas um ser morto sem expectativa de vida e que, dessa forma, não necessita mais de cuidados intensivos.5

Frente a esse contexto, este estudo visa esclarecer à seguinte questao: qual é o conhecimento e a atitude do enfermeiro frente ao paciente em morte encefálica com potencial para doação de órgaos?

Esse estudo tem como objetivo principal, identificar qual é o conhecimento e a atitude do enfermeiro frente ao paciente em morte encefálica com potencial para doação de órgaos, e é de extrema relevância, tendo em vista a obtenção de esclarecimento principalmente para as questoes que requerem melhores ações para ampliar o número de transplantes no Brasil. Os resultados alcançados a partir do cenário traçado poderao contribuir de forma mais apropriada para o incremento da doação de órgaos.

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de campo de caráter descritivo, de abordagem quali-quantitativa, a respeito do conhecimento e atitude dos enfermeiros frente ao processo de doação de órgaos.

Para coleta de dados, foi elaborado um questionário semiestruturado, contendo questoes fechadas e abertas, a fim de possibilitar o levantamento de opinioes e atitudes dos entrevistados.

O estudo foi realizado na Unidade de Terapia intensiva (UTI) do hospital Joao XXIII referência no atendimento a pacientes vítimas de poli traumatismos, grandes queimaduras, intoxicações e situações clínicas e/ou cirúrgicas que acarretam risco de morte, localizado na regiao leste da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais.

Os sujeitos do estudo foram os profissionais enfermeiros da Unidade de Terapia Intensiva, que atuam nos horários noturno e diurno. Além de atividades assistenciais prestadas diretamente aos pacientes críticos, eles são responsáveis pelo gerenciamento dos profissionais de nível técnico, que são os auxiliares e técnicos de enfermagem.

Foram incluídos ao estudo enfermeiros efetivos e contratados pela instituição, com mais de um ano de experiência no setor e que se dispuseram a participar livremente da pesquisa.

Foram excluídos todos os profissionais que faltaram e que não estavam presentes nos dias em que foram aplicados os questionários, por estarem de férias ou de folga. Além disso, foram excluídos aqueles que tinham menos de um ano de experiência profissional ou que eram acadêmicos de enfermagem e enfermeiros residentes ou ainda que haviam sido contratados pelo regime de Registro de Pagamento Autônomo (RPA).

Assim, tendo em vista que na abordagem quantitativa quanto maior a amostra, mais significativo é o resultado, esse estudo optou por entrevistar 100% da população, ou seja, 35 enfermeiros que trabalham na UTI. Porém, desse total, cinco profissionais se recusaram a participar da pesquisa.

Após a autorização dada pela diretoria do hospital para coleta de dados, foi acordado com a gerência da UTI os melhores dias e horários para a aplicação dos questionários. Após essas definições, foi acordado um horário e a melhor data com cada um dos enfermeiros, de acordo com disponibilidade de tempo deles para a aplicação do questionário.

O questionário elaborado foi dividido em quatro sessões. A primeira refere-se às características do grupo. A segunda, apenas com questoes abertas, objetivou o levantamento e interpretação de opinioes, atitudes e descrição das atividades desenvolvidas pelo entrevistado. Na terceira seção, foram descritos conceitos e procedimentos sobre a morte encefálica e a declaração da ME e a última correspondeu às atitudes que deverao ser realizadas durante o processo de manutenção do potencial doador de órgaos e tecidos.

Este estudo é permeável a todos as recomendações da lei 510 de 2016. Todos os indivíduos que aceitaram participar da pesquisa assinaram o Termo e Consentimento Livre e Esclarecido e tiveram sua identificação e privacidade respeitadas. Neste sentido, os questionários foram identificados apenas numericamente, de acordo com a ordem sequencial em que foram respondidos. Este projeto obteve aprovação no Comitê de Ética e Pesquisa da Plataforma Brasil sob o parecer 2.632.784.

O processo de análise dos dados das questoes fechadas foi feito por meio da tabulação dos dados e cálculo estatísticos simples.6 Para a interpretação qualitativa, foi utilizado a análise de conteúdo (AC), conforme proposto por Bardin (2011). Esse método consiste na compreensão do conteúdo expresso do texto desenvolvido pelo entrevistado, partindo de 3 etapas, sendo elas 1) préanálise, 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação.8

 

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Delineamento do perfil dos entrevistados

A apuração dos dados permitiu o delineamento do perfil dos enfermeiros da UTI. Inicialmente, cabe ressaltar que 80% dos respondentes são do sexo feminino, conforme mostrado na Tabela 01. Esse percentual elevado de enfermeiras reflete de fato o que ocorre na profissão de enfermagem, que historicamente, se configura numa profissão composta, em sua maioria, por mulheres. De acordo com Souza et al. (2014), desde tempos remotos as práticas de enfermagem, voltada aos cuidados de enfermos está relacionada ao gênero feminino.9

 

 

Além disso, a tabela 01 mostra que a faixa etária entre 23 a 35 anos é a mais prevalente (40%). Segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), em 2013 haviam 42.498 enfermeiros em Minas Gerais, sendo que deste total, 62,7% eram pessoas da faixa etária entre 25 a 35 anos.10

De acordo com Camelo et al. (2013), o tempo de formação sugere o tempo de experiência do enfermeiro no mercado de trabalho, tendo em visto a proporcionalidade dos dados.11 Sendo assim, conforme mostrado na tabela 02, os enfermeiros da UTI possuem maturidade profissional, pois há predominância dos profissionais com tempo de formação entre 9 e 16 anos (60%) e 4 a 7 anos (46,7%) de experiência na assistência ao cuidado intensivo.

 

 

O estudo evidenciou que 87% dos profissionais possuem pós-graduação. Viana et al (2014), relata que os enfermeiros que trabalham em setor de cuidados intensivos necessitam possuir habilidades para lidar com situações complexas, com velocidade e precisão.12 Por essa perspectiva, o autor afirma que progressivamente o enfermeiro vem se especializando.

Conhecimento dos enfermeiros sobre o protocolo de ME e manutenção do PO

Os dados referentes ao conhecimento dos enfermeiros sobre o protocolo de morte encefálica e manutenção do potencial doador de órgaos estao descritos nas tabelas 3 e 4.

 

 

 

 

Conforme mostrado, 60% dos profissionais entrevistados possuem conhecimento sobre o intervalo mínimo de tempo entre os dois exames neurológicos, que não pode ser inferior a 6 horas. Este período de tempo é determinado para pacientes acima de dois anos e a UTI, cenário desse estudo, atende apenas pacientes adultos.2

Em relação à comunicação com a família, apenas 53% dos entrevistados demonstram conhecimento. O protocolo pode ser iniciado a qualquer momento, até mesmo antes da família ser comunicada e imediatamente após se suspeitar de morte encefálica.2

Além disso, a tabela 4 mostra o conhecimento dos profissionais em relação à manutenção que deve ser prestada ao potencial doador de órgaos.

Apenas 40% dos entrevistados possui conhecimento das contraindicações absolutas para doação de órgaos e tecidos. Westphal, et al (2016), afirmam que são poucas as situações que contraindicam a doação de órgaos e tecidos. Dentre essas condições, estao, tumores malignos, sorologia positiva para HIV ou para HTLV I e II, sepse ativa e não controlada e a tuberculose ativa.2

Conforme mostrado, 97% dos enfermeiros conhecem quais são as atitudes essenciais para a manutenção do potencial doador, que se configuram em manter as funções orgânicas, corrigir disfunções e agilizar a retirada de órgaos para o transplante a partir do diagnóstico de ME.

Porém, quando foram abordados especificamente sobre quais deveriam ser esses cuidados, eles fizeram muitos erros. Por exemplo, não souberam informar corretamente sobre a dose das drogas vasoativas e inotrópicas, sobre os limites de temperatura corporal e como deve ser realizado o aquecimento do PD, além da forma como deve ser realizado o suporte nutricional e monitorização glicêmica.1

Quando questionados a respeito de como deve ser feito a monitorização dos níveis pressóricos, 100% dos profissionais entrevistados mostraram conhecimento acerca do assunto. Os pacientes em morte encefálica devem ser monitorados por meios invasivos para se ter dados pressóricos contínuos, o mais fidedignos possível.13 Entretanto, apenas 43% dos enfermeiros mostraram que possui conhecimento e quase 57% deles não sabem que a pressão arterial média (PAM) deve ser superior a 65 mmHg ou que a pressão arterial sistólica deve ser de 90 mmHg.13

Também há um déficit de conhecimento, conforme mostrado na Tabela 4, a respeito dos cuidados com a temperatura corporal. Do total de entrevistados, apenas 13% souberam quais são os limites da temperatura corporal do PD e como deve ser realizado o aquecimento do paciente. De acordo com Costa (2016), é recomendado que a temperatura deve ser aferida periodicamente pela boca, axila e ânus. Para realizar o aquecimento do PD deve ser administrado por via venosa soluções aquecidas (37º - 38ºC) e colocado mantas no corpo, bem como também deve ser mantido aquecido o ambiente e os gazes ventilatórios a fim de manter a temperatura corporal entre 36 e 37,6 graus.14

Ainda conforme mostrado na tabela 4, há lacunas no conhecimento a respeito da nutrição visto que, apenas 27% dos enfermeiros compreende que o PD deve receber nutrição enteral ou parenteral. Além disso, somente 40% sabe que a monitorização da glicemia deve ser feita de 6 em 6 horas ou continuamente, quando se inicia infusão de insulina.2

Sentimentos despertados frente ao paciente em ME e potencial doador de órgaos

Foram identificadas respostas que expressam uma variação de sentimentos, tais como tristeza pela perda e alegria pela doação. Os entrevistados relatam sofrer pelo processo de perda de um ser humano, mas se sentem esperançosos e felizes para a doação de órgaos.

"Sentimento fica em conflito, tristeza pela morte, mas fico feliz em saber da possibilidade de ter outras vidas salvas" (ENTREVISTADO 4).

"Sentimento dúbio de tristeza pela causa da morte, mas de alegria e esperança pela possibilidade de doação de órgaos para outro paciente" (ENTREVISTADO 26).

Conforme mostrado nas falas dos entrevistados, o sofrimento dos enfermeiros parece ser minimizado pela possibilidade da doação dos órgaos. O processo de luto provoca um sentimento de perda e ao mesmo tempo a doação proporciona um sentimento de conforto, pois apesar de sentir que a vida está se esvaindo, os órgaos daquele que parte ficará e poderá salvar outras vidas. Isso faz com que nasça um sentimento de esperança que passa a ser um mecanismo de defesa que os auxiliam no enfrentamento do luto.15

A ME ainda traz sentimentos desagradáveis para os enfermeiros que lidam com o PD.

"Tristeza, angústia..." (ENTREVISTADO 18).

"Perda, tristeza e luto" (ENTREVISTADO 30).

Os profissionais sentem uma diversidade de sentimentos diante da morte. Alguns podem ser caracterizados como sendo negativos, de perda, tristeza e angústia. Isso se dá pela percepção de que a eles compete somente salvar vidas. No entanto, quando se deparam com a perda, eles se sentem culpados, tornando visível o incômodo diante da impotência de não ter domínio e que seus esforços sempre serao limitados diante da morte.16

Quando questionados em relação à idade do paciente em morte encefálica, descrevem sentimento de tristeza frente à perda de um jovem, por este estar em sua plenitude de vida e a morte, nestes casos, é uma barreira que interrompe a realização de seus sonhos.

"...a maioria dos pacientes nesta situação em ME são jovens que poderiam estar na plenitude da vida pessoal e profissional" (ENTREVISTADO 1).

"Principalmente em doadores jovens, fica aquele sentimento de juventude não vivida e das oportunidades que aquele jovem perdeu" (ENTREVISTADO 10).

Essa dificuldade em lidar com a morte de pacientes jovens se justifica pelo fato de não ser essa a ordem cronológica da vida. Esses profissionais acreditam que os pacientes jovens em ME ainda teriam muitos sonhos a serem realizados e um futuro promissor que é interrompido de forma abrupta pela morte.17

O sentimento de imparcialidade também foi identificado em alguns relatos. Isso pode demonstrar frieza diante da morte, ou apenas estar ligado ao fato do profissional não poder expressar o seu real sentimento diante de uma perda.

"Sim, independentemente da idade, um paciente em ME é impactante, mas procuro não me envolver emocionalmente com a questao" (ENTREVISTADO 7).

"A morte é um processo natural e apenas uma parte do ciclo" (ENTREVISTADO 19).

Lima et al (2016) relatam que a frieza e imparcialidade frente à morte é apenas um mecanismo de defesa.18 Como a perda gera sofrimento, a negação é uma tentativa de colocar a morte em um lugar de exclusão e silêncio. A utilização deste mecanismo faz com que o profissional utilize de uma armadura que o protege de sofrer, por um lado, mas, por outro, o leva a ter atitudes insensíveis e frias.18

Postura profissional

A segunda categoria busca mostrar a postura profissional, os sentimentos e as dificuldades do enfermeiro para lidar com a família do doador. Os relatos mostram que os enfermeiros demonstram ter uma postura profissional diante da constatação da ME. Eles afirmam que o cuidado prestado deve ser o mesmo que vinha sendo prestado, antes do diagnóstico de morte encefálica.

"...Estamos acostumadas a pacientes em todas as idades; deve-se focar nos cuidados destes pacientes independentemente da idade" (ENTREVISTADO 2)

"O paciente deve ser conduzido como qualquer outro paciente da UTI, com dedicação e empenho" (ENTREVISTADO 17).

Os relatos, num primeiro momento, evidenciam uma postura profissional e apropriada frente ao paciente em morte encefálica. Mas, há uma discordância entre o que é dito com o que é feito de fato. A postura profissional é descrita por alguns autores, como sendo uma armadura ou um meio de defesa, isso com o objetivo de sufocar a esperança comum ao ser humano em nome do profissionalismo que ao analisar o diagnóstico desfavorável destes pacientes eles se preparam para a morte abandonando o sentimento de esperança na melhora do quadro.19

Nesta categoria, 13 profissionais disseram estar preparados e outros 17 restantes afirmaram que não se sentem preparados para lidar com a família do doador.

"...não tenho dificuldade desde que eu esteja acompanhando a família no início, desfecho e finalização do processo. Preciso saber sobre as condições da família, cunho religioso, social, enfim em cada família de como é aceitação e suas crenças sobre a morte" (ENTREVISTADO 7).

O enfermeiro vivencia um momento de grande conflito por estar lidando com o luto de um familiar. Os profissionais têm papel fundamental no que diz respeito a proporcionar um momento de conforto e segurança aos familiares. Eles devem lançar mão de todo estresse para voltar todas as atenções à família, que além do sentimento de perda, precisa lidar com o fato da doação dos órgaos do potencial doador. Isso, por si só, leva a um conflito interno entre autorizar ou não a doação.16

Para alguns enfermeiros a abordagem da família é de alguma forma complexa e necessita de preparação para que ela ocorra. Os relatos mostram que falta capacitação e segurança para abordarem algum membro da família.

"Não me sinto preparado. É necessário um melhor treinamento para esta abordagem" (ENTREVISTADO 8).

"Não, porque não há um trabalho, uma orientação para equipe de enfermagem" (ENTREVISTADO 21).

O enfermeiro é o profissional que geralmente está mais ligado ao paciente, por esse motivo ele está mais próximo da família do potencial doador. Essa ligação faz com que esses profissionais estejam mais envolvidos com as emoções dos familiares. Assim, devem estar munidos de conhecimento para repassar segurança para a família que sofre pela perda e ao mesmo tempo possui dúvidas por não saber de forma científica o que realmente é o processo de morte encefálica.20

A falta de conhecimento por parte dos profissionais é descrita por alguns autores, como sendo um dos motivos para não doação dos órgaos. Falta conhecimento sobre a fisiopatologia e muitos não se sentem seguros para lidar com os familiares. Estudos mostram que há escassez de capacitação sobre o tema. Além disso, as instituições de ensino não ofertam esse tipo de capacitação durante a graduação.20

Em muitos relatos os enfermeiros se sentem despreparados para lidar com o sofrimento familiar, tornando esse despreparo um empecilho que dificulta a relação entre o profissional e família.

"Não me sinto preparado. Sempre é difícil lidar com o sofrimento e o sentimento de perda dos familiares" (ENTREVISTADO 6).

"Não tenho segurança. Acho que é o lidar e perceber a dor nos olhos da família" (ENTREVISTADO 15).

Lidar com a família do potencial doador é de enorme complexidade e sofrimento para o profissional, pois a família passa por um momento de grande dor e apresenta revolta, dúvidas e outros sentimentos variados. A dificuldade dos profissionais está ligada a identificação destes sofrimentos e fazem com que eles tenham a sensação de inadequação para agirem nesta situação.17

Entretanto, a maior dificuldade relatada, refere-se ao conhecimento técnico.

"A Carência de profissionais, sua insuficiência técnica" (ENTREVISTADO 19).

"A maior dificuldade é a habilidade clínica, se tratando de pacientes muito instáveis, gerando ansiedade da equipe para que a doação possa se desenrolar antes que o doador apresente complicações" (ENTREVISTADO 26).

Um dos deveres do ser enfermeiro é buscar e transmitir conhecimento de forma autonômica, além de identificar as necessidades de aprendizagem dos demais membros de sua equipe. Contudo, isso acontece quando o profissional tem interesse nas atividades que desenvolve e por ter compromisso no gerenciamento de educação continuada junto a equipe. Além disso, os profissionais devem buscar preencher as lacunas no conhecimento, pois isso pode se tornar uma barreira para a doação de órgaos.21

Melhorias relacionadas ao atendimento prestado ao paciente em morte encefálica.

A terceira categoria trata das melhorias relacionadas ao atendimento prestado ao paciente em morte encefálica. Maior parte dos entrevistados referem-se a melhorias relacionadas à assistência direta e no atendimento ao familiar.

Das melhorias técnicas relacionadas à assistência, vários enfermeiros citam a higienização adequada ao PD e a assistência humanizada, tendo em vista que estes pacientes mesmo estando em morte encefálica deverao receber um cuidado holístico.

"Mesmo para o paciente em ME deve-se prestar uma assistência holística e completa. Podemos melhorar a higienização/mudança de decúbito e rapidez no protocolo" (ENTREVISTADO 2).

"Manter o paciente limpo (higienizado)" (ENTREVISTADO 11).

O relato dos enfermeiros se torna incoerente, uma vez que eles se dizem preparados para prestarem uma assistência humanizada e igual para todos os pacientes, e posteriormente apontam falhas relacionadas à higienização e humanização nos cuidados aos PD. Esses fatores implicam diretamente na doação, uma vez que a família do paciente que recebe cuidados humanizados e assistência qualificada se sente mais segura e com maior certeza que seu ente querido está sendo tratado de forma correta.22, 23

Os enfermeiros relatam ainda que a assistência aos familiares também deve ser melhorada, no que se refere à assistência emocional.

"A condução da suspeita de morte encefálica diante da família deve ser mais empática; deve existir mais diálogo com a família" (ENTREVISTADO 4).

Acompanhar a família do PD é uma das incumbências do enfermeiro. Esse acompanhamento deve ser tanto emocional quanto no que diz respeito ao repasse de informações, pois lidar com a morte de um ente querido, não é fácil. E o familiar não entende que mesmo o corpo estando quente e o coração batendo o seu parente já está morto. Isso acarreta um turbilhao de sentimentos. O enfermeiro deveria esclarecer essas e outras questoes e dar todo o suporte necessário para a família.20

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os enfermeiros são de suma importância para o sucesso do processo de doação de órgaos. Entretanto, o estudo identificou várias discrepâncias no papel desenvolvido por eles, no que se refere ao conhecimento e aos sentimentos que emergem no cuidado ao paciente PD.

Além disso, ficou evidenciado que algumas rotinas básicas de cuidado não são cumpridas, tais como a higienização adequada do PD, mesmo que eles afirmem prestar assistência humanizada e holística.

Frente a isso, há de se instituir medidas para a melhoria da assistência que vem sendo prestada. Uma delas diz respeito à capacitação dos próprios profissionais, para que possam ampliar o nível de conhecimentos em relação à doação de órgaos. Neste sentido, cabe à instituição efetivar ações relacionadas à educação permanente.

Finalmente, há de se incentivar novas pesquisas relacionadas ao tema, voltadas às atitudes de profissionais de enfermagem no cuidado ao paciente em ME.

 

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