RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 28. (Suppl.5) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20180141

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Relato de Caso

Hemoglobinopatia SC: variante da doença falciforme em um relato de caso

Hemoglobinopathy SC: variation of falciform disease in a case report

Camila Emanuele Peixoto Avelar1, Diana Campos Fernandino2, Elaine Jéssica Laranjeira Lima2*, Isabelly Menezes Vaz de Melo2, José Dayrell de Lima Andrade3, José Marcos Novais Tolledo2, Marcelo Dias de Castor4

1. Médica. Residente em Neurologia. FHEMIG. Barbacena, MG - Brasil
2. Médico(a). Residente em Clínica Médica. FHEMIG. Barbacena, MG - Brasil
3. Médico. Gastroenterologista. FHEMIG. Barbacena, MG - Brasil
4. Médico. Onco-hematologista. FHEMIG. Barbacena, MG -Brasil

Endereço para correspondência

Elaine Jéssica Laranjeira Lima
Fundaçao Hospitalar do Estado de Minas Gerais - FHEMIG Hospital Regional de Barbacena Dr. José Américo
Barbacena, MG - Brasil
E-mail: lanallima@gmail.com

Resumo

INTRODUÇÃO: A doença falciforme e suas variantes são distúrbios genéticos marcados pela presença de uma mutação da hemoglobina, tendo como resultante a hemoglobina S. A hemoglobinopatia SC é uma variante rara, caracteriza-se por gravidade clínica moderada, diferentemente da doença falciforme.
OBJETIVO: Descrever caso de hemoglobinopatia SC considerando as características da afecção, particularidades da sua apresentação clínica e metodologia de diagnóstico. Métodos: Revisão bibliográfica nas base de dados: Scielo, Medline, Lilacs e consultas ao prontuário eletrônico por meio do sistema de informação e gestao hospitalar (SIGH).
RESULTADOS: Trata-se de paciente jovem com história de anemia crônica sem investigação, apresentando acometimento de diversos sistemas e órgaos. Realizada eletroforese de hemoglobina e ressonância nuclear magnética da coluna lombossacra, confirmando diagnóstico de hemoglobinopatia SC.
CONCLUSÃO: Baixa incidência da hemoglobinopatia SC e suas peculiaridades clínicas tornaram seu diagnóstico um desafio. Exames de imagem e laboratoriais foram essenciais para diagnóstico e adequada condução do caso.

Palavras-chave: Anemia; Anemia Falciforme; Doença da Hemoglobina SC; Hidroxiureia.

 

INTRODUÇÃO

As hemoglobinopatias são doenças que acometem os genes responsáveis pela síntese das hemoglobinas.1 De acordo com o tipo de alteração presente na hemoglobina (Hb), podem ser classificadas em: forma homozigótica SS, que é a anemia falciforme e as formas heterozigóticas, representadas pelas associações de HbS com outras variantes de hemoglobinas, tais como: HbC, HbD e as interações com as talassemias.2

Estima-se que existam mais de 4 milhoes de portadores do gene da HbS e por estarem suscetíveis a várias complicações a expectativa de vida torna-se significativamente mais curta para essa população.3

A HbS, quando em situações diminuição da tensão de oxigênio, altera a morfologia do eritrócito, dificultando a circulação sanguínea e provocando vaso-oclusão e infarto no local afetado. Tais alterações produzem isquemia, dor, necrose e disfunções, bem como hemólise crônica e danos permanentes aos tecidos e órgaos.3,4 Genótipos que produzem uma taxa menor de HbS ou uma elevação de HbF dificultam a polimerização e a falcização dos eritrócitos, reduzindo a gravidade da doença e intensidade das manifestações clínicas.5 Na forma SC, por exemplo, não há hemoglobina A e os percentuais de Hb S e Hb C estao próximos um do outro.6

A manifestação mais comum dos doentes falciformes é crise vaso-oclusiva (CVO).3,4 Os sítios comumente acometidos são regiao lombar, fêmur e joelhos. Além da dor, o edema, o calor, a hiperemia e a restrição de movimento podem estar presentes. Alguns indivíduos apresentam dor severa nas extremidades e no abdômen, podendo simular abdômen agudo cirúrgico ou infeccioso.4

O curso clínico da hemoglobinopatia SC é de intensidade menos grave e ocorre em uma idade mais avançada comparada à anemia falciforme. Suas crises hemolíticas são mais amenas, o baço pode persistir na idade adulta e a perda da função esplênica é gradual.3,7

Quando o diagnóstico das anemias hereditárias é precoce e seu tratamento adequado, há significativa redução da morbidade e mortalidade.3 O diagnóstico é feito com a identificação da HbS por meio de testes como a eletroforese de hemoglobina em pH alcalino e a cromatografia líquida de alta performance (HPLC), considerada padrao ouro.1,2,4

A hidroxiureia foi o primeiro medicamento capaz de prevenir complicações da doença falciforme. Sua ação produz efeitos benéficos como aumento da hidratação de hemácias e da produção de HbF e até o momento é considerada a terapia farmacológica de maior sucesso para controle da doença.4,8

Este artigo tem como objetivo relatar um caso de hemoglobinopatia SC em paciente jovem considerando as características da afecção, particularidades da sua apresentação clínica e metodologia de diagnóstico.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente de 23 anos, pardo, sexo masculino admitido em pronto-atendimento com quadro de lombalgia intensa que irradiava para abdome inferior e associada a dor torácica e dispneia. Ao exame admissional, referia dor a palpação difusa do abdômen, porém sem sinais de peritonite. Apresentava sinal de Laségue positivo bilateralmente, rigidez de nuca e membros inferiores levemente assimétricos.

Em avaliação pela equipe de cirurgia geral, descartouse quadro de abdome agudo. Tomografia de abdome total evidenciou presença de baço atrófico. Avaliado pela equipe de Neurologia e realizada propedêutica com punção liquórica e tomografia de crânio, ambas sem alterações. Realizados Dupplex scan venoso de membros inferiores, sem sinais de trombose venosa, e angiotomografia de tórax, que mostrou falhas de enchimento dos ramos subsegmentares em lobos pulmonares inferior e superior direitos.

Laboratorialmente, apresentava leucocitose 42.000/mm3, com bastonemia 11% (4.664/mm3) e presença de metamielócitos 3% (1.272/mm3); hemoglobina 6,8g/dL, hematócrito 20,2%, VCM 92,7 fL, HCM 31,2 pg; reticulócitos de 0,3%, bilirrubina total 1,50mg/dL (indireta 1,10mg/dL e direta 0,4mg/ dL). Devido aos baixos índices hematimétricos, paciente foi hemotransfundido com concentrado de hemácias e obteve melhora dos níveis de hemoglobina. Interrogado sobre história pregressa de quadro anêmico, confirmou anemia crônica com uso constante de sulfato ferroso na infância, porém sem investigação etiológica.

Paciente manteve quadro dor lombar e abdominal refratárias. Realizou Ressonância Nuclear Magnética (RNM) de coluna lombossacra, que evidenciou imagens geográficas nas vértebras com maior envolvimento das porções posteriores dos corpos vertebrais, sugerindo possibilidade de infarto ósseo secundário à hemoglobinopatia/trombofilia (Figura 1).

 


FIGURA 1. RNM da coluna lombossacra evidenciando imagens geográficas nas vértebras com maior envolvimento das porções posteriores dos corpos vertebrais (Fonte: prontuário médico).

 

Aventada hipótese de hemoglobinopatia, foi solicitada eletroforese de hemoglobina (A1 33,2%, A2 3,4%, F 2,1%, S 30,9%, C 30,4%), confirmando diagnóstico de hemoglobinopatia SC.

Paciente foi avaliado por hematologista, que recomendou hemotransfusão e uso contínuo de ácido acetilsalicílico (AAS) 100mg e ácido fólico 5mg em doses diárias. Evoluiu com melhora significativa do quadro álgico, da dispneia e sem maiores limitações para deambular. Após alta hospitalar, mantém acompanhamento ambulatorial em serviço de hematologia.

 

DISCUSSÃO

A prevalência da doença falciforme no Brasil ainda é pouco definida e varia entre as regioes por estar ligada à formação étnica de cada uma delas. Está associada a complicações agudas e crônicas e, por isso, na suspeita de anemia hereditária, o diagnóstico precoce, acompanhamento médico e aconselhamento genético reduzem significativamente a morbidade e mortalidade desses pacientes.

A hemoglobinopatia SC, variante rara da doença falciforme, ocorre em uma idade mais avançada do que a anemia falciforme e seu curso clínico é de intensidade menos grave. No caso relatado, paciente de 23 anos apresentou-se com acometimento simultâneo de múltiplos sistemas, tornando seu diagnóstico um desafio e exigindo a busca por diagnósticos diferenciais. Descartadas hipóteses potencialmente fatais como abdome agudo, tromboembolismo pulmonar e meningite, investigou-se a etiologia da anemia de caráter crônico, bem como quadro de lombalgia refratária.

Exames laboratoriais evidenciaram quadro de anemia com padrao normocítico e normocrômico mais leve do que a comumente encontrada na anemia falciforme. A RNM de coluna lombossacra evidenciou lesões sugestivas de infartos ósseos, corroborando com a hipótese de hemoglobinopatia, logo confirmada pela eletroforese de hemoglobinas como padrao SC.

Após alta e acompanhamento com hematologista, apresentou boa evolução, com remissão dos sintomas e retorno às suas atividades diárias. A proposta terapêutica é manter o uso do AAS como prevenção de novos infartos, do ácido fólico recomendado devido ao risco de hemólise e iniciar tratamento com hidroxiureia, visto que a droga é capaz de prevenir complicações e age no controle da doença.

 

CONCLUSÃO

A baixa incidência da hemoglobinopatia SC, suas peculiaridades clínicas e o desconhecimento desta comorbidade por parte dos médicos tornaram os exames de imagem e a eletroforese de hemoglobina imprescindíveis para o diagnóstico neste caso. Apesar do uso de AAS e ácido fólico terem contribuído com a melhora dos sintomas, fazem-se necessários mais estudos que correlacionem a utilização dessas medicações na evolução da doença. Por fim, entende-se que o diagnóstico precoce e adequado manejo clínico desta comorbidade são capazes de prevenir complicações e proporcionar melhor qualidade de vida nesses indivíduos.

 

REFERENCIAS

1. Silva LCM, Castro FS. Hemoglobinopatias: relato de caso familiar. Rev Bras Anal Clin. 2017;49(3):307-11.

2. Felix AA, Souza HM, Ribeiro SBF. Aspectos epidemiológicos e sociais da doença falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter. 2010;32(3):203-8.

3. Brunetta DM, Clé DV, Haes TM, Roriz-Filho JS, Moriguti JC. Manejo das complicações agudas da doença falciforme. Medicina (Ribeirao Preto). 2010;43(3):231-7.

4. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Doença falciforme: condutas básicas para tratamento. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.

5. Zago MA, Pinto ACS. Fisiopatologia das doenças falciformes: da mutação genética à insuficiência de múltiplos órgaos. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007;29(3):207-14.

6. Melo-Reis PR, Araújo LMM, Dias-Penna KBG, Mesquita MM, Castro FS, Costa SHN. A importância do diagnóstico precoce na prevenção das anemias hereditárias. Rev Bras Hematol Hemoter. 2006;28(2):149-52.

7. Hoffbran AV, Moss PAH. Fundamentos em Hematologia. 6ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2013.

8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria SAS/MS Nº 55, de 29 de janeiro de 2010. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas. Doença Falciforme. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.