RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 28. (Suppl.5) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20180142

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Relato de Caso

Relato de Caso: A importância da comunicação no atendimento a um recém-nascido de pais haitianos na maternidade odete valadares, maternidade pública referência do método canguru em Belo Horizonte -MG

Case Report: The importance of communication in the care of a newborn from haitian parents in odete valadares maternity, a public maternity reference of the canguru method in Belo Horizonte -MG

Gláucia Maria Moreira Galvao1; Bianca de Barros Camargo2; Bruna Costa de Matos3; Fabiana Lima Pessoa de Mendonça4; Jéssica de Sousa Landim5; Myrian Duarte de Carvalho6; Nathália Ribeiro Notaro7; Nívia Brant Lemos8

1. Médica pela Universidade Federal de Minas Gerais (1983) e Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007)
2. Médica pela Faculdade de Medicina De Barbacena (2012), Pediatra pela Unimed BH (2015) e Neonatologista pela Maternidade Odete Valadares (2017)
3. Médica pela UNI-BH (2017) e Residente do primeiro ano de pediatria do Hospital Infantil Joao Paulo II
4. Médica pela Universidade Federal de Minas Gerais (2017) e Residente do primeiro ano de pediatria do Hospital Infantil Joao Paulo II
5. Médica pela Universidade José do Rosário Vellano - UNIFENAS Belo Horizonte - MG (2015) e Residente do primeiro ano de pediatria do Hospital Infantil Joao Paulo II
6. Graduaçao em fonoaudiologia pelo instituto brasileiro de medicina de reabilitaçao IBMR-Rio de Janeiro (1977)
7. Médica pela Universidade Federal de Minas Gerais (2017) e Residente do primeiro ano de pediatria do Hospital Infantil Joao Paulo II
8. Médica pela Faculdade de Medicina de Barbacena (2017) e Residente do primeiro ano de pediatria do Hospital Infantil Joao Paulo II

Endereço para correspondência

Gláucia Maria Moreira Galvao
Maternidade Odete Valadares - (FHEMIG)
Belo Horizonte - MG - Brasil
E-mail: gmmgbh@gmail.com

Resumo

Neste relato de caso, objetiva-se a reflexão sobre as dificuldades enfrentadas pela equipe de saúde e por pais haitianos de um recém-nascido prematuro na Maternidade Odete Valadares (MOV), que é referência do Método canguru em Belo Horizonte, Minas Gerais. Mostrando assim a experiência vivenciada pela equipe de saúde humanizada na segunda etapa do método canguru e os métodos utilizados na comunicação entre profissionais da saúde e paciente e entre as pacientes internadas na Unidade Canguru. Na segunda etapa do método canguru, o bebê permanece de maneira contínua com sua mae e a posição canguru, será realizada pela maior parte do tempo possível. A alta ocorre quando o casal está seguro, psicologicamente motivado, bem orientado e familiares conscientes quanto ao cuidado domiciliar de um bebe prematuro, sendo nesta etapa a interação através do diálogo com a mae e familiares, fundamental.

Palavras-chave: Barreiras de Comunicação, Humanização da assistência, Método Canguru.

 

1. INTRODUÇÃO

Na segunda etapa do método canguru maes e familiares devem adquirir conhecimento e habilidades para manejar com o bebê prematuro e a alta ocorre quando o casal está seguro, psicologicamente motivado, bem orientado e os familiares conscientes quanto ao cuidado domiciliar de um bebe prematuro 1, sendo nesta etapa a interação através do diálogo com a mae e familiares, fundamental.

Em sentido amplo, o objetivo da medicina é a manutenção e restauração da saúde. O acesso igualitário à saúde e cuidados médicos é um direito fundamental do ser humano, pautado no artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O exercício da medicina e a eficácia de seu objetivo dependem sobremaneira da relação médico-paciente. Por sua vez, a qualidade da comunicação entre médico e paciente tem sido apontada em diversos estudos como uma das condições primordiais que repercutem na interação clínica satisfatória e sustenta os objetivos da prática médica. 2

As dificuldades de comunicação podem se tornar uma barreira ao sucesso do atendimento, muitas vezes com grandes dificuldades. Temos hoje um grande desafio: como cada indivíduo e profissional pode contribuir para a implementação de uma sociedade inclusiva que saiba conviver com as diversidades inclusive linguísticas.3 Mylene Queiroz em um estudo de 2014 coloca a importância de ações com vistas à formação de um campo profissional que garanta o acesso a serviços de saúde no país por minorias linguísticas e ela aponta para a necessidade de debater a criação de políticas públicas que não somente reconheçam a demanda, mas que criem ferramentas de acesso linguístico.2

 

2. DESCRIÇÃO DO CASO

Recém-nascido de M.T.A.R., Data nascimento: 12/06/2016, às 09:59 h, Sexo: Feminino, Peso:1580g Comprimento:39cm, PC:28,5cm, IG:34seme2dias. História Materna: 26 anos, primigesta, haitiana, a cerca de 1ano no Brasil, não fala português, apenas o dialeto crioula haitiano. GS: B Rh: pós, Sorologias negativas, toxoplasmose imune. Estava em acompanhamento na Maternidade de Contagem, no Pré-Natal de Alto Risco (PNAR), transferida à MOV, devido à aumento da Pressão arterial e propedêutica para pré-eclâmpsia grave positiva. Recebeu duas doses de corticoide em 08/06/16 e 09/06/16. Não recebeu Sulfato de Magnésio. Teve infecção do trato urinário tratada em 02/06/16.

Optado por interrupção, parto cesáreo, bolsa rota no ato, líquido amniótico claro, apresentação cefálica. Recémnascido, nasceu bem, não necessitou de reanimação em sala de parto. Apgar 1' 08 / 5' 09. Evoluiu com desconforto respiratório leve em sala de parto. Transferido à Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (CTI Neo), devido à prematuridade.

No CTI Neo permaneceu em ar ambiente, sem necessidade de oxigenioterapia suplementar. Teve sepse neonatal precoce descartada. Iniciada dieta enteral no 1º DV, com boa tolerância, recebeu nutrição parenteral precoce, por 2 dias, com boa progressão de dieta por via oral, transferido a Unidade Intermediária Canguru em uso de dieta plena por sonda nasogástrica em 16/06/16, no 5º dia de vida com peso de 1580g.

Na Unidade Intermediária Canguru, foi suspenso sonda nasogástrica e iniciado treinamento de pega e sucção, com acompanhamento da fonoaudiologia. Evoluiu bem, sem intercorrências, recebeu alta hospitalar, em 24/06/16, com 13 dias de vida, IGCo 36 semanas, peso 1640g, Comprimento: 43cm, Perímetro cefálico: 31 cm, em uso de aleitamento materno exclusivo.

Exames: Teste do Pezinho 16/06/2016 em andamento, Ultrassonografia transfontanela do dia 15/06/2016 Normal, Teste da orelhinha no dia 23/06/16 normal, reflexo vermelho em 17/06/16 normal, Ecocardiograma em 19/06/16 sem alterações, triagem acústica neonatal normal em 23/06/16.

Impressões Diagnósticas: Recém-Nascido Prematuro Tardio (34 semanas e 2 dias), Muito Baixo Peso, Pequeno para a Idade Gestacional; estável clinicamente; Anti hepatite B 1º dose realizada em 17/06/16; aleitamento materno bem estabelecido.

A alta foi agendada alta responsável em centro de saúde de referência, além de consulta com Pediatra no Banco de leite da MOV, para acompanhamento de peso até 2500g, foi dada orientações quanto aos cuidados com o bebê, esquema vacinal e manutenção de posição canguru a maior parte do tempo possível em casa. Estas orientações foram dadas nas duas línguas, em Português para compreensão da equipe da rede básica principalmente a agente comunitária de saúde (ACS) e em crioulo haitiano para melhor compreensão da mae e familiares.

 

3. DISCUSSÃO

A fase de inclusão surgiu na década de 1980 e está em plena discussão nos dias atuais. Surge a concepção de que a família e a sociedade devem adaptar-se às necessidades de todas as pessoas, portadoras ou não de limitações, sejam estas físicas ou linguísticas. Conviver no universo das pessoas com limitações mesmo linguísticas envolve uma mudança de paradigmas. A linguagem não-verbal e verbal de pessoas que não falam a língua portuguesa é compreendida pelos profissionais da saúde? O vínculo estabelecido é suficiente para garantir uma assistência humanizada?

A linguagem é um instrumento de poder e aos estrangeiros não pode ser negado o direito de usufruir os benefícios de uma língua, portanto, aceitar a diferença entre línguas diferentes e conviver com a diversidade humana é um desafio proposto à sociedade, incluindo o adequado atendimento na área da saúde para todos, diante de suas necessidades.

Na área da saúde, uma barreira é imposta aos estrangeiros e aos profissionais se ocorre o não compartilhamento de uma mesma linguagem, e isto é comum se tratando de línguas minoritárias. Portanto, torna-se indispensável que ambos encontrem formas de interagirem para garantir uma assistência de melhor qualidade4. Da mesma forma com que se refere ao atendimento dos portadores de necessidades especiais, já que a falta de comunicação inviabiliza um atendimento humanizado. A comunicação entre línguas pátrias diferentes, surge como um desafio aos profissionais que lhes prestam assistência à saúde.

Quando se compartilha experiências de forma eficaz é possível reconhecer as percepções de dor ou prazer expressas pelo outro, por meio de aspectos verbais e não verbais da comunicação4-5. Humanizar é entregar-se de maneira sincera e leal ao outro e saber ouvir com ciência e paciência as palavras e os silêncios.

No Reino Unido, a maioria dos hospitais têm acesso a serviços de tradução, mas eles são caros e muitas vezes complicados. Na verdade, mesmo em uma língua nativa, tem-se um elemento de tradução de terminologia médica para leigos. Assim, foi realizado um estudo para avaliar a precisão e utilidade do Google Tradutor em traduzir declarações médicas inglesas comuns a pacientes falantes de outra língua.6 O uso do tradutor Google na comunicação médica apresenta falhas, pois teve uma precisão de apenas 57,7%, quando usado para traduções de frases médicas e não deve ser confiável para comunicações médicas importantes.6 No entanto, ainda continua a ser o modo inicial mais facilmente disponível e livre de comunicação entre médico e paciente quando a língua é uma barreira, podendo ser um complemento útil para serviços de tradução humana quando outros meios não estao disponíveis.

No Brasil, as barreiras linguísticas enfrentadas por pacientes que não falam a língua portuguesa são tratadas de forma improvisada por intérpretes voluntários sem nenhum treinamento específico2. Ao ingressar no novo país, o imigrante, se não souber a língua deste novo local necessitará imediatamente aprendê-la para que assim ela possa se comunicar com as pessoas7.

Reportagens publicadas em 2016 relataram a dificuldade de estudantes Haitianos com a língua portuguesa. Não existe uma ação institucional específica voltada para adaptação dos imigrantes na rede estadual mineira, nem preparação dos educadores, essa falta de apoio reflete nas notas dos alunos, que após melhor entendimento da língua, conseguem melhores notas nas matérias ensinadas. Os filhos na maioria das vezes, passam a ser tutores de seus pais e os ajudam na comunicação. Em 2010, Minas Gerais recebeu cerca de 80 Haitianos refugiados por conta do terremoto, em 2014, chegaram 2000 pessoas.8-9

Em relação ao caso, no momento inicial ouve uma grande apreensão da equipe com relação à comunicação, mas ao introduzir o Google tradutor em computador dentro da enfermaria, o que foi bem aceito pela família, ouve estabelecimento de interação entre equipe, mae e familiares. Houve dificuldade com uma das auxiliares, que não estava familiarizada com o uso do computador. "Foi difícil a comunicação, para passar as prioridades da enfermaria canguru. Acho que não atendi da forma que gostaria, ficou muito a desejar." C.F.G - Técnica de enfermagem, não habituada ao uso da internet.

A relação entre a paciente e as outras maes da enfermaria também não se concretizou pela dificuldade de interação. É possível a partir da fala concluir que a rede de apoio família ampliada com outras maes não foi atingida. "Foi bem estranho. As vezes queríamos conversar com ela, mas ela ficava bastante tímida por não entender o que a gente falava. Não tinha diálogo. " C.E.B.S.S - Mae de paciente da enfermaria canguru.

Em relação à interação entre a paciente e equipe médica e a maior parte da enfermagem, que estava habituada ao uso do computador, aconteceu uma melhora na comunicação através do uso do Google tradutor. "-Foi uma experiência muito diferente, inicialmente houve dificuldade de comunicação, melhorada após uso do Google tradutor e gestos. A alta fizemos a tradução da receita médica e orientações na língua crioula haitiana para melhor compreensão dos pais, quanto aos cuidados com o recém-nascido." B.B.C - Residente de Neonatologia da MOV, responsável pela paciente.

"-Foi legal, achei interessante. Foi boa a experiência, uma menina meiga e tranquila, consegui me comunicar com ela e mesmo sem falar, consegui com gestos otimizar todos os meus objetivos. E foi muito bom em poucos dias ver eles irem para casa felizes. O computador também ajudou na comunicação." E.M.M.L - Técnica de enfermagem.

- "Foi uma experiência gratificante, com algumas dificuldades na comunicação, como orientação das rotinas do serviço, com necessidade de atenção redobrada, também pela diferença cultural. Foi utilizada a linguagens de gestos, comunicação através do Google tradutor e envolvimento do pai durante a internação, que entende e fala o português, ajudando na interação entre a equipe." A.G.P - Enfermeira.

 

4. CONCLUSÃO

Na humanização, a filosofia de equipe de saúde e suas ações são fundamentais para a construção de um ambiente mais favorecedor a comunicação. Sendo as ações da equipe mais significativas que o ambiente físico e os recursos materiais e tecnológicos. Mas a integração de uma equipe humanizada, junto com estes recursos podem diminuir a barreira da comunicação entre a equipe de saúde e paciente com limitações linguísticas, favorecendo uma alta mais segura quando se trata de uma família de um recémnascido prematuro.

O uso do tradutor Google na comunicação médica apresenta falhas, no entanto, ainda continua a ser o modo inicial mais facilmente disponível e livre de comunicação entre a equipe de saúde e pacientes quando a língua é uma barreira, podendo ser um complemento útil para serviços de tradução humana quando outros meios não estao disponíveis.

Este caso nos mostrou a importância da quebra de paradigmas com relação a inclusão de pacientes com barreira linguística que deve sempre estar presente quando se trata de humanização de um recémnascido pré-termo dentro da filosofia de cuidados canguru e que como maternidade referência devemos desenvolver novas formas de interação e criação de protocolos hospitalares, para obtermos um melhor resultado na inclusão de pacientes estrangeiros de línguas minoritárias.

 

5. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

1. BRASIL. Ministério da Saúde. Atenção humanizada ao recém-nascido de baixo peso. 2013; Seção 2, 18-25.

2. Queiroz M. Panorama da interpretação em contextos médicos no Brasil: perspectivas. São Paulo: Trad Term 2014 set; 23:193-223.

3. Mídia e deficiência. Brasília: Fundação Banco do Brasil; 2003. (Série diversidade).

4. Barbosa MA, Oliveira MA, Siqueira KM, Damas KCA, Prado MA. Linguagem Brasileira de Sinais - Um desafio para a assistência de enfermagem. Rev Enferm UERJ 2003; 11(3):247-51.

5. Silva MF, Silva MJP. A auto-estima e o não-verbal dos pacientes com queimaduras. Rev Esc Enferm USP 2004; 38(2):206-16.

6. Bibliomed. BMJ. 2014; 349:g7392. Disponível em: http://www.boasaude.com.br/noticias/10818/uso-dotradutor-google-na-comunicacao-medica-apresentafalhas.html. Acessado em: 10/05/2018.

7. Santos AP, Santos MSF, Contiguiba MLP. A inserção da criança haitiana no ambiente escolar brasileiro: um estudo de caso na cidade de Porto Velho; 2015.

8. Jornal O Tempo. Alunos imigrantes sofrem com adaptação em escolas públicas. Dom, 19 de junho de 2016; pag. 24.

9. Jornal O Tempo. Filhos viram tutores dos pais. Dom, 19 de junho de 2016; pag 24.