RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 28 e-2002 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20180155

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Relato de Caso

Gossipiboma intra-abdominal: relato de casos

Intraabdominal Gossipiboma: case report

Mario Gissoni de Carvalho2; Seiji Miyata2; Leonardo Martins Caldeira de Deus1,2; Julia Duarte de Souza2; Helena Botelho Marques2; Tarcísio Andrade de Souza3; Thiago Zeraik Sampaio Lustosa4,5; Marcos Vinícius Gonçalves de Oliveira5,6; Fellype Coelho Amaral5,7; Heider Silva Duarte2,5; Guilherme Rezende5,8; Marcela Pinheiro de Araújo Craide5,9; Chrystian Junio Rodrigues5,7; Laryssa de Cassia Ferreira4,5; Laís Martins Magalhaes Almeida5,10

1. Instituto Mário Penna, Cirurgiao Geral. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
2. Universidade Federal de Minas Gerais, Medicina Bacharelado. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
3. Universidade Federal do Acre, Medicina Bacharelado. Rio Branco, Acre - Brasil
4. Universidade Federal de Sao Joao Del-Rei, Medicina Bacharelado. Sao Joao Del-Rei, Minas Gerais - Brasil
5. Instituto Mário Penna, Residente em Cirurgia Geral. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
6. Fundaçao Universidade de Itaúna, Medicina Bacharelado. Itaúna, Minas Gerais - Brasil
7. Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Medicina Bacharelado. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
8. Universidade Federal de Ouro Preto, Medicina Bacharelado. Ouro Preto, Minas Gerais - Brasil
9. Universidade José do Rosário Vellano - UNIFENAS, Medicina Bacharelado. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
10. Faculdade da Saúde e Ecologia Humana, Medicina Bacharelado. Vespasiano, Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência

Leonardo Martins Caldeira de Deus
E-mail: leonardo_mcaldeira@yahoo.com.br

Recebido em: 12/03/2018
Aprovado em: 10/09/2018

Instituiçao: Instituto Mário Penna, Cirurgiao Geral - Belo Horizonte, MG - Brasil. Universidade Federal de Minas Gerais, Medicina Bacharelado - Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil

Resumo

A palavra gossipiboma se refere a objetos têxteis deixados acidentalmente em cavidades corpóreas após cirurgias, sendo o mais comum a compressa. Sua incidência varia de acordo com o tipo de cirurgia, sendo maior em procedimentos de urgência, principalmente naqueles que contemplam a cavidade abdominal. Neste artigo, relatamos os casos de três pacientes operadas inicialmente em outros serviços, porém reabordadas por nossa equipe devido à presença de gossipiboma. Todas tiveram evolução favorável após a remoção do corpo estranho. Conforme pode-se perceber ao longo do artigo, as manifestações clínicas do gossipiboma podem ser discretas, como desconforto ou massa assintomática, ou mais graves, com sepse, instabilidade clínica e possivelmente óbito. Trata-se de evento prevenível por meio de medidas como treinamento da equipe cirúrgica e sistematização de procedimentos para garantir a segurança do paciente no ambiente do bloco cirúrgico. É um evento adverso com implicações médico-legais. Evitando a ocorrência deste tipo de incidente, protege-se não apenas o paciente, cuja saúde deve ser sempre o principal objetivo do atendimento médico, mas também a equipe cirúrgica e a própria instituição.

Palavras-chave: Cirurgia Geral, Reoperação, Instrumentos Cirúrgicos, Reação a Corpo Estranho, Tampoes de Gaze Cirúrgicos.

 

INTRODUÇÃO

O termo gossipiboma refere-se a itens cirúrgicos de matriz têxtil deixados inadvertidamente no interior de cavidades após fechamento da ferida operatória. A palavra deriva do latim Gossypium, que significa algodao, e do swahili Boma, esconderijo. O primeiro caso foi descrito por Wilson em 1884.1

O tamanho relativamente pequeno, o uso universal em operações e a difícil identificação quando encharcadas de sangue, são fatores que corroboram com o fato de as com- pressas cirúrgicas serem o corpo estranho mais comumente encontrado em abordagens cirúrgicas por identificação de material incaracterístico.2 Estima-se que a ocorrência de gossipiboma seja de 1 para cada 5.500 a 18.760 cirurgias; chegando a 1 para 1.000 a 5.000 naquelas realizadas em cavidade abdominal e a 1:700 nas intervenções de emergência do trauma.3

Gossipibomas são encontrados mais comumente nas cavidades abdominal (56%), pélvica (18%) e tóracica (14%). Os principais fatores de risco implicados são: cirurgia de emergência e de controle de danos, mudanças inesperadas no planejamento cirúrgico, obesidade, elevado número de instrumentais na mesa, mais de uma equipe cirúrgica no procedimento e ausência do cirurgiao responsável até término do fechamento da cavidade.2-4.

Apresenta-se abaixo três casos de gossipiboma em diferentes contextos cínicos.

Relato de caso 1

J.S.C, 44 anos, sexo feminino, com histórico de gastrectomia parcial em setembro de 2017 em outro serviço para tratamento de tumor estromal gastrointestinal (GIST), foi encaminhada à equipe de oncologia clínica do Hospital Luxemburgo para avaliação, sendo optado por quimioterapia adjuvante. Em novembro do mesmo ano, identificado em tomografia computadorizada (TC) de abdome e pelve volumosa formação expansiva exofítica em remanescente de coto gástrico (figura 1). A paciente manteve-se assintomática do ponto de vista clínico e cirúrgico, sendo observado aumento da lesão em estudo comparativo com exame repetido em dezembro.

 


Figura 1. TC de abdome com lesão tumoral a esclarcer e marcador metálico em seu interior (gossipiboma)

 

Aventada hipótese de recidiva tumoral, a mesma foi encaminhada ao serviço de cirurgia geral do Hospital Luxemburgo para avaliação, sendo programada gastrectomia total de resgate. Em fevereiro de 2018, submetida a laparotomia exploradora, sem evidências macroscópicas de recidiva tumoral em coto estomacal ou implantes secundários. Todavia, observada presença de lesão volumosa incaracterística adjacente à curvatura gástrica maior e aderida à parede abdominal. Após abertura da estrutura, encontrado gossipiboma e moderada quantidade de secreção de aspecto purulento (figura 2).

 


Figura 2. Gossipiboma retirado da cavidade abdominal após laparotomia

 

Durante internação, evoluiu satisfatoriamente e recebeu alta hospitalar no terceiro dia pós-operatório. Segue em acompanhamento ambulatorial.

Relato de caso 2

M.G.R, 29 anos, sexo feminino, com histórico de ooferectomia e salpingectomia em julho de 2016 em outro serviço para tratamento de gravidez ectópica, sem relato de outras comorbidades ou procedimentos cirúrgicos. Evoluiu com dor abdominal em regiao hipogástrica em dezembro de 2016. A TC de abdome e pelve (figura 3) constatou a presença de massa pélvica sem inferir sobre o diagnóstico etiológico. Após avaliação da equipe de oncologia clínica, paciente foi encaminhada ao serviço de cirurgia geral do Hospital Luxemburgo em fevereiro de 2017 para tratamento da lesão. Submetida a laparotomia exploradora, identificado corpo estranho aderido à parede abdominal, omento maior, Rev Med Minas alças de delgado e parede anterior do sigmoide (Figura 4 e 5). Desfeito aderências entre gossipiboma e estruturas abdominais e extraído parte do omento maior que envolvia a massa. O material coletado foi encaminhado ao estudo anatomopatológico, sem indícios de malignidade.

 


Figura 3. TC de abdome evidenciando massa pélvica a esclarecer (gossipiboma)

 

 


Figura 4.
Gossipiboma aderido em alças intestinais

 

 


Figura 5. Gossipiboma aderido a parte do omento maior

 

Durante internação, a paciente evoluiu satisfatoriamente e recebeu alta hospitalar no segundo dia pós-operatório. Manteve-se em acompanhamento ambulatorial por 2 meses sem intercorrências, conferido alta ambulatorial devido boa evolução.

Relato de caso 3

J.V.S.G, 53 anos, sexo feminino, foi submetida à apendicectomia em janeiro de 2017 conforme sumário de alta de outro serviço, intercorrendo com quadro séptico de foco abdominal em pós-operatório. Diante da evolução pouco usual, foi realizada TC de abdome que constatou coleção pélvica volumosa. Na mesma instituição foi submetida a reabordagem laparotômica no 9° dia de pós-operatório, cuja conduta foi limpeza da cavidade abdominal e posicionamento de dreno sentinela em fossa ilíaca direita. Devido à ausência de resposta à satisfatória, mesmo em uso de antibioticoterapia, foi realizada TC de abdome que diagnosticou

sinais de abscesso subfrênico e outras coleções cavitárias em flanco e pelve. Diante do diagnostico, foi realizada nova reabordagem laparotômica, sendo identificada aderências entre alças intestinais e presença de fístula em jejuno distal, o que resultou na confecção de jejunostomia. A despeito dos esforços, evoluiu com drenagem entérica em baixo débito por drenos e ferida operatória (figura 6), sendo entao transferida para o centro de tratamento intensivo (CTI) do Hospital Luxemburgo. Nesta Instituição foi realizada nova TC de abdome, cujo resultado foi de espessamento difuso de alças ileais e do peritôneo, ausência de coleções organizadas e fístula íleocecal de amplo débito.

 


Figura 6. Abdome com dreno em flanco esquerdo e eliminação de secreção entérica por ferida operatória de laparotomia e orifício fistuloso em fossa ilíaca direita

 

Paciente evoluiu com estabilidade clínica e hemodinâmica, recebendo alta para enfermaria, todavia, a evolução mostrou que não houve resolução completa do quadro abdominal. Realizada nova TC de abdome (figura 7) em fevereiro do mesmo ano, que diagnosticou formação arredondada, de aspecto marchetado, associado a opacidades lineares radiopacas. Diante desse diagnóstico, a equipe de cirurgia geral do Hospital Luxemburgo optou por abordagem cirúrgica da lesão. As condutas na terceira laparotomia exploradora constaram em liberação das aderências, identificação de perfuração de alça intestinal (figura 8), extirpação do gossipiboma (figura 9), posicionamento do dreno nas proximidades da alça erodida e laparorrafia. Houve melhora clínica e nutricional lenta e progressiva, que culminou com alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial, sendo constatada hérnia incisional, mas optou-se pelo tratamento conservador até uma nova avaliação.

 


Figura 7. TC de abdome evidenciando estrutura arredondada a esclarecer com marcador radiopaco

 

 


Figura 8. Laparotomia paramediana a direita, evidenciando alça erosada e tumoração formada por gossipiboma encapsulado

 

 


Figura 9. Gossipiboma retirado da cavidade abdominal após laparotomia

 

DISCUSSÃO

Duas são as principais formas de apresentação clínica nos casos de gossipiboma. O padrao exsudativo ocorre no pós-operatório imediato, em razao de processo inflamatório caracterizado por proliferação de microrganismos no interstício têxtil, cursando com formação de abscessos, de fístulas para pele, vagina ou intestino e evolução para sepse. Sintomas precoces como febre, dor, obstrução intestinal, sangramento ou infecção de ferida operatória são comuns, resultando em reabordagem precoce dos casos.1,5 O padrao fibrinoso corresponde a 25% dos casos e ocorre no pós-operatório tardio (meses ou anos após o procedimento) com encapsulamento do corpo estranho e formação de pseudotumores. Sintomas tardios como dor abdominal crônica, náuseas, dispepsia, constipação e perda de peso são os mais relatados na literatura.1,5,6

A investigação de casos suspeitos de corpo estranho é feita por meio de exames de imagem. Apesar de baixa acurácia, a radiografia simples é o exame mais realizado, pois possibilita identificar com certa facilidade elementos com marcadores metálicos.1 A ocorrência de falso-negativo se justifica com uso de filmes de baixa qualidade e sobreposição de estruturas com densidades semelhantes. A TC é o exame de eleição; nela os gossipibomas se apresentam como massa de contorno bem definido, densidade variável, podendo conter gás em seu interior e até cápsula de alta densidade com realce na fase pós-contraste.1,2,6,7 A ultrassonografia é capaz de identificar o material têxtil como massa cística, sólida ou mista, bem delimitada, com sombra acústica posterior. Pode apresentar resultados falso-positivos em casos com cicatriz e calcificações de outras etiologias. Além disso, por ser um recurso operador dependente, incapaz de identificar corpos estranhos mais profundos ou entre vísceras ocas contendo gás, é pouco utilizado para essa finalidade.2,7. Nos três casos apresentados, o diagnóstico foi estabelecido pela visualização de imagem incaracterística, por vezes com densidade metálica, ocupando mais de uma posição em cavidade abdominal e histórico de abordagens cirúrgicas prévias associadas a sintomas como dor abdominal ou instabilidade clínica.

A literatura descreve algumas estratégias de prevenção, como uso de compressas com marcadores metálicos computadas antes, durante e após procedimento cirúrgico, evitar uso de gazes em laparotomias, revisar a cavidade antes do fechamento e explorá-la em caso de divergência na contagem. No entanto, alguns estudos demonstram que 88% dos casos de corpos estranhos ocorrem na vigência de cirurgias descritas com contagem correta de compressas. Havendo dúvida, o rastreio com radiografia deve ser feito antes do paciente deixar o bloco cirúrgico.1-3

Salvo situações com risco iminente de morte ou aquelas cujo comunicado possa provocar dano, é vedado ao médico, conforme artigos 46 e 59 do Código de Ética Médica, efetuar procedimentos sem o esclarecimento e consentimento prévio do paciente ou responsável legal, ou ainda deixa de informar ao mesmo diagnóstico, prognóstico, risco e objetivos do tratamento. Assim, todos pacientes foram esclarecido quanto os achados no intraoperatório. Nem todos pacientes dispunham do relatório de alta hospitalar das internações prévias e, por essa razao, não foi possível comunicar formalmente todos os médicos envolvidos nas primeiras intervenções cirúrgicas quanto à abordagem do gossipiboma em nosso serviço.

 

CONCLUSÃO

Gossipiboma trata-se de um evento adverso e seu reconhecimento precoce é de extrema importância, já que reduz morbidade, além de prevenir complicações potencialmente fatais e implicações médico-legais. A melhor estratégia de prevenção é o treinamento contínuo da equipe no intuito de conhecer os tempos cirúrgicos e padronizar métodos de contagem. A segurança do paciente é também a segurança do cirurgiao e do hospital que o atende.

 

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