ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Dermatose bolhosa IgA linear: relato de caso
Linear IgA bullous dermatosis: case report
Izabella Rodrigues Reis Gomes1; Fernanda Tormin Tanos Lopes2; Amanda Neto Ladeira3; Marcela Fonseca Ladeira3
1. Hospital Infantil João Paulo II, Residência Médica em Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Hospital Infantil João Paulo II, Pneumologia e Alergia. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Hospital Infantil João Paulo II, Dermatologia. Belo Horizonte, MG - Brasil
Izabella Rodrigues Reis Gomes
E-mail: izabellarreis@gmail.com
Recebido em: 07/12/2018
Aprovado em: 26/03/2019
Instituição: Hospital Infantil João Paulo II, Residência Médica em Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil.
Resumo
A dermatose bolhosa IgA linear é uma doença autoimune, não hereditária, que ocorre em crianças e adultos, sendo caracterizada pela formação subepidérmica de bolhas e pelo depósito linear de imunoglobulina A (IgA) na zona da membrana basal. Este relato descreve um caso da doença em uma pré-escolar de 4 anos, admitida no Hospital Infantil João Paulo II com lesões bolhosas disseminadas com 15 dias de evolução. O diagnóstico foi confirmado por estudo histo-imunopatológico de biópsia de pele, sendo realizado tratamento com dapsona, com boa resposta. Por se tratar de enfermidade rara, este relato objetiva também alertar pediatras e dermatologistas para que, diante de quadros semelhantes, possa ser feito o diagnóstico precoce, evitando assim complicações e morbidades.
Palavras-chave: Dermatose Linear Bolhosa por IgA; Tratamento Farmacológico; Imunoglobulina A; Doenças Autoimunes.
INTRODUÇÃO
A incidência e a prevalência das doenças bolhosas autoimunes da infância (DBA) são desconhecidas, uma vez que grande parte da literatura existente consiste em relatos de casos e séries de casos. A formação de bolhas, marca clínica registrada dessas enfermidades, é causada pela interação entre estruturas essenciais para a integridade da pele (desmossomos, hemidesmossomos, fibrilas de ancoragem, etc) e auto-anticorpos, levando à clivagem da pele em diversos níveis. O diagnóstico clínico isolado é de difícil realização, requerendo a corroboração histológica e imunopatológica.1 As DBA mais comuns da infância são a dermatose bolhosa IgA linear, também chamada doença crônica bolhosa da infância, e a dermartite herpertiforme (DH). Outras entidades menos comuns incluem o pênfigo vulgar e foliáceo, epidermólise bolhosa adquirida, pênfigo cicatricial, penfigoide bolhoso e lúpus eritematoso sistêmico bolhoso.
A doença bolhosa crônica da infância é uma doença autoimune, não hereditária, que ocorre em crianças e adultos, sendo caracterizada pela formação subepidérmica de bolhas e pelo depósito linear de IgA na zona da membrana basal. A mesma tem sido reconhecida desde o final do século XIX, quando foi inicialmente considerada uma variante da dermatite herpertiforme.1 Em 1970, Jordon et al. propuseram o termo dermatose bolhosa crônica benigna da infância. Em 1988, a mesma foi reconhecida como a equivalente na infância da IgA linear em adultos.1 É de grande importância que dermatologistas e pediatras conheçam essa entidade patológica, pois o atraso diagnóstico pode levar à infecção secundária das lesões e, menos frequentemente, a morbidades como cicatrizes oculares e estenose faríngea.
MATERIAL E MÉTODOS
Estudo descritivo, sob a forma de relato de caso. Foi feita revisão de prontuário com coleta dos dados necessários para a descrição sumária do caso. Os principais achados referentes à dermatose bolhosa IgA linear foram obtidos a partir da análise de estudos mais recentes, utilizando as bases de dados da PubMed/MEDLINE (Medical Literature Analysis and Retrieval Sistem on-line), LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciElo (Scientific Eletronic Library Online).
DESCRIÇÃO DO CASO
Pré-escolar, 4 anos, sexo feminino, previamente hígida, admitida no Hospital Infantil João Paulo II em 01/11/2015 com queixa de surgimento de lesões bolhosas, inicialmente em membros inferiores, com 15 dias de evolução. Procurou atendimento em Centro de Saúde, sendo prescrita cefalexina. Mantendo-se afebril, evoluiu com piora do quadro, com aumento do número e do tamanho das bolhas. Procurou novo atendimento em que foi prescrita amoxicilina-clavulanato por 10 dias. As lesões evoluíram com aumento do eritema e drenagem de líquido claro, algumas apresentando crosta central.
História Pregressa: Gestação sem intercorrências, parto a termo sem complicações. Negava comorbidades, alergias medicamentosas, uso de medicações contínuas, internações prévias e cirurgias. Vacinas em dia. História familiar: pais e irmão gemelar saudáveis, sem história de quadro semelhante. À admissão, encontrava-se alerta, ativa, estável hemodinamicamente, queixando-se de odinofagia e prurido. Apresentava bolhas tensas com base eritematosa, algumas drenando conteúdo seroso, sem odor, além de lesões crostosas, de aspecto enegrecido (Figura 1).
Havia lesões disseminadas incluindo mucosa oral e genital, pavilhão auricular e região palmo-plantar, mas acometendo principalmente pernas, antebraços e dorso de mãos e pés. Em primeiro momento, questionou-se farmacodermia, epidermólise bolhosa ou penfigoide bolhoso. Iniciados soroterapia, anti-histamínico, analgésicos e antibioticoterapia venosa (oxacilina e gentamicina) na suspeita de infecção secundária. No terceiro dia de internação, foi avaliada pela Dermatologia, que aventou hipótese de dermatose bolhosa IgA linear e dermatite herpetiforme, orientando realização de biópsia de pele com imunofluorescência, dosagem de enzimas hepáticas e de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD), para início do tratamento com dapsona 2mg/kg. Foram então suspensos os antibióticos e iniciada também prednisolona 1mg/kg/dia.
Após 7 dias de uso da dapsona, a paciente evoluiu com queda de saturação de oxigênio (até 88%), sem esforço respiratório e sem resposta à oferta de oxigênio em cateter nasal. Coletada gasometria arterial com dosagem de meta-hemoglobina, que apresentava-se elevada (11,8; Valor de referência < 2), optando-se então por suspender a dapsona. Evoluiu com pico febril e surgimento de novas lesões bolbosas sobrepostas e em áreas antes preservadas. Iniciada anti-bioticoterapia com ciprofloxacino e rifampicina, guiada pela cultura de secreção da pele.
Após discussão com equipe de Toxicologia do Hospital João XXIII, foi reiniciada dapsona 1,1mg/kg/dia, com acompanhamento rigoroso de sinais de hipoxemia. Resultado de biópsia de pele revelou bolha subepidérmica rica em neutrófilos e imunofluorescência direta, com pesquisa positiva para imunodepósitos de IgA, padrão linear na zona da membrana basal (Figura 2), e negativa para imunodepósitos de IgG, IgM, C3, C1q e fibrinogênio, confirmando a hipótese de dermatose bolhosa IgA linear.
Após 4 dias da reintrodução da dapsona, apresentou novo episódio de dessaturação assintomática, com meta-hemoglobinemia de 26,2%, sem indicação ao uso de antídoto. Devido à boa resposta, optou-se por manter o tratamento, com redução da dose da dapsona para 0,6mg/kg/dia e aumento gradual, com adequada tolerância. Recebeu alta após 35 dias de internação, em boas condições clínicas, com remissão parcial das lesões, em uso de dapsona 0,9mg/kg/dia e prednisolona 1mg/kg/dia, para acompanhamento ambulatorial com a dermatologia.
DISCUSSÃO
A dermatose bolhosa IgA linear pode afetar tanto adultos quanto crianças, apresentando algumas particularidades de acordo com a faixa etária acometida. Na infância, ela normalmente tem início após os 6 meses de vida, com um pico de incidência entre 4 e 5 anos. Observa-se acometimento cutâneo e mucoso, sendo comum doença prodrômica não específica de curta evolução, podendo ser acompanhada por sintomas sistêmicos como febre e anorexia. Tem como característica típica o surgimento abrupto de bolhas tensas na pele aparentemente normal ou ocasionalmente em placas urticariformes.
As lesões bolhosas podem ser localizadas ou disseminadas, sendo as localizações mais comuns a face, extremidades, tronco e genitália.2 Uma característica patognomônica das lesões é a distribuição em roseta de “colar de pérolas” ou a aparência de “aglomerado de joias” criada pelo surgimento de novas lesões bolhosas nas margens das antigas. As lesões podem ter conteúdo seroso ou hemorrágico com clareamento central e aparência policíclica. Com a melhora das lesões, surgem mudanças pigmentares transitórias, geralmente evoluindo com resolução completa sem cicatrizes permanentes.
Já nos adultos, tem início após a puberdade ou após a sexta década de vida, podendo simular lesões de penfigoide bolhoso, dermatite herpertiforme ou epidermólise bolhosa adquirida.3 Tem como característica o acometimento dos membros, tronco, nádegas e face. Em ambas as formas, o prurido pode estar presente em intensidade variável, podendo haver acometimento das mucosas principalmente oral e ocular. As lesões orais consistem em úlceras dolorosas e gengivite descamativa, o acometimento faríngeo pode levar a dificuldade respiratória secundária à estenose da mucosa. A conjuntivite crônica pode levar a sinéquias e perda visual.4 A doença acomete todas as raças, com uma discreta prevalência no sexo feminino.3,5
A doença é idiopática na maioria das vezes, podendo ser desencadeada por infecções, drogas, vacinas, radiação ultravioleta ou malignidades.1 Acredita-se que tais eventos levam algum componente da membrana basal a se tornar antigênico, entretanto, a sequência de eventos que provocam tal mudança é desconhecida. Os autoanticorpos são mais comumente dirigidos contra fragmentos proteolíticos do colágeno tipo XVII.6 Pode haver uma susceptibilidade genética à doença bolhosa crônica da infância, com um aumento da incidência de HLA-B8, HLA-DR3 e HLADQW2. Entretanto, sua base molecular ainda não esta claramente determinada.7
Das drogas envolvidas, a mais comumente associada é a vancomicina, seguida por amiodarona, anti-inflamatórios não-esteroidais, captopril e ceftriaxona.4,5 Na doença induzida por drogas, o surgimento das bolhas geralmente ocorre dentro de 7 a 15 dias com resolução dentro de 2 a 7 semanas a partir da retirada da droga suspeita.8 Quando comparada aos casos idiopáticos, a IgA linear associada a drogas apresenta algumas particularidades.
Revisões realizadas por Kuechle et al.9 e Nousari et al.8 sugerem que, nos quadros induzidos por drogas, as lesões mucosas ou conjuntivais estavam ausentes, enquanto que até 40% dos pacientes com dermatose IgA linear idiopática apresentam acometimento mucoso. Kuechle et al.9 relataram a remissão e clearence dos depósitos imunológicos após suspensão da medicação, enquanto que apenas 10 a 50% dos pacientes com a forma idiopática apresentam remissão dos depósitos. Além disso, os pacientes com quadro induzido por drogas tendem a ser mais velhos do que aqueles com doença idiopática.8
Com relação à malignidade, ainda não foi elucidado se a dermatose IgA linear pode ser considerada uma manifestação paraneoplásica ou se a mesma surge concomitantemente com a malignidade, como uma mera coincidencia.4
O diagnóstico é feito através da biópsia de pele com coloração com hematoxilina eosina e pelo teste de imunofluorescência. A histologia é caracterizada por lesões bolhosas subepidérmicas com um infiltrado predominantemente neutrofílico na derme papilar, embora células mononucleares e eosinófilos ocasionais também possam ser vistos. O teste de imunofluorescência da pele perilesional é o padrão-ouro para diagnóstico e demonstra o depósito linear de IgA ao longo do zona da membrana basal.10 Os anticorpos circulantes são da classe IgA1, podendo ser encontrados em mais de 90% dos pacientes.11
O objetivo do tratamento é obter o controle das lesões bolhosas evitando-se os efeitos adversos. A dapsona é considerada a droga de escolha com dose inicial baixa de 0,5 mg/kg seguida por aumento lento da dose até controle dos sintomas e das lesões bolhosas (geralmente 2 mg/kg/dia). Efeitos adversos dose dependente incluem hemólise, especialmente em pacientes com deficiência da glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD), e metahemoglobinemia, a qual manifesta-se com cianose, dispneia, letargia e cefaleia.12
Crianças com deficiência de G6PD nas quais a dapsona e a sulfapiridina são contraindicadas devem ser tratadas com um agente alternativo. A colchicina, que exerce seu efeito anti-inflamatório pela inibição da motilidade, adesividade e quimiotaxia dos neutrófilos, tem demonstrado ser um opção eficaz nesses casos.6 Outras opções incluem as sulfonamidas, corticoesteroides orais, micofenolato de mofetila, azatioprina, metotrexate e ciclosporina. Existem ainda relatos do uso de antibióticos como a doxiciclina, eritromicina e oxacilina.4
A dermatose IgA linear na infância é geralmente considerada como tendo um bom prognóstico, com resolução espontânea dentro de meses a anos, geralmente próximo da puberdade. A forma neonatal tem sido associada com envolvimento grave da mucosa e falência respiratória.13 Sequelas permanentes, incluindo a cegueira e disfagia, foram descritas.13,14
CONCLUSÃO
A dermatose bolhosa IgA linear é uma doença autoimune bolhosa rara. Este relato alerta para esta condição, enfatizando suas manifestações clínicas, para que ela possa ser precocemente reconhecida. Salienta ainda a importância do diagnóstico histo-imunopatalógico, bem como o tratamento de primeira escolha. Embora a maioria dos pacientes tolere bem a droga, a dapsona deve ser administrada com cautela, uma vez que podem ocorrer efeitos adversos potencialmente graves.
REFERÊNCIAS
1. Mintz EM, Morel KD. Clinical features, diagnosis, and pathogenesis of chronic bullous disease of childhood. Dermatol Clin. 2011;29(3):459-62.
2. Kanwar AJ, Sandhu K, Handa S. Chronic bullous dermatosis of childhood in north India. Pediatr Dermatol. 2004;21(5):610-2.
3. Rao CL, Hall III RP. Dermatose por Imunoglobulina A e Doença Bolhosa Crônica da infância. In: Wolff K, Goldsmith LA, Katz SI, Gilchrest BA, Paller AS, Leffell DJ, eds. Fitzpatrick Tratado de Dermatologia. 7ª ed. Rio de Janeiro: Revinter; 2011. p. 485-90.
4. Fortuna G, Marinkovich MP. Linear immunoglobulin A bullous dermatosis. Clin Dermatol. 2012;30(1):38-50.
5. Venning VA. Linear IgA disease: clinical presentation, diagnosis, and pathogenesis. Immunol Allergy Clin North Am. 2012;32(2):245-53.
6. Ang P, Tay YK. Treatment of linear IgA bullous dermatosis of childhood with colchicine. Pediatr Dermatol. 1999;16(1):50-2.
7. Sachs JA, Leonard J, Awad J, McCloskey D, Festenstein H, Hitman GA, et al. A comparative serological and molecular study of linear IgA disease and dermatitis herpetiformis. Br J Dermatol. 1988;118(6):759-64.
8. Nousari HC, Kimyai-Asadi A, Caeiro JP, Anhalt GJ. Clinical, demographic, and immunohistologic features of vancomycin- induced linear IgA bullous disease of the skin. Report of 2 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore). 1999;78(1):1-8.
9. Kuechle MK, Stegemeir E, Maynard B, Gibson LE, Leiferman KM, Peters MS, et al. Drug-induced linear IgA bullous dermatosis: report of six cases and review of the literature. J Am Acad Dermatol. 1994;30(2 Pt 1):187-92.
10. Collier PM, Wojnarowska F, Millard PR. Variation in the deposition of the antibodies at different anatomical sites in linear IgA disease of adults and chronic bullous disease of childhood. Br J Dermatol. 1992;127(5):482-4.
11. Wojnarowska F, Bhogal BS, Black MM. Chronic bullous disease of childhood and linear IgA disease of adults are IgA1-mediated diseases. Br J Dermatol. 1994;131(2):201-4.
12. Mintz EM, Morel KD. Treatment of chronic bullous disease of childhood. Dermatol Clin. 2011;29(4):699-700.
13. Salud CM, Nicolas ME. Chronic bullous disease of childhood and pneumonia in a neonate with VATERL association and hypoplastic paranasal sinuses. J Am Acad Dermatol. 2010;62(5):895-6.
14. Kishida Y, Kameyama J, Nei M, Hashimoto T, Baba K. Linear IgA bullous dermatosis of neonatal onset: case report and review of the literature. Acta Paediatr. 2004;93(6):850-2.
Copyright 2023 Revista Médica de Minas Gerais
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License