ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Papilomavírus humano em regiao anal: Revisão de literatura
Human papillomavirus in anal region: Literature review
Bruna Karoline Santos Melo Monteiro; José Gilmar Costa Santos; Milena Mauricio Maia; Djenal Nunes de Freitas; Jose Rodrigo Santana Silveira; Thayana Santos de Farias; Julia Maria Gonçalves Dias
Universidade Federal de Sergipe, Departamento de Medicina - Aracaju - Sergipe – Brasil
Endereço para correspondênciaJosé Gilmar Costa Santos
jgilmanu@hotmail.com
Recebido em: 02/09/2017.
Aprovado em: 08/07/2019.
Instituiçao: Universidade Federal de Sergipe, Departamento de Medicina - Aracaju - Sergipe – Brasil
Resumo
Este artigo apresenta uma revisão da literatura sobre a infecção anorretal pelo papilomavírus humano (HPV), descrevendo aspectos gerais deste agente etiológico e do acometimento anorretal, como as diferentes lesões, epidemiologia, fatores de risco, prevenção, diagnóstico e tratamento. Foi realizada uma pesquisa de natureza qualitativa e exploratória, utilizando publicações disponíveis em diferentes bases de dados. A infecção pelo HPV representa um grave problema de saúde pública, sendo prevalente mundialmente, principalmente em países em desenvolvimento. Associado à presença de lesões cutaneomucosas e com importante potencial oncogênico, o vírus é responsável pela ocorrência de neoplasias, como câncer de colo uterino e anorretal. Quase todos os casos de cânceres anorretais estao associados ao HPV, revelando-se mundialmente crescente a incidência dessa neoplasia. Assim, o HPV é um carcinógeno infeccioso anorretal significativo que requer uma investigação aprofundada. A adoção de medidas preventivas individuais é de grande importância, assim como a utilização da vacinação profilática. A realização de rastreamento de lesões anorretais pelas técnicas diagnósticas existentes é fundamental para aumentar a chance de cura com o tratamento instituído, como medicações tópicas, imunomoduladores e procedimentos cirúrgicos.
Palavras-chave: Papillomaviridae; Infecção; Neoplasias do Anus; Neoplasias Retais.
INTRODUÇÃO
A infecção pelo papilomavírus humano (HPV) é uma das infecções de transmissão sexual mais frequentes no mundo, acometendo principalmente colo do útero, vulva, vagina e pênis, além da mucosa oral e laríngea. Além disso, o vírus pode acometer a regiao anorretal.1
O câncer de ânus possui crescente incidência. Os tumores malignos do ânus e canal anal são entidades raras, não ultrapassando a taxa de 2% de todos os tumores do intestino grosso e cerca de 3% a 3,5% dos tumores anorretais, porém, sua incidência na população tem crescido em contrapartida ao câncer do colo do útero, que tem diminuído ao longo dos últimos 40 anos.2 O HPV está associado a 90% dos carcinomas espinocelulares (CEC) anais.1,3
Dessa forma, este trabalho apresenta uma revisão da literatura sobre a infecção anorretal pelo HPV, descrevendo aspectos gerais deste agente etiológico e do acometimento anorretal. Foi realizada uma pesquisa de natureza qualitativa e exploratória, utilizando publicações disponíveis em diferentes bases de dados.
O PAPILOMAVIRUS HUMANO
CLASSIFICAÇÃO
Os tipos de HPV podem ser classificados em vírus de alto e baixo risco oncogênico, a depender da propensão das células infectadas à transformação neoplásica.4 Os de baixo risco estao associados às verrugas anogenitais (condiloma acuminado), papilomas orais e conjuntivais, papilomatose respiratória recorrente (em lactentes e crianças pequenas) e displasia leve, sendo representados principalmente pelos tipos 6, 11, 40, 42, 43, 54, 61, 70, 72, 81. Os de alto risco estao associados às lesões intraepiteliais de alto grau (HSIL) e às neoplasias invasoras, sendo representados principalmente pelos tipos 16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56, 58, 59, 68, 73 e 82. Infecções mistas, ou seja, com a presença de vários tipos de vírus numa mesma lesão, são bastante comuns.5,6
Outro método de classificação do papilomavírus é baseado na comparação de sequências de nucleótidos, em que os diferentes tipos são organizados em agrupamentos filogenéticos maiores e classificados com uma letra grega. Essa classificação compreende cinco gêneros: Alfa, Beta e Gammapapillomavirus, que representam os maiores grupos, e Nu e Mupapilomavírus, que compreendem apenas 3 tipos de HPV. Dos cinco gêneros, o grupo dos Alfapapillomavírus é o maior deles e engloba tipos virais com potencial de infectar tecidos cutâneos e mucosos, enquanto os outros grupos se restringem ao tecido cutâneo. Nesse grupo, existe uma subdivisão que classifica seus tipos como cutâneo de baixo risco, mucoso de baixo risco ou de alto risco, segundo sua associação com o desenvolvimento do câncer. Nele estao incluídos, entre outros, os seguintes tipos de HPV: 06 e 11 (baixo risco) e 16, 31, 35, 33, 52, 58 (alto risco).7
MORFOLOGIA E PATOGENICIDADE
O HPV é um vírus de forma icosaédrica, não envelopado, com 55 nm de diâmetro e 72 capsômeros. Tais capsômeros, localizados em cada um dos 12 vértices, são pentavalentes, isto é, circundados por cinco capsômeros adjacentes, e os outros 60 capsômeros são hexavalentes.8 Pertence à família Papillomaviridae, mais de 200 tipos virais já foram identificados e cerca de 40 destes infectam o trato genital feminino.5,6
O genoma da partícula viral está dividido em três regioes principais: longo controle (LCR – long control region), precoce (E – early) e tardia (L – late). A LCR, regiao não codificada e também chamada de URR (upstream regulatory region), fica localizada em uma das fitas de DNA e possui oito genes. Representando 15% do genoma, a LCR contém a origem da replicação e o controle dos elementos para transcrição e replicação. A regiao E, que engloba 45% do genoma, apresenta sete genes – E1, E2, E4, E5, E6, E7, E8 – que regulam a transcrição e a replicação viral e controlam o ciclo celular, conferindo ao vírus potencial para transformar e imortalizar as células hospedeiras, possuindo, assim, propriedades de transformação oncogênica. Na regiao L localizam-se os genes L1 e L2. Esses genes têm sequências altamente conservadas em todos os papilomavírus, são responsáveis pela sua imunogenicidade e carregam determinantes antigênicos gênero-específicos e também apresentam códigos para a formação de proteínas de capsídeo viral.8
A infecção inicial pelo HPV provavelmente ocorre em células-tronco epiteliais, ou em células que estao se dividindo, localizadas nas camadas mais baixas do epitélio estratificado, ao passo que as células mais profundas do epitélio estao se dividindo, migram da camada basal e se tornam diferenciadas. Com a diferenciação das células epiteliais basais, o vírus amplifica seu material genético e libera novos vírions com mudança de padrao da expressão gênica.9
Morfologicamente, esse processo acontece com a indução da expressão de genes virais do HPV nas células basais, após a infecção. A interação do HPV com as células hospedeiras ocorre por meio de receptores de superfície, como proteoglicanos de heparan-sulfato e alfa-6 integrina. As proteínas precoces E1 e E2 são requeridas para a iniciação da replicação, sendo que E2 controla a expressão de E6 e E7.
O modo de replicação é dado pelo mecanismo "rolling circle", durante o qual o vírus é integrado ao genoma humano. Essa integração desorganiza o gene E2 e resulta em uma maior expressão das oncoproteínas E6 e E7 e conduz à transformação celular. Essa transformação é iniciada com a degradação e perda da atividade de p53, induzida pela proteína E6. A degradação é realizada através da formação de um complexo entre p53, E6 e E6AP. No estado fisiológico, p53 funciona como um gene supressor de tumor que regula o crescimento celular e, quando sofre qualquer tipo de mutação, leva ao aparecimento de tumores. Além disso, a proteína E7 se liga ao inibidor da quinase dependente da ciclina, resultando na perda de controle sobre o ciclo celular. Após a replicação viral, os genes L1 e L2 formam o capsídeo do vírus e o vírus maduro é produzido. Finalmente, o vírus é libertado com a ajuda de proteínas de E4.4,7
O papel dos genes E6 e E7 na replicação viral é modificar o ambiente celular para permitir a amplificação do genoma viral. No caso de tipos de HPV de alto risco, E6 e E7 também parecem conduzir a proliferação celular nas camadas basais e parabasais. Em contrapartida, no caso dos tipos de baixo risco – HPV6 e HPV11 (ou outros tipos de HPV que têm uma tendência para causar lesões benignas), o papel preciso destas proteínas nas células basais infectadas não é claro. Na verdade, as diferenças funcionais das proteínas E6 e E7 representam um dos principais determinantes da patogenicidade do HPV entre os seus diferentes tipos.7
A patogenicidade viral depende de múltiplos fatores, incluindo o genótipo do vírus, a natureza da célula infectada (tropismo) e o estado de imunidade do hospedeiro. Acredita-se que o tropismo é controlado principalmente pelo nível da expressão de genes virais e que os elementos reguladores na regiao LCR são de importância fundamental na determinação do alcance tecidual dos diferentes tipos de HPV.4
FATORES DE RISCO
A forma mais comum de transmissão do HPV acontece por via sexual, sendo também possível ocorrer não sexualmente e, ocasionalmente, através de fômites. Início precoce da atividade sexual, múltiplos parceiros sexuais e o uso de contraceptivos orais constituem alguns dos fatores de risco para a infecção. Além disso, o baixo nível socioeconômico, tabagismo, maternidade precoce e ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) também contribuem para aumentar as chances de infecção. No entanto, na maioria dos casos a infecção ocorre de forma subclínica e o vírus é eliminado pelo sistema imunológico. A persistência do HPV no organismo tem sido associada à oncogênese.10-12
Em 60% das mulheres com HPV-DNA detectado haverá desenvolvimento de anticorpos séricos contra o vírus (HPV soropositivos). Uma minoria de infecções pode persistir, e mulheres com HPV de alto risco persistente têm um risco substancial de desenvolvimento de pré-câncer cervical ou NIC 3. As NICs 3 são os alvos de rastreio, porque mais de um terço delas irá evoluir para o câncer cervical invasivo dentro de 10-20 anos.13
O fator de risco mais consistente e documentado para a infecção por HPV é o número de parceiros sexuais. Quanto maior o número de parceiros, maior o risco de adquirir o vírus, mas a atividade sexual com apenas um parceiro que tem ou teve vários parceiros também está relacionada à infecção.10 Depende ainda do genótipo viral e, provavelmente, do comportamento sexual e métodos contraceptivos utilizados por essas mulheres.12
A circuncisão e o preservativo oferecem uma proteção parcial contra a infecção por HPV. Foi demonstrado que homens não circuncidados apresentam um risco significativamente maior de infecção pelo HPV em comparação com os homens circuncidados (19,6% contra 5,5%).10
As maiores taxas de prevalências são em mulheres mais jovens. Esse número diminui no grupo da meia idade, havendo outro pico após os 50-60 anos, exceto em mulheres asiáticas. A razao para este pico ainda não está clara, mas pode ter associação com a reativação de uma infecção prévia que não tenha sido detectada ou com a aquisição da infecção por um novo contato sexual, tanto pela mulher como pelo homem, devido principalmente às mudanças dos padroes de comportamento sexual nas últimas décadas.14 Mulheres infectadas pelo HIV e gestantes também apresentam maior suscetibilidade à infecção pelo HPV.
EPIDEMIOLOGIA
Em geral, 5,2% de todos os cânceres em todo o mundo podem ser atribuídos à infecção pelo HPV, resultando em mais de 600 mil novos casos mundiais por ano.1,6 Estimativas mundiais indicam que 20% dos indivíduos sadios estao contaminados pelo HPV. A maior parte das infecções é assintomática, sendo 70% em países em desenvolvimento. O HPV provocou 260 mil mortes ao redor do mundo em 2005, sendo a causa mais comum da letalidade por câncer em países em desenvolvimento.3 O vírus tem sido associado a mais de 90% dos cânceres cervicais e anais, bem como 70% dos cânceres vaginais e vulvares, 70% dos cânceres da orofaringe e mais de 60% dos cânceres penianos.5
A proporção de pessoas infectadas varia de acordo com as populações e regioes pesquisadas. Mulheres jovens sexualmente ativas possuem as taxas mais altas de prevalência da infecção viral, entre 50% e 80% após dois a três anos do início da atividade sexual.12 Estudos mostram que a infecção viral acomete principalmente a população feminina na faixa dos 25 anos. Aproximadamente 80% das mulheres sexualmente ativas serao contaminadas com algum tipo de HPV até os 50 anos de idade, e aproximadamente 99% dos casos de câncer do colo do útero têm relação com sorotipos invasivos de HPV.9
Estudos epidemiológicos em adolescentes e mulheres jovens dos Estados Unidos mostraram que a prevalência da infecção pelo HPV cervical varia entre 51% e 64%. A prevalência dessa infecção em homens é menos definida, principalmente devido à dificuldade na obtenção de amostras adequadas para detecção do vírus. Estimativas gerais em homens variam de 16% a 45% de infectados, e são semelhantes ou superiores às encontrados em mulheres. Quase todas as infecções em homens são assintomáticas. Homens não circuncidados mostram um risco significativamente maior de infecção pelo HPV em comparação com os homens circuncidados (19,6% contra 5,5%).10
PAPILOMAVIRUS HUMANO ANORRETAL
A relação entre o câncer de colo do útero e o HPV já é bastante conhecida. No entanto, vários outros tipos de cânceres são conhecidos por estarem associados ao HPV, entre eles o câncer de pênis, orofaringe, vulva, vagina e ânus, destacando-se este último por sua crescente incidência.1,2
O HPV é o mais comum dentre os vários agentes etiológicos sexualmente transmissíveis que provocam doenças na regiao perianal.15 A maioria das infecções pelo HPV não tem qualquer consequência clínica, mas cerca de 10% dos pacientes desenvolverao verrugas, papilomas ou displasias. É descrita a possibilidade de progressão das displasias, ou neoplasias intraepiteliais anais (NIA), para carcinoma invasivo e a maioria ocorre na zona de transição do canal anal. Uma vez que o vírus passa por uma falha na barreira epitelial, o DNA viral pode acessar o núcleo celular e uma cepa de alto risco tem acesso aos tecidos que estao sendo reproduzidos. A infecção pode permanecer e disseminar, persistindo por décadas, com o risco aumentado de câncer.16
EPIDEMIOLOGIA
O câncer anorretal é incomum, mas sua incidência vem aumentando nos últimos 30 anos, tanto nos Estados Unidos como em outras partes do mundo. Na população em geral, a incidência é maior entre as mulheres. A prevalência de infecção por HPV anal é muito alta: cerca de 57% em homens HIV – negativos que fazem sexo com homens; e entre homens HIV – positivos a taxa de infecção é cerca de 60 vezes maior do que na população masculina em geral.11
A incidência do câncer anorretal nos Estados Unidos é de aproximadamente 8 casos em cada 100.000 pessoas/ano. No Brasil, a estimativa da incidência de câncer de cólon e reto foi de 34.280 indivíduos, sendo 16.660 homens e 17.620 mulheres. E, de câncer anorretal, o número de mortes foi de 348, sendo 106 homens e 242 mulheres.17 Um estudo realizado entre 1.378 mulheres ≥18 anos recrutadas em estabelecimentos de saúde no Havaí calculou uma prevalência de HPV anal de 27%.18
Entre 1973 e 1979, as taxas de câncer anorretal foram menores para os homens do que para as mulheres (1,06 por 100.000 em comparação com 1,39 por 100 mil, respectivamente). No entanto, entre 1994 e 2000, as taxas foram semelhantes para homens e mulheres (2,04 por 100.000 e 2,06 por 100.000, respectivamente) e aumentou para ambos os sexos.2
LESÕES PRÉ-NEOPLASICAS ANORRETAIS
O sistema de classificação histopatológica da Organização Mundial da Saúde (OMS) se equivale ao sistema Bethesda, que serve tanto para classificação citológica quanto histológica. Essas classificações foram originalmente propostas para lesões precursoras e cânceres cervicais, contudo, como os cânceres cervicais e anais têm histologias semelhantes, com ambos surgindo frequentemente na junção escamoso-colunar, a classificação serve para ambos.19
O sistema de classificação da OMS estabelece lesões precursoras de cânceres anais. E leva em conta tanto as alterações citoarquiteturais do epitélio como as alterações das células escamosas proliferativas (células escamosas metaplásicas) com algumas características nucleares alteradas: a) tamanho nuclear aumentado; b) irregularidades nos núcleos das membranas; c) aumento da razao núcleo/citoplasmática.16
As lesões precursoras são classificadas em: a) condiloma; b) ascus: existem atipias em células escamosas, mas em grau insuficiente para caracterizar uma lesão intraepitelial; c) neoplasia intraepitelial anal grau 1 (NIA 1): são geralmente autolimitadas, podendo evoluir para NIA 2 ou 3 e têm escassa ou nenhuma alteração citoarquitetural do terço médio e superficial do epitélio; d) neoplasia intraepitelial anal grau 2 (NIA 2): são lesões mais agressivas e as alterações citoarquiteturais chegam ao terço médio do epitélio; e e) neoplasia intraepitelial anal grau 3(NIA 3): são lesões mais agressivas e as alterações citoarquiteturais chegam a alcançar todo o epitélio.16,20
As NIAs podem ser classificadas no sistema Bethesda como lesão intraepitelial de baixo grau (LSIL), que equivale à NIA 1, e lesão intraepitelial de alto grau (HSIL), que equivale às NIA 2 e 3.16,20
CANCER ANORRETAL E PAPILOMAVIRUS HUMANO
O câncer anorretal é uma doença maligna incomum, ocorrendo a uma taxa de 1/100.000, contudo, sua incidência nos Estados Unidos e em outros países aumentou durante várias décadas. Trata-se de uma das poucas doenças malignas sem uma etiologia hormonal conhecida que é mais frequente entre as mulheres. Durante a última década, estudos epidemiológicos com técnicas de detecção de última geração mostraram que a maioria dos cânceres anorretais em ambos os sexos está associada à infecção por HPV.21
O risco de câncer anorretal é elevado em mulheres com cânceres cervical e vulvar, presumivelmente devido a uma exposição compartilhada às infecções por HSIL-HPV. O canal anal compartilha as características histológicas do colo do útero que podem ser devidas a uma etiologia comum.22 Semelhante ao observado para o câncer de colo do útero, a maioria dos cânceres anorretais se desenvolve na zona de transição da mucosa glandular para a mucosa escamosa do reto. Além disso, a história natural da malignidade anal tem paralelos estreitos com a da neoplasia do colo do útero, no desenvolvimento inicial de um precursor displásico à neoplasia intraepitelial.21
FATORES DE RISCO PARA CANCER ANORRETAL
O HPV provoca lesões clínicas e subclínicas que podem evoluir para carcinoma anal. Existe um aumento da incidência desse tipo de tumor naqueles que praticam sexo anal; nos portadores, de ambos os sexos, de lesões genitais HPV induzidas; nas pessoas com neoplasias intraepiteliais anais de alto grau, o precursor do carcinoma; e nos infectados pelo HIV. Outros grupos de risco incluem doentes imunodeprimidos crônicos por causas que não o HIV e, dentre eles, os que receberam transplantes de órgaos e os que usam medicações que tratam doenças autoimunes.15,22
Mulheres com lesões genitais HPV induzidas, incluindo o carcinoma cervical, têm maior incidência de câncer anorretal e de suas lesões precursoras, sendo consideradas como população de risco para esse tipo de tumor.21,22 Estudo sugere que, além do histórico de condiloma, que reflete a exposição ao HPV, e prática de sexo anal, meio pelo qual o vírus teria acesso ao canal anal, o tabagismo constitui fator de risco para o câncer anorretal. Aponta-se, ainda, a homossexualidade como um importante fator de risco para o câncer anorretal entre homens.2 Existem evidências de que o HPV pode ser transmitido para os genitais através de contatos sexuais sem penetração, como a manipulação digital e oral pelos parceiros.18
A proximidade da genitália feminina ao ânus poderia facilmente permitir a extensão da infecção de uma regiao para outra sem a necessidade de algum contato sexual anal com um parceiro infectado. Em ambos os sexos, outros fatores, como a coexistência de IST anogenital ou outras condições inflamatórias ou distúrbios de imunidade geral ou local, parecem ser mais importantes para o desenvolvimento do condiloma anal do que qualquer tipo específico de prática sexual.22
A detecção de múltiplos sorotipos de HPV está associada com lesões anais e sua progressão para lesões de alto grau em um seguimento de mais de dois anos em pacientes homens, HIV positivo e negativo, quando comparado com a presença de um único sorotipo de HPV ou ausência deste.20
PREVENÇÃO
A contaminação pelo HPV só pode ser efetivamente evitada com abstinência sexual completa para todas as práticas sexuais, isso porque os preservativos não garantem proteção total e o vírus pode ser transmitido mesmo por atividades sexuais sem penetração.3
Uso de preservativos e rastreamento precoce das lesões precursoras estao entre as formas de prevenção do câncer anorretal. A possibilidade da detecção dessas lesões indica que programas padronizados de rastreamento e protocolos de tratamento para NIAs, em doentes de risco, devem ser instituídos. Os esfregaços anais para citologia vêm sendo realizados, com eficácia semelhante às coletas cervicais, e com sensibilidade oscilando entre 42% e 98% e especificidade variando de 38% a 96%, quando os resultados foram comparados aos de histologia. Além do exame citológico anal em pacientes com lesões no ânus, os pacientes com verrugas genitais, e sem condilomas anais, também devem ser submetidos ao exame da regiao perianal para detecção e tratamento de lesões subclínicas como forma de rastreamento e prevenção do câncer anorretal.15
Outra aliada à prevenção das lesões induzidas pelo HPV é a imunização preventiva. As vacinas contra o HPV atualmente disponíveis cobrem os sorotipos 16 e 18 e, no caso da quadrivalente, também os sorotipos 6 e 11, tendo eficácia de 100% das verrugas, por 90% das lesões pré-cancerosas de alto grau.3 A vacina não altera o curso da doença pré-existente, mas protege o indivíduo das cepas às quais não foi exposto. Uma vez que a infecção é geralmente adquirida logo após o início da vida sexual, a vacina é recomendada para mulheres que ainda não iniciaram essa atividade. A idade sugerida para vacinação é aos 11 e 12 anos, podendo ter início a partir dos 9 anos. Essas vacinas apresentam proteção cruzada para os sorotipos 31, 33 e 45. Contudo, não foi observada relevância clínica na proteção contra os sorotipos 33 e 45. Aprovada em dezembro de 2014, a vacina nonavalente vem trazendo estes sorotipos e outros mais: 31, 33, 45, 52, 58, 6, 11, 16, 18.1
Acredita-se que a mulher é contaminada pelos homens com lesões penianas e estima-se que a vacinação possa reduzir 10% das consultas das clínicas de ISTs.3 E com a redução dos custos da vacina, a vacinação de meninos foi possível economicamente em alguns países, inclusive no Brasil. Garante-se, assim, uma melhora nos serviços de saúde ligados à intervenção na diminuição em longo prazo das taxas de infecção e transmissão da doença.1
DIAGNOSTICO
CITOLOGIA ANAL
A citologia por escovado do canal anal é um método de fácil execução por qualquer profissional de saúde, sem necessidade de anuscópio, sendo muito semelhante àquela já realizada para a coleta de citologia do canal cervical das mulheres, embora ainda não exista um consenso quanto à técnica que deve ser usada para a coleta com esfregaço, nem mesmo a sua periodicidade. Alguns trabalhos concluíram que ela deve ser feita cerca de quatro centímetros da borda anal, com movimentos de rotação, tendo cuidado para não tocar nas verrugas da margem anal, evitando, assim, a contaminação do canal anal.15,20,23
A citologia anal também pode ser coletada guiada por anuscopia para visualização da zona de transformação. Alguns autores postulam que a citologia anal seja um método mais aplicável do que a colposcopia para diagnóstico de lesão induzida e seguimento desses pacientes, devendo ser usada de forma ampla e irrestrita em todos os pacientes de risco.24 A classificação citológica é realizada da mesma forma do esfregaço cervical, pelo sistema Bethesda adaptado para esfregaço anal: Condiloma, ASCUS, HSIL, LSIL.25
ANUSCOPIA DE ALTA RESOLUÇÃO
Também chamada de "Anuscopia Magnificada" ou "Colposcopia Anal", esse exame consiste em examinar o canal anal e a regiao perianal com o auxílio de um aparelho (lupa ou colposcópio) que permita aumentar a imagem na tentativa de identificar as lesões displásicas, que são entao biopsiadas. A técnica consiste em avaliar a junção escamocolunar, canal anal e regiao perianal. Introduz-se um aparelho, chamado anuscópio, no ânus com auxílio de uma lubrificação por lidocaína; após isso, é instilada solução de ácido acético a 3% no canal anal. Logo após, utiliza-se colposcópio com aumento de 6 a 70 vezes para visualizar a "zona de transformação" do epitélio colunar do reto inferior (origem endodérmica) para o epitélio escamoso do canal anal (origem ectodérmica), buscando lesões representadas em áreas de aspecto acetobranco. Essas alterações estao relacionadas à coagulação reversível das proteínas nucleares e citoqueratinas, e, portanto, o efeito do ácido acético depende da quantidade de proteínas nucleares e citoqueratinas no epitélio, sendo mais intenso nas áreas de neoplasia intraepitelial, que apresentam uma maior densidade de células com núcleos.23,26
A seguir, é possível refinar o exame aplicando-se uma solução iodo-iodetada para fazer o teste de Schiller ou teste do iodo. Com esse teste, as células normais, ricas em glicogênio, captam mais o iodo, aparecendo de cor castanho escura ou preta, enquanto as áreas mais doentes, sugestivas de neoplasias intraepiteliais, aparecem claras ou de cor mostarda, por não captar ou captar mal o iodo.23
A classificação anuscópica é baseada na classificação colposcópica existente recomendada pela Federação Internacional de Patologia Cervical e Colposcopia (IFCPC) de 2011, respeitando as características locais da regiao anal:27
a) epitélio acetobranco (EAB): epitélio que se torna esbranquiçado após aplicação de solução de ácido acético devido à alta densidade de núcleos numa mesma área;
b) mosaico: alteração colposcópica na qual há neoformação vascular com padrao de linhas e divisões em redor de blocos de EAB;
c) pontilhado: aspecto colposcópico no qual os capilares são observados de forma vertical, em um desenho de pontilhado entre blocos de EAB;
d) condiloma: grupamento de pequenas papilas de base única (indica infecção por HPV);
e) erosão: área de epitélio desnudo, possivelmente anormal;
f) vasos atípicos: vasos se apresentam de forma irregular, com curso interrompido abruptamente, mudando de calibre e direção, indicativo de lesão de alto grau.
PESQUISA DE DNA HPV
O DNA HPV está presente em 90% dos cânceres anais. A grande maioria dos HPVs encontrados nessas lesões é do tipo 16 e 18.6,23 A pesquisa do DNA HPV é sensível, contudo, tem uma taxa de falso negativo de 15% e revela um valor preditivo positivo de 85%. Assim, deve ser complementada tanto com citologia quanto com anuscopia e biópsia das lesões.23
HISTOLOGIA
O sistema Bethesda é aplicado tanto para a citologia quanto para a histologia. As lesões suspeitas devem ser biopsiadas, após infiltração anestésica local, e podem apresentar como resultado: a) Normal; b) LSIL histológico ou NIA de baixo grau (NIA 1); e c) HSIL histológico ou NIA de alto grau (NIA 2 ou 3).25
TRATAMENTO
Há diversos tratamentos para a infecção anal pelo HPV. Os mais comuns são as medicações tópicas (podofilina, ácido tricloroacético e 5-fluorouracil), os imunomoduladores (imiquimode, resiquimode e interferon) e os procedimentos cirúrgicos (ablação elétrica, LASER, crioterapia e excisão cirúrgica).23
A escolha do tratamento deve ser pautada no número, no tamanho, na morfologia e localização das lesões, no custo do tratamento, na conveniência para o doente e nos efeitos adversos, devendo-se levar em conta a gestação, o estado imune do paciente e a experiência clínica do profissional.28
Dentre as medicações de uso tópico, o ácido tricloroacético (ATA) é eficaz em lesões de mucosa, porém tem limitações em pele queratinizada, onde a aplicação provoca ardor intenso. O 5-fluorouracil (5-FU), apesar da eficácia, causa desconforto, inflamação e, por ser teratogênico, deve ser evitado em gestantes.29,30 Cremes à base de 5-FU não são mais recomendados devido aos seus efeitos colaterais e sua comprovada teratogenia.28
O uso da podofilina é padronizado e seguro, todavia, não deve ser aplicado em mucosas, pois pode ser tóxico, se absorvido, nem utilizado em gestantes, pelo efeito teratogênico. Em doentes imunodeprimidos com verrugas grandes e multicêntricas, o tratamento tópico geralmente falha e a fulguração é o tratamento de escolha por minimizar a perda tecidual.29
Agentes da família da imidazoquinolina como o imiquimode e o resiquimode, medicações tópicas imunoterápicas e imunoestimulantes, atuam pela indução da secreção de citocinas pelos monócitos e macrófagos (interferon-alfa, interleucina-12 e fator de necrose tumoral alfa). A melhora da imunidade local e a indução da imunidade celular controlam as doenças provocadas por vírus, incluído o HPV.29
O imiquimode age através da redução qualitativa (diminuição de cepas mais virulentas) e quantitativa (redução do número dos tipos infectantes que coexistem) do HPV, diferentemente das outras formas de tratamento que não são imunomoduladoras. Embora a eficácia da medicação e sua melhor indicação venham sendo muito estudadas, não há padronização na literatura nem estudos prospectivos controlados, e com amostras homogêneas, com grau de evidência necessário para justificar seu uso como primeira linha no tratamento das lesões clínicas induzidas pelo HPV. Aliado a isso, o custo ainda é elevado em relação a outros esquemas tópicos.30
Alguns estudos comparando técnicas ablativas (cirurgia e infravermelho) com o miquimod, como primeira opção de tratamento, mostraram maior tempo livre de doença com o imunomodulador. Já comparando o tratamento tópico convencional (podofilina) com o miquimod, observou-se a mesma efetividade em relação ao índice de cura, porém, com maior custo do segundo.23,30 A utilização do interferon injetável pode ser considerada em alguns casos, mas seu uso rotineiro não é recomendado devido aos efeitos colaterais e ao elevado custo.28 Muitas vezes, o objetivo do tratamento químico não é apenas eliminar os condilomas, mas diminuí-los em número e volume, facilitando a ressecção cirúrgica, além de reduzir a taxa de recidivas. A ablação cirúrgica (eletrocoagulação, excisão, laserterapia) controla a doença.29
O emprego da crioterapia mostrou uma eficácia variando entre 79 a 88% na erradicação das lesões e taxas de recidiva entre 25% a 39%, necessitando em média duas a três aplicações. Não há grandes estudos multicêntricos comparando crioterapia com outros métodos, mas foram descritas respostas semelhantes comparando-a com podofilina, miquimod, ATA e eletrocauterização. Dentre as vantagens do método, cita-se a segurança, a simplicidade de aplicação, o uso tanto dentro quanto fora do canal anal, inclusive durante a gestação. O desconforto provocado é leve, dispensando anestesia e permite utilização ambulatorial sem maiores dificuldades. A cicatrização geralmente se faz em uma a duas semanas, com mínima formação de tecido cicatricial. Entretanto, máculas hipocrômicas podem ocorrer devido à sensibilidade dos melanócitos ao frio e à maior resistência do tecido conjuntivo. O agente criogênico mais utilizado é o nitrogênio líquido (182ºC negativos), que é aplicado com sondas metálicas ou com dispositivos de crio-spray. Infelizmente, requer estrutura relativamente cara para acondicionamento e aplicação.28
CONCLUSÃO
O HPV é um agente infeccioso sexualmente transmissível que acomete regioes cutaneomucosas, causando diferentes lesões e com potencial oncogênico importante. Muito prevalente mundialmente, é responsável pela maior parte dos cânceres de colo uterino e, tratando-se de neoplasias anorretais, está associado a quase 100% de todos os casos.
Além da via sexual de transmissão, também pode ser transmitido não sexualmente. Medidas preventivas são de fundamental importância, que vao desde evitar exposição sexual de risco até a utilização da vacina profilática, disponível em países como o Brasil. O diagnóstico precoce de lesões anorretais também apresenta muita relevância, possibilitando o melhor tratamento e mais chance de cura.
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