RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 16. 2

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Editorial

Os médicos e o SUS: a visão do gestor público

Helvécio Miranda Magalhães Júnior

 

Um dos desafios contemporâneos da implementação do Sistema Único de Saúde é a discussão do trabalho médico em todas as suas dimensões. É também preciso reconhecer que parte dos problemas hoje vividos pelos gestores e pelos profissionais médicos advem do desconhecimento desta agenda por parte do processo da reforma sanitária brasileira. Este processo a quem devemos a implantação do SUS formalizada na Constituição de 1988 ao não tratar adequadamente esta temática, aliás, como também ocorreu com a questão dos hospitais, nos deixou um enorme passivo, como se fosse possível criar modelos sanitários eficientes sem a participação e o efetivo comprometimento da categoria médica. Sem entrar no debate das causas, o que temos vivido hoje, gestores e profissionais, é um ambiente que combina, do ponto de vista dos gestores, a dificuldade de fixação dos médicos em seus serviços, uma inadequação da formação profissional em relação à realidade sanitária e operativa do sistema público de saúde e uma pressão permanente por melhorias na remuneração, a maioria das vezes justas em contradição com orçamentos limitados e responsabilidade fiscal opressora. Do ponto de vista dos médicos, via de regra uma grande insatisfação com o seu trabalho, que se distanciou do imaginário liberal puro que o motivou na maioria das vezes a escolher a profissão, um enorme risco profissional pela falta de qualificação técnica e ética, uma gigantesca precarização das relações de trabalho e na convivência diária com violência urbana crescente invadindo os seus espaços de trabalho. Resultando numa instabilidade de fixação nos serviços e municípios, levando a uma formação de gerações de nômades insatisfeitos. O resultado disto tudo é a não produção do cuidado aos nossos usuários na qualidade que eles tem direito e o estabelecimento de um ambiente conflitivo e desagradável. Amplia a dimensão do problema a ampliação vigorosa dos postos de trabalho para médicos nos últimos anos no SUS e no campo da saúde suplementar, conforme atesta as pesquisas do IBGE e das próprias entidades médicas. Isto tudo numa situação de extrema medicalização da sociedade, também por conta dos modelos de atenção ainda hegemônicos e da pressão da indústria de equipamentos e medicamentos e pelas mudanças demográficas e epidemiológicas.

Não é possível continuarmos neste caminho. Não existem soluções mágicas ou simplistas para problemas complexos como este. É necessária, a nosso ver, uma conjugação de esforços de todos os atores envolvidos. Não é possível continuar com o modelo de formação médica, na graduação e na pós-graduação, desconhecendo a realidade sanitária do país e incoerente com os modelos avançados propostos pelo SUS, como a priorização da atenção básica e a exigência do mais complexo profissional médico, o generalista verdadeiro, exigindo um alto grau de formação ética e técnica e de capacidade de trabalho em equipe multidisciplinar. Não é justo com os alunos e profissionais recém-formados, coloca-los em contato com a dura realidade da profissão, e o SUS é o maior empregador do país, sem prepará-los adequadamente. Da mesma forma, é preciso avançar na desprecarização do trabalho médico (na atenção básica, nas portas de entrada de urgência e na atenção hospitalar), enfrentar sem discursos vazios a demanda da educação permanente presencial ou utilizando a moderna tecnologia da tele-saúde como já temos experimentado com ótimos resultados em BH, da articulação da rede de cuidados integrais possibilitando aos profissionais atuarem em mais de um ponto de atenção, distribuindo sua carga horária contratual entre a prática desafiadora e transformadora da saúde da família, as unidades de urgência geral e obstétrica, o ambiente hospitalar e a gestão, aumentando, com isso, o grau de satisfação pessoal. Necessário fazer um grande debate com toda a sociedade, envolvendo conselhos, gestores e entidades médicas, sobre o padrão de remuneração que é necessário e possível no mundo atual, sem falsas expectativas, mas também sem artimanhas por parte dos gestores. Finalmente, e sem isto tudo o que colocamos não alcançará nossos objetivos, a retomada da discussão ética com a categoria profissional, no sentido maior da ética do cuidado, da ética solidária e não solitária consigo próprio, com os outros médicos e com os usuários, sentido maior de nossa existência como profissionais médicos. Para este debate, todos estão convocados: os gestores de todos os níveis, o aparelho formador público e privado, as entidades médicas, os conselhos de saúde, enfim toda a sociedade. É preciso resgatar esta dívida histórica a respeito do trabalho médico da sua importância e de seus problemas. Que a experiência que temos gerado em BH, de uma grande articulação da gestão do SUS, da Faculdade de Medicina da UFMG e das entidades médicas possa ser o sinalizador destes novos tempos, em que médicos, seus companheiros de equipe multiprofissional, os usuários e os gestores estabeleçam um novo patamar de relação. O SUS e a sociedade só têm a ganhar com isto. Vamos continuar nesta luta!

Helvécio Miranda Magalhães Júnior

Médico, formado pela UFMG, Especialista em Clínica Médica e Epidemiologia, Doutor em Saúde Coletiva pela UNICAMP, Secretário Municipal de Saúde de Belo Horizonte e Presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS).