RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 29. (Suppl.8) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20190038

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Artigo Original

Análise do risco de neoplasia intraepitelial cervical com base na associação entre a microbiota local e infecção pelo papilomavírus humano em cidade do interior de Minas Gerais

Analysis of the risk of cervical intraepithelial neoplasia based on the association between local microbiot and infection by the human papillomavirus in the municipality within Minas Gerais

Bárbara Dias Lana Martins1; Franciane Braga de Abreu1; Igor Domingos de Sousa1; Izabella Rodrigues Pereira1; Lizandra Branth de Assis Campos1; Renato Santos Laboissière2; Cristina Maria Miranda Bello3

1. Acadêmico de graduação em Medicina da Faculdade de Medicina de Barbacena -FAME/FUNJOBE
2. Professor universitário / médico patologista; Doutor em Patologia; Universidade Federal de Minas Gerais
3. Professora universitária / bióloga; Mestre em Ciências - Microbiologia; Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

Renato Santos Laboissiere
E-mail: renatoslab@gmail.com

Resumo

INTRODUÇÃO: A infecção pelo Papilomavírus Humano (HPV) pode resultar em lesões epiteliais proliferativas e neoplásicas no colo do útero. A região genital feminina é colonizada por microrganismos essenciais para imunidade local, porém a alteração dessa flora tem potencial de favorecer o aparecimento de lesões associadas ao HPV.
OBJETIVOS: Identificar a frequência de alterações colpocitopatológicas provocadas pelo HPV e sua correlação com a microbiota local.
MÉTODOS: Estudo transversal, retrospectivo e observacional que analisou 5.907 laudos do Sistema de Informação do Câncer do Colo do Útero do Município de Barbacena (julho/2015 - junho/2016). A pesquisa enfatizou as variáveis "Microbiologia" e "Atipias em células escamosas" do setor Diagnóstico Descritivo presentes no formulário.
RESULTADOS: A frequência de alterações celulares associadas ao HPV foi de 2,5%, incluindo Neoplasias Intraepiteliais Cervicais (NICs) e células atípicas de significado indeterminado. Esses achados, associados à metaplasia, tiveram maior prevalência de 11 - 29 anos. Em relação à microbiota, a presença de lesões foi menor no grupo de mulheres colonizadas por Lactobacillus sp (RR= 0,54), enquanto nas colonizadas por bacilos supracitoplasmáticos foi maior (RR= 2,13). O uso de anticoncepcional hormonal (RR= 1,42), presença de sinais clínicos sugestivos de doenças sexualmente transmissíveis (RR= 3,04) e de metaplasia escamosa (RR=5,85) foram mais frequentes entre as pacientes com citologia sugestiva de infecção por HPV.
CONCLUSÕES: Nosso estudo encontrou uma frequência de 2,5% de alterações colpocitopatológicas associadas ao efeito do HPV. Além disso, identificamos a presença de Lactobacillus sp como um fator protetor para o desenvolvimento de tais lesões, contrapondo a infecção por bacilos supracitoplasmáticos.

Palavras-chave: Infecções por Papillomavirus. Neoplasia Intraepitelial Cervical. Microbiota.

 

INTRODUÇÃO

A infecção pelo Papilomavírus Humano (HPV) é uma das doenças sexualmente transmissíveis mais comuns, podendo resultar em lesões epiteliais proliferativas e neoplásicas no colo do útero, principalmente nos casos de infecção persistente, ou seja, não combatida pelo sistema imune. A região genital feminina é colonizada por diversos microrganismos essenciais para imunidade local, exercendo inúmeras funções protetoras destacando-se o efeito de barreira à colonização de microrganismos exógenos. O desequilíbrio da flora local tem potencial de favorecer o aparecimento de lesões associadas ao HPV. Sendo assim, o presente estudo visa identificar a frequência de alterações citopatológicas cervicais provocadas pelo HPV e sua correlação com as modificações da microbiota local.1

 

MATERIAIS

Foram analisados 5.907 laudos citopatológicos extraídos do Sistema de Informação do Câncer do Colo do Útero do Município de Barbacena, no período de julho de 2015 a junho de 2016.

 

MÉTODOS

Estudo transversal, retrospectivo e observacional com dados analisados por processamento estatístico de "software" (STATA 9.2).

 

RESULTADOS

A frequência de alterações celulares associadas ao HPV foi de 2,5%, incluindo Neoplasias Intraepiteliais Cervicais (NICs) e células atípicas de significado indeterminado. Esses achados, associados à metaplasia, tiveram maior prevalência na faixa etária de 11 a 29 anos. Em relação à microbiota, a presença de lesões associadas ao HPV foi menor no grupo de mulheres colonizadas por Lactobacillus sp (RR=0,54), enquanto nas colonizadas por bacilos supracitoplasmáticos foi maior (RR=2,13).

Associação da microbiota cervical com a presença de alterações celulares nos laudos do exame citopatológico realizados Laboratório Centro Ambulatorial Dr. Agostinho Paolucci do município de Barbacena, no período de julho de 2015 e junho de 2016.

 

 

O uso de anticoncepcional hormonal (RR=1,42), a presença de sinais clínicos sugestivos de doenças sexualmente transmissíveis (RR=3,04) e de metaplasia escamosa do colo uterino (RR=5,85) foram mais frequentes entre as pacientes com citologia sugestiva de infecção por HPV.

 

DISCUSSÃO

A literatura destaca algumas variáveis importantes para a etiopatogênese das lesões do epitélio cervical correlacionadas à infecção pelo HPV. Entre os aspectos clínicos, a idade apresenta alta relevância por influenciar o status hormonal, que pode ser alterado tanto por elementos intrínsecos quanto extrínsecos, podendo atuar diretamente na modificação da microbiota vaginal.1

No presente estudo, a prevalência de alterações celulares provocadas provavelmente pelo HPV foi maior no grupo de mulheres entre 11 e 29 anos. A possível explicação para isto é o fato de mulheres mais jovens apresentarem imaturidade biológica do colo devido à maior exposição colunar da endocérvice e a maior prevalência de metaplasia.15 Nos grupos etários subsequentes, houve declínio gradual conforme o avanço da idade, tendo sido a menor incidência no grupo de mulheres entre 60 e 89 anos. Acredita-se que a redução da prevalência com a elevação da idade resultaria de mudanças na vida sexual, que tornariam as mulheres menos expostas ao vírus. Entretanto, muitos estudos ainda relatam queda na prevalência da infecção por HPV com o avanço da idade, mesmo em mulheres que mantêm contínua e intensa atividade sexual, o que sugere que o declínio é independente do comportamento sexual e parece estar mais relacionado ao desenvolvimento de imunidade específica à infecção.2,3

Sabe-se, ainda, que o HPV tem predileção por epitélio metaplásico, onde há maior exposição das células imaturas, com alta capacidade replicativa, facilitando o ciclo do vírus. A região onde este epitélio predomina, a JEC, é a principal área de pesquisa de atipias de significado indeterminado e a possível evolução para neoplasia.1 Esses dados estão em concordância com nossos resultados, os quais correlacionaram positivamente epitélio metaplásico e atipias celulares induzidas pelo HPV.

Em relação à microbiota, nosso estudo demonstrou que mais da metade das mulheres (52,24%) estavam colonizadas por Lactobacillus sp, o qual se apresentou como fator protetor para o desenvolvimento de alterações celulares. Esses microrganismos compõem a maior parte da flora normal, dificultando a colonização de patógenos por diversas formas, como manutenção do pH ácido, produção de metabólitos espécie-específicos, de bacteriocinas, fatores de aderência à mucosa e destruição de biofilmes dos outros agentes. Isso é importante para manter a função de barreira do epitélio cervical, de modo a inibir a entrada de HPV na camada basal de queratinócitos.4

Nossos resultados também corroboram a associação entre a presença sugestiva de vaginose bacteriana (VB) e de células atípicas nos laudos citopatológicos, demonstrando que o risco de uma mulher colonizada por bacilos supracitoplasmáticos apresentar alteração celular é 2,13 vezes o risco de uma mulher não colonizada. VB é caracterizada pela alteração do meio vaginal em que a flora normalmente predominante é substituída por microrganismos diversos, com aumento de espécies como Gardnerella vaginalis, Mobiluncus sp, entre outros. Estas bactérias são capazes de produzir proteases que degradariam o muco secretado na cérvice, rompendo a barreira química protetora dos epitélios vaginal e cervical. Além disso, a alcalinização do pH vaginal é uma das consequências mais comuns das vaginoses, fazendo com que as mulheres colonizadas tivessem pH acima de 4,5 estando mais predisposta ao aparecimento de infecções por HPV de alto e baixo riscos.5 Aliado a isso, taxas mais altas de infecção por HPV são encontradas na presença de vaginose bacteriana devido a sua associação com um atraso ao eliminar o vírus, predispondo a gênese da NIC (Neoplasia Intraepitelial Cervical), assim como o avanço da lesão.4

Nosso estudo observou, ainda, uma associação positiva entre sinais sugestivos de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e infecção por HPV. Outro estudo relacionado a infecções cervicais encontrou associação semelhante, mostrando que DSTs aumentam o risco de aquisição e transmissão do vírus do HPV, principalmente na presença de úlcera e cervicite. Tais circunstâncias são responsáveis pelo rompimento da barreira do epitélio, pela inflamação e pelo aumento da carga viral do trato genital. Gerando mudanças na resposta imunológica e diminuindo a capacidade corporal de resolver a infecção na presença de infecções concorrentes.6 A coexistência significativa de HPV e de outras DSTs foi associada, ainda, à idade da sexarca das mulheres e ao número elevado de parceiros sexuais. Isso se deve aos mecanismos de coinfecção como genotoxicidade direta associada a uma menor proteção contra DSTs, o que facilitaria a transmissão de qualquer tipo de infecção na vagina ou colo.7

Foi possível identificar, ainda, que o uso de anticoncepcional, tanto oral quanto injetável, gerou um risco de 1,42 de desenvolver alterações citopáticas pelo HPV. Os dados da literatura são contraditórios para afirmar um efeito protetor ou não do uso de contraceptivos hormonais nas lesões neoplásicas do colo uterino. Alguns estudos relacionam a duração do uso com um incremento no risco de lesões de alto grau, mas não de baixo grau.8,9 Outros demonstraram o efeito protetor do uso de ACH na incidência de câncer.10 A constituição da flora vaginal mostra uma importante relação com os níveis hormonais, uma vez que ela é dependente de fatores como: fases do ciclo menstrual, gestação e ACH.11 Sendo este último uma modificação da fisiologia do organismo, os valores aumentados de estrogênio e, principalmente, de progesterona podem aumentar a possibilidade de mutações oncogênicas e facilitar a proliferação de células malignas.12 No que se refere ao período da menopausa, ocorre um declínio de estrogênio e este reflete na flora cervical, que se mostra o tempo todo hormônio-dependente.13

No presente estudo, a prevalência de alterações citológicas relacionadas ao HPV foi de 2,5% (incluindo NIC e células atípicas de significado indeterminado), em contraste com o estudo realizado pelo Ministério da Saúde em 2017. A pesquisa brasileira encontrou uma prevalência estimada de HPV de 54,6%, sendo que destes, 38,4% apresentaram o subtipo de alto risco para o desenvolvimento de câncer, considerando a região genital de homens e mulheres. A discordância entre estas prevalências pode ser explicada pela metodologia do nosso estudo, que se baseou na colpocitologia, enquanto o estudo nacional identificou a presença de vírus tanto no colo quando na região peniana e escrotal por meio de amplificação por "Polymerase Chain Reaction (PCR)", seguida de hibridização.14 Segundo Camargos e colaboradores, a sensibilidade da colpocitologia varia de 11 a 99% (em média 58%), dependendo da técnica de coleta, condições do colo e da vagina, preparo da lâmina e do profissional que faz a leitura. Em contrapartida, um estudo mineiro realizado em 2008 identificou uma especificidade de 100% para o diagnóstico de HPV pelo exame citológico, comparada à PCR, o que significa que quando a citologia foi positiva, o HPV certamente estava presente.15, 16, 17

Contudo, o rastreio pelo exame citopatológico não está proscrito, principalmente considerando sua boa relação custo-benefício. Além disso, o exame pode evitar o impacto psicossocial de um possível superdiagnóstico ao notificar a presença de uma DST sem tratamento específico na fase latente ou subclínica.17

 

CONCLUSÃO

Nosso estudo encontrou uma frequência de 2,5% de alterações colpocitopatológicas associadas ao efeito do HPV, com predomínio em pacientes mais jovens. Além disso, identificamos a presença de Lactobacillus sp como um fator protetor para o desenvolvimento de tais lesões, contrapondo a infecção por bacilos supracitoplasmáticos, que se mostrou um fator de risco.

 

REFERÊNCIAS

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