ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Manejo de via aérea em paciente com mucopolissacaridose tipo vi (Síndrome De Maroteaux-Lamy)
Airway management of patients with mucopolysaccharidosis type vi (Maroteaux-Lamy syndrome)
Washington Luiz de Mendonça1; Daniel Gontijo Lacerda2; Luisa Normandia Baeta Melo3; Bárbara Caroline Santos Gontijo4; Luiz Flávio Pimenta De Gracia5
1. Anestesiologista e Coordenador da Residência Médica de Anestesiologia do Complexo de Saúde São João de Deus (CSSJD) - Divinópolis - MG, Brasil
2. Anestesiologista e membro da equipe de Anestesiologia do CSSJD, Divinópolis - MG, Brasil
3. Médica Residente em Anestesiologia do CSSJD, Divinópolis - MG, Brasil
4. Médica Residente em Anestesiologia do CSSJD, Divinópolis - MG, Brasil
5. Médico Residente em Anestesiologia do CSSJD, Divinópolis - MG, Brasil
Luisa Normandia Baeta Melo
Rua do Cobre, nº 800, Bairro Niterói
Divinópolis, MG
Tel: (37) 3214 3607
E-mail: Luisa.normandia@hotmail.com
Instituição onde o trabalho foi desenvolvido: Complexo de Saúde São João de Deus - Divinópolis - MG.
Resumo
JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: As mucopolissacaridoses (MPS) representam um grupo de doenças hereditárias raras, caracterizadas por deficiências enzimáticas, que levam ao acúmulo de glicosaminoglicanos (GAGs) em órgãos e tecidos.1,3 O caráter crônico-progressivo,2 associado ao aumento da expectativa de vida devido às terapias atuais, traz o desafio de repetidos procedimentos cirúrgico-anestésicos nos respectivos portadores.
RELATO DE CASO: Nosso objetivo é relatar o manejo da via aérea em uma paciente de 22 anos com MPS e relembrar suas particularidades, dado que os portadores possuem, ainda, elevada mortalidade perioperatória (20%).1,3,7
CONCLUSÃO: Uma boa avaliação pré-operatória e conhecimento da fisiopatologia subjacente, bem como anatomia desses pacientes é essencial para bom manejo anestésico.1,2 Realizar abordagens cirúrgicas simultâneas, evitando-se repetidas manipulações, pode reduzir sua morbimortalidade perioperatória.
Palavras-chave: Mucopolissacaridose. Via aérea difícil. Anestesiologia. Mucopolissacaridose VI.
INTRODUÇÃO
As mucopolissacaridoses (MPS) representam um grupo de doenças hereditárias raras, caracterizadas por deficiências enzimáticas, que levam ao acúmulo de glicosaminoglicanos (GAGs) em órgãos e tecidos.1,3 O caráter crônico-progressivo da disfunção orgânica multissistêmica2, associado ao aumento da expectativa de vida devido à terapia de reposição enzimática (TRE) e transplante de células tronco hematopoiéticas (TCTH), traz o desafio de repetidos procedimentos cirúrgico-anestésicos nos respectivos portadores, atualmente.
Nosso objetivo é relatar o manejo da via aérea na mucopolissacaridose e relembrar suas particularidades, dado que os portadores possuem o envolvimento cardiorrespiratório como sua principal causa de morte3 e, ainda, elevada mortalidade perioperatória (20%).1,3,7
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, 22 anos, 110 cm de altura, 25 quilos, diagnosticada com mucopolissacaridose tipo VI aos 4 anos de idade e em tratamento com enzima recombinante Galsulfase (N-acetilgalactosamina-4-sulfatase - Naglazyme®), apresentou massa expansiva em região maxilar esquerda, sendo evidenciada, em tomografia computadorizada, imagem sugestiva de tumor odontogênico-ceratocístico ou cisto-dentígero. Com base nesses achados, foi programada abordagem cirúrgica para descompressão, sendo a paciente e seus familiares esclarecidos sobre os riscos e possíveis complicações.
A paciente apresentava histórico de alergia a ibuprofeno e contraste iodado, além de abordagens cirúrgicas prévias para descompressão medular, ooforectomia e herniorrafias umbilicais sem relato de intercorrências anestésicas. Negava tabagismo ou etilismo.
A avaliação pré-anestésica demonstrou, além da história de estenose traqueal, baixa estatura, macroglossia, face grosseira, pescoço curto, desproporção crânio-corporal, mão em garra, cifoescoliose importante e redução da mobilidade cervical e de articulação temporomandibular (FIGURAS 1, 2, 3).
Ambos os escores de ASA e Mallampati foram classificados como III. Não foram evidenciadas alterações ao exame físico-cardiovascular, respiratório e abdominal. O hemograma pré-operatório mostrava leucocitose (13.500 cel/mm3) sem desvio, à custa de neutrófilos (81%), coagulograma, eritrograma, ecocardiograma, ECG e análise bioquímica dentro dos limites da normalidade.
Intubação orotraqueal com a paciente acordada não foi planejada devido a indisponibilidade de fibroscópio óptico de tamanho adequado. Dispositivos e equipe experiente para controle de via aérea e possível traqueostomia de urgência estavam disponíveis.
A paciente foi monitorizada na sala cirúrgica, com ECG de cinco derivações, SpO2, pulso, FC e pressão arterial não invasiva. Apresentou ritmo sinusal; FC: 110 bpm; PA: 108/53 mmHg; e SpO2: 98% em ar ambiente. Punção de acesso venoso periférico com cateter nº 22 em membro superior direito e pré-oxigenação com O2 umedecido a 100% por máscara facial (4L/min) foram realizadas, além de estabilização cervical bimanual por um segundo anestesista.
Optou-se por indução venosa com propofol titulado, com o objetivo de manter a ventilação espontânea. Uma vez evidenciada ventilação não problemática, a paciente recebeu bolus de 50mg de Propofol, 40mg de Lidocaína e 75 mcg de Fentanil. Devido à previsão de via aérea difícil, foi utilizado laringoscópio AirTraq® Infantil (4,5-5,5) sem dificuldades na laringoscopia. Tubo nº 5,5 foi inserido com sucesso e, após via aérea garantida, administraram-se 15 mg de Atracúrio, com mínima manipulação cervical.
A anestesia geral balanceada foi mantida com 50% O2 + 50% de ar comprimido e Sevoflurano a 1,5 – 2% em 1 L/ min de fluxo fresco. Após intubação, os parâmetros hemodinâmicos e respiratórios da paciente eram: FC: 115, PA: 121/78 mmHG, SpO2 96%, capnografia 35mmHg, FR 12 irpm. Ventilação controlada por volume foi mantida da seguinte forma: volume total 180 mL, FR: 20 irpm, Relação I/E 1:2, FiO2: 0,5 e PEEP: 4 cmH2O. O pico pressão das vias aéreas foi de 22 cm H2O, e capnografia de 31 mm Hg.
A duração da anestesia foi de 1h40min, incluindo 65 min para cirurgia. No total foram administrados 1500 ml de soro fisiológico, antibioticoprofilaxia com 600 mg de Clindamicina, 5 mg Dexametasona e 1 g de Dipirona. Não houve intercorrência do ponto de vista anestésico no perioperatório.
A paciente foi encaminhada à Unidade de Terapia Intensiva em pós-operatório imediato, conforme preconizado, para vigilância cardiorrespiratória. Realizada extubação sem intercorrências, recebeu alta em 24 horas com bom padrão respiratório em ar ambiente e estabilidade hemodinâmica.
DISCUSSÃO
Com base na enzima lisossomal deficiente, existem seis tipos de MPS. As incidências de MPS foram relatadas em entre 1/25000 e 1/500000, dependendo do tipo.1,4 A síndrome de Maroteaux-Lamy é responsável por 1% de todas as MPS,2 sendo caracterizada pela deficiência de N-acetilgalactosamina-4-sulfatase, responsável pelo catabolismo de dermatan sulfato. Esta é particularmente propensa a apresentar dificuldades nas vias aéreas durante a anestesia5 e, em contraste com os outros tipos de MPS, não é frequente o retardo mental.1,2
As características clínicas incluem face grosseira, baixa estatura, cifoescoliose, espessamento das vias aéreas e secreções, hepatoesplenomegalia, problemas otorrinolaringológicos, displasia esquelética, instabilidade cervical com compressão da medula espinhal, visão e audição comprometidas, contraturas articulares, hérnias e doença cardiorrespiratória. Os sintomas variam de acordo com os locais de acumulação de GAG.1,2
Pela natureza progressiva da MPS, a idade é um importante fator de risco anestésico,1 sendo relacionada ao aumento da incidência de intubação difícil.5,7
Investigações pré-operatórias devem incluir estimativa de hemoglobina, eletrólitos séricos, saturação de oxigênio e, se indicado, métodos de imagem para avaliação de tórax e coluna cervical.1 Procura-se identificar todas as manifestações da doença, terapêuticas realizadas e antecedentes anestésico-cirúrgicos.1
As vias aéreas devem ser examinadas com atenção, podendo lançar mão de métodos de imagens,1,2,3,8 espirometria ou broncofibroscopia. Ingelmo et al descreve que os anestesistas alteraram a seleção de seus dispositivos primários após a revisão de imagens tomográficas das vias aéreas de crianças com MPS em 21% das avaliações, sendo a redução do calibre traqueal o achado mais comum.4
O tubo endotraqueal sem balonete mais apropriado é geralmente dois ou três tamanhos menor do que o previsto para a idade,1,4,9 compatível com o caso acima, e o uso de anticolinérgico pode ajudar a reduzir as secreções copiosas.3,7
Problemas anestésicos típicos incluem obstrução das vias aéreas após a indução ou extubação, dificuldades de intubação ou falha em intubar/ventilar, possíveis traqueostomias de emergência, lesão cervical e problemas cardiovasculares significativos, podendo levar a parada cardíaca.1,5
A doença valvar é o achado cardiovascular mais comum,1,7 podendo ocorrer disfunção diastólica e má resposta à infusão hídrica. Para pacientes com suspeita de cardiomiopatia, a fração de ejeção e o peptídeo natriurético tipo B são importantes como medidas iniciais de avaliação.1
A alta prevalência de obstrução das vias aéreas e doença pulmonar restritiva, em combinação com manifestações cardiovasculares, representa grande risco anestésico.1 O aumento da língua, mucosa nasal, gengiva e adenoides,7 agravado por infecções de repetição,7 pode levar à apneia obstrutiva do sono (AOS), hipoventilação, hipertensão pulmonar, cor pulmonale e, eventualmente, insuficiência respiratória.1,3,7
O grau de ronco ou obstrução das vias aéreas durante o sono é importante na história clínica, pois pacientes com MPS que apresentam história de AOS grave possuem alto risco de emergências das vias aéreas durante a anestesia.1,3
Hérnias de parede abdominal frequentemente ocorrem devido à protuberância da hepatoesplenomegalia e suporte ineficaz do tecido conjuntivo da parede abdominal anterior.7 Nossa paciente possuía duas abordagens prévias de herniorrafia umbilical.
No manejo anestésico, midazolam e fentanil foram usados com sucesso e ambos podem ser revertidos com flumazenil e naloxona, se necessário, devendo-se, entretanto, ficar atento à possível depressão respiratória com os mesmos.1,3
Técnicas de ventilação espontânea utilizando oxigênio e um anestésico volátil de alta concentração também têm sido comumente usadas,1,3,7 assim como a inserção de máscara laríngea e intubação com paciente acordado.1,2
Foi relatado que a perda de tonicidade na região supraglótica devido ao bloqueio neuromuscular pode causar obstrução durante a ventilação manual. Como tal, recomenda-se que os agentes bloqueadores neuromusculares não sejam usados até que a via aérea esteja segura e a intubação endotraqueal tenha sido alcançada.2
Pacientes com MPS VI têm alta incidência de instabilidade atlanto-axial1,3 devido a hipoplasia da apófise odontóide, e o movimento do pescoço durante a intubação pode levar à subluxação C1-C2, causando danos na medula espinhal e paralisia.1,3 Portanto, a indução de anestesia deve ser feita com um movimento mínimo cervical,1,2,3 limitando a laringoscopia direta.9
Técnicas alternativas de intubação são preferíveis, seja por intubação com fibra óptica (FO) ou vídeo-laringoscopia (VL).1 A VL se tornou a ferramenta preferida de intubação para pacientes com MPS submetidos a anestesia geral, por deslocar uma quantidade significativa de tecidos moles.6,9 Se a VL permite apenas uma visão parcial da laringe, a intubação por FO pode ser realizada usando-se o videolaringoscópio como guia.4
Em caso de insucesso na intubação traqueal, uma via aérea cirúrgica de emergência pode ser necessária. Realizar uma traqueostomia em pacientes com MPS pode ser difícil devido ao pescoço curto, tecidos moles espessados e à posição profunda da traqueia no pescoço.1,2,9 E uma cricotireotomia de emergência deve ser desencorajada devido às distorções anatômicas.1,3
O aumento da expectativa de vida associado à TRE e ao TCTH acompanha o aumento da demanda por procedimentos cirúrgico-anestésicos para controle da doença nos seus portadores,1,3 como demonstrada no caso clínico a avançada idade da paciente – 22 anos – e procedimentos cirúrgicos prévios. A TRE tem sido associada à melhora da permeabilidade das vias aéreas superiores em pacientes com MPS tipo VI, principalmente se iniciada precocemente, antes de acúmulo significativo de GAG.1,5
Crianças com história de AOS ou dessaturações antes do TCTH apresentaram considerável melhora dos sintomas e da visualização laríngea logo após o TCTH.5 Porém, na MPS VI a TRE induziu melhorias na patência das vias aéreas superiores, pela redução na deposição de GAG, mas não reduziu a incidência de manejo de via aérea difícil.5 Fica claro, portanto, que a incidência de dificuldades na gestão das vias aéreas ainda é significativamente alta, apesar do advento das terapias,5 variando de acordo com a individualidade e período de TER.8
No pós-operatório, tem sido relatado risco de obstrução das vias aéreas superiores e edema pulmonar devido à expiração forçada contra uma glote espessada e estreita. Para tanto, autores administram rotineiramente dexametasona a esses pacientes antes da extubação,10 medida adotada por nossa equipe.
CONCLUSÃO
O risco anestésico pode ser reduzido consideravelmente se o anestesista antecipar potenciais problemas que possam surgir no perioperatório.1,10 Isso requer uma boa avaliação pré-operatória e conhecimento da fisiopatologia subjacente às manifestações respiratórias e cardíacas, bem como anatomia cervical e traqueolaríngea desses pacientes.1,2
Lembre-se aqui que história de via aérea não problemática e controle anestésico prévio não devem ser vistos como verdade absoluta, devido à progressão da doença. E a conscientização de que alguns pacientes com MPS terão via aérea difícil, independentemente da escolha do equipamento, deve ser mantida.
Realizar abordagens cirúrgicas simultâneas por uma equipe multidisciplinar experiente, evitando-se repetidas manipulações, pode reduzir a morbimortalidade perioperatória dos pacientes.
REFERÊNCIAS
1. Walker R, Belani KG, Braunlin EA, Bruce IA , Hack H , Harmatz PR, et al. Anaesthesia and airway management in mucopolysaccharidosis. J Inherit Metab Dis. 2013 Mar; 36(2):211-9.
2. Sayilgan C, Yuceyar L, Akbas S, Erolcay H. Anesthesia in a child with Maroteaux-Lamy syndrome undergoing mitral valve replacement. Clinics (São Paulo). 2012; 67(6):693-6.
3. Marcelino M, Gentil F, Marote LO, Patuleia MD. Anesthetic approach of mucopolysaccharidosis. Revista SPA. 2012; 21(3): 19-22.
4. Ingelmo PM, Parini R, Grimaldi M, Mauri F, Romagnoli M, Tagliabue G, et al. Multidetector computed tomography (MDCT) for preoperative airway assessment in children with mucopolysaccharidoses. Minerva Anestesiol. 2011 Aug; 77(8):774-80.
5. Frawley G, Fuenzalida D, Donath S, Yaplito-Lee J, Peters H . A retrospective audit of anesthetic techniques and complications in children with mucopolysaccharidoses. Paediatr Anaesth. 2012 Aug; 22(8):737-44.
6. Clark BM, Sprung J, Weingarten TN, Warner ME. Airway management changes in patients with mucopolysaccharidoses: the role of video laryngoscopy. Can J Anaesth. 2017 Sep; 64(9):981-982.
7. Bansal A, Das J, Kumar R, Khanna S, Sapra H, Mehta Y. Combined mucopolysaccharidosis type VI and congenital adrenal hyperplasia in a child: Anesthetic considerations. J Anaesthesiol Clin Pharmacol. 2012 Jul; 28(3):364-7.
8. Suh SH, Okutani R, Nakasuji M, Nakata K. Anesthesia in a patient with mucopolysaccharidosis type VI (Maroteaux-Lamy syndrome). J Anesth. 2010 Dec; 24(6):945-8.
9. Clark BM, Sprung J, Weingarten TN, Warner ME. Anesthesia for patients with mucopolysaccharidoses: Comprehensive review of the literature with emphasis on airway management. Bosn J Basic Med Sci. 2018 Feb 20; 18(1):1-7.
10. Cade J, Jansen N. Anesthetic Challenges in an Adult with Mucopolysaccharidosis Type VI. A A Case Rep. 2014 Jun 15; 2(12):152-4.
Copyright 2025 Revista Médica de Minas Gerais
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License