RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 30. Esp DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20200010

Voltar ao Sumário

Relato de Caso

Criptococose Pulmonar em Paciente Imunocompetente

Pulmonary Cryptococcosis In An Immunocompetent Patient

Bárbara Liss de Sousa Freire1; Victor de Autran Nunes Matos2; Bruna Theresa de Sousa Freire3; Renackson Jordelino Garrido2; Welison Gutherrez Silva e Sousa1; Lara Rodrigues de Albuquerque Sobreira3

1. Hospital Universitário Walter Cantídio, Clínica Médica - Fortaleza - Ceará - Brasil
2. Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará - UFC, Medicina - Fortaleza - Ceará - Brasil
3. Faculdade de Medicina- Instituto Superior de Teologia Aplicada, Medicina - Sobral - Ceará - Brasil

Endereço para correspondência

Bárbara Liss de Sousa Freire
E-mail: barbaralissf@gmail.com

Recebido em: 03/09/2017
Aprovado em: 13/10/2019

Instituição: Hospital Universitário Walter Cantídio, Clínica Médica - Fortaleza - Ceará - Brasil

Resumo

O presente trabalho relata o caso de criptococose pulmonar isolada em paciente com sintomas respiratórios iniciados há um ano do diagnóstico, sorologia negativa para o vírus da imunodeficiência adquirida, sem outras causas de imunossupressão, que apresentava aos exames de imagem extensa consolidação em hemitórax esquerdo associada a nódulos bilaterais difusos. Diagnosticada, através de lavado broncoalveolar e biópsia, com criptococose pulmonar isolada, recebeu tratamento com Anfotericina B desoxicolato, evoluindo com insuficiência respiratória aguda e óbito. O presente caso demonstra uma apresentação pouco frequente da doença, cujo manejo ainda não está bem definido.

Palavras-chave: Criptococose; Pneumopatias Fúngicas; Imunocompetência.

 

INTRODUÇÃO

A criptococose pulmonar é uma infecção fúngica, vista como doença oportunista em pacientes imunodeprimidos, em particular na síndrome da imunodeficiência adquirida, sendo rara em pacientes imunocompetentes.

A infecção é causada por duas variantes do Cryptococcus neorformans: C. neoformans variante neoformans e C. neoformans variante gattii, sendo a primeira mais comum. A variante neoformans é cosmopolita, relacionada a excretas e habitats de aves, como pombos e periquitos, acometendo principalmente indivíduos imunocomprometidos. A variante gattii ocorre associada a material orgânico em decomposição como restos vegetais de eucaliptos e plantas tropicais, acometendo indivíduos saudáveis, sem causas de imunossupressão.

No ambiente, o C. neoformans é encontrado associado à excreta de pombos e troncos de árvores, já o C. gatti não é encontrado em fezes de aves. Em vez disso, habita uma variedade de espécies de árvores, inclusive diversos tipos de eucaliptos. Pensava-se que a distribuição do C. gatti estivesse limitada as regiões tropicais até ocorrer um surto provocado por uma nova cepa em Vancouver no ano de 1999. Na atualidade, o C. gattii está sendo encontrado em vários estados no noroeste do Pacífico.4

No Brasil, em dados do Sistema de Internação Hospitalar do Sistema Único de Saúde -SIH-SUS, entre os anos de 2000-2007, a criptococose se mostrou como a micose sistêmica mais prevalente em termos de internação e acompanhando a distribuição mundial da doença, havendo maior prevalência em imunodeprimidos, especialmente pelo vírus do HIV, o que levou a uma maior número de casos pelo C. neoformans, mais especificamente na região sudeste, onde há maior notificação de infecção pelo HIV, e menor número de casos pelo C. gatti, predominante nas regiões Norte e Nordeste do país com predileção por indivíduos imunocompetentes.

O Cryptococcus neoformans é um fungo saprófito, e a infecção humana costuma ocorrer após inalação do fungo aerossolizado sob a forma de levedura. Clinicamente, a criptococose pode se manifestar de formas diversas: desde colonização pulmonar assintomática até comprometimento de meninges e doença disseminada.

Os principais sinais radiológicos são nódulos únicos ou múltiplos, massas de localização subpleural e consolidações com padrão de broncograma aéreo, que podem simular neoplasias, doenças infiltrativas pulmonares e até mesmo tuberculose, podendo levar ao retardo diagnóstico, especialmente em imunocompetentes.

Embora a doença seja mais comum em pacientes imunodeprimidos, ela pode ocorrer em indivíduos imunocompetentes, especialmente na presença de tosse produtiva persistente, dor pleurítica, dispneia, hemoptoicos, perda de peso dentre outros. Além disso, a resposta tardia à terapia convencional para pneumonia adquirida na comunidade, reforça a necessidade de relatar o caso aqui descrito.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 37 anos, negra, natural e procedente de Tianguá (região serrana do estado do Ceará), dona de casa, casada, evangélica foi admitida na Santa Casa de Misericórdia de Sobral com quadro clínico de tosse produtiva com expectoração de aspecto purulento associada a hemoptoicos, com volume diário de secreção superior a 1.2 litros, associado a dispneia a mínimos esforços iniciado há 1 ano da admissão. Sem febre e perda de peso no período.

Diante do quadro clínico, paciente foi inicialmente submetida a antibiótico terapia empírica para Pneumonia Adquirida na Comunidade (PAC) com azitromicina e ceftriaxona durante 2 meses sem melhora dos sintomas.

A paciente não era tabagista nem alcoolista. Negava contato com pombos ou pássaros. Possuía fogão a lenha em casa e fazia inalações diárias com a planta Eucalipto. Não possuía outras doenças de base.

Ao exame físico, apresentava-se com bom estado nutricional, acianótica, anictérica, hipocorada (+2/+4), taquipnéica, taquicárdica, sem adenomegalias. Ao exame respiratório, apresentava percussão submaciça em hemitórax esquerdo, frêmito tóraco vocal aumentado em hemitórax esquerdo, murmúrio vesicular presente, porém diminuído em hemitórax esquerdo, associado a roncos difusos bilaterais, com saturação periférica de oxigênio em ar ambiente de 94%.

A radiografia de tórax (Figura 1) apresentava condensação heterogêna em hemitórax esquerdo e a tomografia de tórax (Figura 2) apresentava extensa opacidade heterogênea acometendo todo o lobo inferior esquerdo e os segmentos lingulares do lobo superior esquerdo, apresentando broncogramas aéreos nesse último, associada a múltiplas opacidades nodulares de tamanhos variados difusamente distribuídas em ambos os pulmões, imagens essas que levaram à suspeita diagnóstica de neoplasia bronquioloalveolar. A paciente realizou pesquisas de BAAR em escarro (totalizando 6 amostras) que foram negativas.

A paciente foi submetida a fibrobroncoscopia, e apresentou-se sem alterações endobrônquicas. Realizado lavado broncoalveolar cuja cultura evidenciou o crescimento de Cryptococcus spp. e biópsia que revelou criptococose pulmonar combinando as formas nodular e pneumônica. Pesquisa de fungos positiva para formas esféricas ou ovaladas e grandes compatíveis com Cryptococcus spp. ( Figura 3)

A sorologia para o vírus da imunodeficiência humana revelou-se negativa e não haviam outras causas de imunossupressão.

Devido a ausência de sintomas neurológicos, a paciente não foi submetida a punção lombar, visto que após inicio de tratamento com Anfotericina B desoxicolato, evoluiu com insuficiência respiratória aguda, sendo encaminhada a Unidade de Terapia Intensiva, onde foi a óbito.

 

DISCUSSÃO

A criptococose foi descrita pela primeira vez na década de 1980, entretanto, permaneceu relativamente rara até meados do século XX, quando a prevalência de pacientes imunossuprimidos aumentou de maneira acentuada. Desde o início da pandemia do HIV, a grande maioria dos casos de criptococose ocorreu em pacientes com AIDS.1,2

Indivíduos sob alto risco de criptococose incluem pacientes com malignidades hematológicas, receptores de transplantes de órgãos sólidos que precisam de terapia imunossupressora e aqueles com infecção avançada pelo HIV e contagens de T CD4+ < 200.3 Além disso, indivíduos expostos à excretas de pombos ou a troncos de diversas ávores, dentre as quais o eucalipto, como no caso aqui relatado, também apresentam alta sujeição à infecção 4

A infecção se dá através da inalação de leveduras ou esporos do fungo, que podem causar doença pulmonar onde a infecção pode permanecer de forma latente ou oligossintomática por um longo período ou sintomática, em caso de imunossupressão ou de inalação de um grande inóculo da levedura.5

Diferentes manifestações clínicas podem ocorrer a depender da espécie causadora e do estado imunológico do paciente. O Sistema Nervoso Central e o trato respiratório são os órgãos mais acometidos em infecções por C. neoformans e C. gattii., embora essa levedura possa causar doença em qualquer órgão do corpo humano.6

A criptococose pulmonar em geral manifesta-se por tosse, aumento da produção de escarro e dor torácica. Os pacientes infectados pelo C. gattii podem apresentar nódulos pulmonares conhecidos como criptococomas. Ocorre febre em uma minoria dos pacientes. 7

Radiologicamente podem ser observados nódulos, massas e consolidações, de forma que a doença pode ser confundida com pneumonia, neoplasia pulmonar e outras afecções, havendo benefício na coleta de exames para citologia, cultura do escarro e aspirado pulmonar, além da realização de biópsia, se necessário. 8

Pacientes imunocomprometidos com criptococose apresentam mais frequentemente manifestações no SNC do que nos pulmões. De fato, mais de 90% dos pacientes que tinham HIV/AIDS com criptococose pulmonar já apresentavam diagnóstico de criptococose no SNC. Em contraste, o envolvimento do SNC em pacientes com criptococose pulmonar soronegativos para HIV é menos frequente.9

O diagnóstico definitivo requer a demonstração do fungo em tecidos normalmente estéreis. O exame microscópico direto para pesquisa de leveduras encapsuladas no líquido cefalorraquidiano (LCR) utilizando-se tinta da china é um teste amplamente utilizado, rápido, de baixo custo e que não exige tecnologia avançada. A identificação histopatológica da criptococose é realizada pelas técnicas histoquímicas básicas - H&E e Gomori-Grocott (GMS). Essa coloração revela características morfológicas, como parede celular e brotamentos, além de evidenciar halos claros perinucleares circundantes aos microrganismos. As lesões ativas contêm numerosas estruturas fúngicas brotantes. Brotamentos únicos ou múltiplos com estreita base são comuns. C. neoformans e C. gattii crescem facilmente a partir de amostras biológicas semeadas em meios de cultivo de rotina, como ágar Sabouraud-dextrose, e as colônias podem ser observadas após 48-72 h de incubação a 30-35°C em condições aeróbicas.9

A conduta inicial de tratamento pensando em PAC, é relatada na literatura diante de pacientes com quadro clínico e exames de imagem semelhantes ao aqui relatado. O erro diagnóstico é frequente sendo descrito em uma série de casos de 41 pacientes imunocompetentes com criptococose pulmonar, 85,37% de erro diagnóstico. Os mais frequentes são pneumonia (36,58%), neoplasia pulmonar (31,7%) e tuberculose (17%) 10

Submeter esses pacientes à terapia equivocada, não apenas retarda o diagnóstico como pode agravar as condições clínicas já debilitadas do paciente. A não melhora dos sintomas, além da confirmação diagnóstica com os diversos métodos (cultura, testes antigênicos ou histopatológico) no seguimento desses indivíduos deve ser instituída precocemente para permitir a terapêutica adequada para debelar a infecção. 11

No tratamento da doença devemos observar a extensão do acometimento e o estado imunológico do paciente, visto que existem esquemas específicos para cada caso. As drogas mais comumente utilizadas são anfotericina B, fluconazol, flucitosina (essa não disponível no Brasil) e itraconazol, havendo resposta importante ao tratamento para reduzir mortalidade e sequelas.12

 

CONCLUSÃO

A criptococose pulmonar é rara em pacientes imunocompetentes, porém tem crescido o número de casos nos últimos anos. Tal aumento, deve reforçar a atenção dos profissionais de saúde sobre essa possibilidade principalmente em pacientes com sintomas clínicos de uma pneumonia de resolução lenta face à terapia empírica e com padrão de imagem sugestivo. É necessário reconhecer a possibilidade desta infecção e proceder precocemente com exames que permitam o correto diagnóstico para instituir a terapêutica correta e reduzir os riscos de desfechos desfavoráveis nesses pacientes.

 

REFERÊNCIAS

1. Kwon-Chung KJ, Fraser JA, Doering TL, Wang Z, Janbon G, Idnurm A, et al. Cryptococcus neoformans and Cryptococcus gattii, the etiologic agents of cryptococcosis. Cold Spring Harb Perspect Med. 2014; 4:a019760.

2. Pappas PG Cryptococcal infections in non-HIV-infected patients. Trans Am Clin Climatol Assoc. 2013;124:61-79

3. Kon, AS et al. Consenso em criptococose - 2008. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 41, n. 5, p. 524- 544, 2008.

4. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica, Coordenação geral de doenças transmissíveis, unidade de vigilância das doenças de transmissão respiratória e imunopreveníveis. Vigilância e Epidemiológica da Criptococose. Brasilia-DF, 2012

5. Silva ACG, Marchiori E, Souza Jr AS, Irion KL. Criptococose pulmonar: aspectos na tomografia computadorizada. Radiol Bras. 2003;36(5):277-82.

6. Holanda MA, Silva COS, Rocha RT, Salgado AR. Criptococose pleural em paciente com síndrome de imunodeficiência adquirida. J Pneumol. 1995;21(4): 201-4.

7. Wheat LJ, Goldman M, Sarosi G. State-of-the-art review of pulmonary fungal infections. Semin Respir Infect. 2002;17(2):158-81.

8. Chang WC, Tzao C, Hsu HH, Lee SC, Huang KL, Tung HJ, et al. Pulmonary cryptococcosis: comparison of clinical and radiographic characteristics in immunocompetent and immunocompromised patients. Chest. 2006;129(2):333-40.

9. Gazzoni AF, Pegas KL, Severo LC. Histopathological techniques for diagnosing cryptococcosis due to capsuledeficient Cryptococcus: case report [Article in Portuguese]. Rev Soc Bras Med Trop. 2008;41(1):76-8.

10. Xiaona X, et al. Clinical analysis of pulmonary cryptococcosis in non-HIV patients in south China. Int J Clin Exp Med 2015;8(3):3114-3119

11. Aslam HM, et al. An unsual case of pulmonary Cryptococcus. Cureus 2018; 10(12): e3707.

12. Mitchell TG, Perfect JR. Cryptococcosis in the era of AIDS-100 years after the discovery of Cryptococcus neoformans. Clin Microbiol Rev. 1995;8(4):515-48.