RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 16. 2

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Relato de Caso

Migrânea basilar: um diagnóstico difícil

Basilar migraine: a puzzling diagnosis

Antônio Lúcio Teixeira Júnior1; Leandro César Pereira Tângari2; José Teotônio de Oliveira3

1. Médico Neurologista do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG)
2. Residente de Neurocirurgia da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG)
3. Professor de Neurologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG

Endereço para correspondência

Antônio Lúcio Teixeira-Jr
R. São João da Ponte, 157/201, Sion
Belo Horizonte, MG. CEP 30.310-650
e-mail: altexjr@hotmail.com

Serviço de Neurologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Av. Prof. Alfredo Balena, 110. Santa Efigênia, Belo Horizonte, MG

Resumo

Migrânea basilar é uma forma incomum de migrânea que evolui com sinais de disfunção do tronco cerebral, como diplopia, disartria, vertigem, zumbido, ataxia, alteração do nível de consciência, paresias e parestesias bilaterais. O diagnóstico diferencial da migrânea basilar é ilustrado pelo caso de uma senhora de 51 anos com migrânea sem aura, que desenvolveu eventos reversíveis de alteração da consciência e parada respiratória.

Palavras-chave: Enxaqueca sem Aura; Enxaqueca com Aura; Ataque Isquímico Transitório.

 

INTRODUÇÃO

A migrânea ou enxaqueca é a segunda causa mais freqüente de cefaléia primária, superada apenas pela cefaléia do tipo tensional. Acomete cerca de 11% da população geral, com nítido predomínio nas mulheres.1 Caracteriza-se tipicamente por episódios de cefaléia intensa, pulsátil, unilateral, associada a náuseas, vômitos, fotofobia e fonofobia. A combinação dessas características é necessária para o diagnóstico de migrânea, embora nem todas ocorram durante as crises ou mesmo em todos os pacientes. A presença de náusea parece ser a característica clínica mais sensível e específica para seu diagnóstico.2 Em até 30% dos pacientes com migrânea ocorre a aura, fenômeno neurológico transitório que precede ou acompanha o episódio de cefaléia.3 Na maior parte dos casos de migrânea com aura, também denominada enxaqueca clássica, a aura é visual, normalmente sob a forma de escotomas ou alterações do campo visual.4

Em 1961, Bickerstaff5,6 descreveu casos de disfunção reversível do tronco encefálico, com sintomas de vertigem, ataxia de marcha, disartria e perda transitória da consciência, antecedendo episódios de cefaléia pulsátil localizada principalmente na região occipital. Denominou esse quadro de migrânea basilar, que é uma condição clínica rara e deve ser considerada no diagnóstico diferencial de eventos paroxísticos como epilepsia, síncope e ataque isquêmico transitório (AIT) acometendo o território vascular vértebro-basilar.

Este trabalho relata, o caso de uma paciente de 51 anos, hipertensa crônica e portadora de migrânea sem aura, que evoluiu com eventos reversíveis de perda de consciência e insuficiência respiratória.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Trata-se de paciente sistêmica feminina, de 51 anos, portadora de hipertensão arterial desde os 30 anos de idade e migrânea sem aura desde a adolescência, apresentando cerca de dois episódios de cefaléia por mês.

Foi internada na Unidade de Urgência do Hospital das Clínicas (HC) da UFMG com súbito mal-estar geral associado a vertigem, náusea, vômito e cefaléia pulsátil holocraniana, mais intensa na região occipital, com aproximadamente 12 horas de evolução. O exame físico inicial revelou paciente com rebaixamento do nível de consciência, totalizando 12 pontos na escala de coma de Glasgow, com redução global do tônus muscular e dificuldade para movimentar os membros, sem assimetrias evidentes. As pupilas encontravam-se mióticas e observava-se ptose palpebral direita. Exibia, ainda, dificuldade respiratória, bradicardia (56 bpm) e hipotensão arterial sistêmica (90/60mmHg). Em poucos minutos, evoluiu com parada respiratória, necessitando de intubação orotraqueal e ventilação mecânica. Em nenhum momento, houve perda total da consciência. Os exames laboratoriais realizados na urgência, incluindo hemograma, coagulograma, glicemia, ionograma, função renal e gasometria arterial, estavam normais. A tomografia de crânio e o exame do líquor também eram normais. A paciente retomou progressivamente a ventilação espontânea, sendo possível a extubação após duas horas de suporte ventilatório. No primeiro dia de internação, ainda na Unidade de Urgência, permaneceu com cefaléia holocraniana de leve intensidade, apresentando oscilação dos níveis tensionais, de 110/60 a 200/140mmHg. A partir do segundo dia de internação, evoluiu com remissão dos sintomas, sendo encaminhada para a enfermaria para propedêutica.

Segundo a paciente, uma semana antes da internação, apresentara com similaridade à atual cefaléia occipital, náusea, vertigem e prostração, que evoluiu com insuficiência respiratória, necessitando de suporte ventilatório por cerca de 12 horas. Como, na ocasião, apresentava níveis tensionais elevados (240/140mmHg), foram levantadas as hipóteses diagnósticas de ataque isquêmico transitório vértebro-basilar e encefalopatia hipertensiva. Em virtude disso, foi medicada com enalapril 20 mg 12/12h, propranolol 40 mg 8/8h e AAS 200 mg 24/24h.

Durante a internação na enfermaria do HC-UFMG, os níveis tensionais foram controlados com medicação anti-hipertensiva. Realizaram-se eletroencefalograma, ressonância magnética e angioressonância cerebral, que não mostraram alterações. Em face da instabilidade tensional exibida inicialmente pela paciente, investigou-se a presença de feocromocitoma com ultra-som abdominal e dosagem de frações de catecolaminas e metanefrinas urinárias, exames que também foram normais.

Considerando-se a história clínica de migrânea, a concomitância de cefaléia e sintomas transitórios sugestivos de envolvimento do tronco encefálico e a exclusão de possíveis causas secundárias desses sintomas, conferiu-se o diagnóstico de migrânea basilar. Iniciou-se, então, profilaxia para migrânea com amitriptilina 25 mg 24/24h associada ao diltiazem 60 mg 12/12h, este também com finalidade anti-hipertensiva. A paciente encontra-se em acompanhamento ambulatorial regular há 2,5 anos com esse mesmo esquema terapêutico, não tendo apresentado outros eventos migranosos ou recorrência de eventos sugestivos de comprometimento de tronco cerebral.

 

DISCUSSÃO

A ocorrência de sinais ou sintomas de disfunção do tronco encefálico, como diplopia, disartria, vertigem, zumbido, ataxia, alteração do nível de consciência, paresias e parestesias bilaterais, é usualmente alarmante, tendo em vista o significado clínico que pode ter, como, por exemplo, o de uma lesão estrutural de fossa posterior. Entretanto, o caráter paroxístico e reversível dessa disfunção pode apontar para eventos epiléptico, sincopal ou ataque isquêmico transitório.7,8 No caso descrito, os sinais e sintomas apresentados, como vertigem, náusea e cefaléia, na ausência de perda total da consciência, e o curso temporal mais duradouro dos mesmos, não sugeriram síncope ou epilepsia. O diagnóstico diferencial com ataque isquêmico transitório, conceituado como déficit neurológico transitório, inferior a 24 horas, atribuído à isquemia cerebral focal, não é possível em bases puramente clínicas8. A propedêutica do AIT inclui a realização de tomografia ou ressonância magnética do encéfalo e o estudo da circulação arterial cerebral.8 Esses exames não demonstraram alterações na paciente, tornando improvável o diagnóstico. Por outro lado, a manifestação dos sintomas associada à cefaléia, a história pregressa de migrânea, a exclusão de outros diagnósticos e o controle clínico a longo prazo com antimigranosos corroboram a hipotése de migrânea basilar. No artigo de descrição original da síndrome, Bickerstaff5 já constatava a dificuldade diagnóstica, argumentando, inclusive, que o seu diagnóstico é impossível de se comprovar.

Ao ser diagnosticada migrânea basilar, assume-se que os sintomas neurológicos apresentados correspondem à aura. Assim, dois aspectos peculiares devem ser salientados. Primeiro, o fato de a paciente desenvolver aura neurológica apenas tardiamente na sua história clínica de longa data de migrânea sem aura. Apesar de não existirem estudos sobre a freqüência desse fenômeno, cefaliatras reconhecem a ocorrência do mesmo.9 Segundo, fato singular no quadro clínico da paciente foi a redução do seu nível de consciência associado à parada respiratória. A alteração da consciência na aura da migrânea basilar é descrita como de instalação gradual, como no caso, mas raramente observa-se insuficiência respiratória.6,10

Especula-se que se estruturas profundas do tronco encefálico forem hipoperfundidas durante uma crise migranosa, pode ocorrer o rebaixamento do nível de consciência.6 A fisiopatologia da migrânea não é inteiramente compreendida, mas estudos recentes sugerem que a depressão da atividade neuronal ou a depressão alastrante conforme a conceituação original de Aristides Leão11, concomitantemente à hipoperfusão cerebral, explicaria a aura e mesmo o desencadeamento de crises migranosas em pacientes sem aura.12,13 Ainda, estudos de neuroimagem funcional demonstraram a ativação de áreas rostrais do tronco encefálico durante episódios de migrânea, antecedidos ou não por aura, sugerindo que essas áreas são importantes na geração da dor de cabeça. 14,15 Em conjunto, as evidências fisiopatológicas propõem bases neuronais e vasculares comuns para a migrânea com ou sem aura, sendo a diferença apenas clínica. Assim, a depressão alastrante e as alterações de fluxo cerebral permaneceriam clinicamente silenciosas nos pacientes que não vivenciam a aura.12,13

Em relação ao tratamento da migrânea basilar, como os estudos focando especificamente a condição são raros, não há consenso. Evans e Linder16 recomendam o emprego de analgésicos antiinflamatórios na crise, evitando-se o uso de triptanos devido ao risco de acentuarem os sinais neurológicos pela vasoconstricção determinada por eles. Em relação à profilaxia, os mesmos autores propõem o uso de bloqueadores de canal de cálcio, empregado no presente caso, e contra-indicam beta-bloqueadores pelo risco de precipitarem acidentes vasculares cerebrais nos casos de migrânea basilar.17

 

REFERÊNCIAS

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4. Russell MB, Olesen J. A nosographic analysis of the migraine aura in a general population. Brain 1996;119:355-61.

5. Bickerstaff ER. Basilar artery migraine. Lancet 1961;281:15-7.

6. Bickerstaff ER. Impairment of consciousness in migraine. Lancet 1961;282:1057-9.

7. Kapoor WN. Syncope. N Engl J Med 2000;343:1856-62.

8. Johnston SC. Transient ischemic attack. N Engl J Med 2002;347: 1687-92.

9. Evans RW, Davidoff AR. Subarachnoid hemorrhage or migraine? Headache 2001;41:99-101.

10. Caplan LR. Migraine and vertebrobasilar ischemia. Neurology1991;41:55-61.

11. Leão AA. Spreading depression of activity in the cerebral cortex. J Neurophysiol 1944;7:359-90.

12. Welch KM, Cutrer M, Goadsby PJ. Migraine pathogenesis: neural and vascular mechanisms. Neurology 2003;60 (suppl 2):9-14.

13. Welch KM. Contemporary concepts of migraine pathogenesis. Neurology 2003;61(suppl 4):2-8.

14. Weiller C, May A, Limmroth V et al. Brain stem activation in spontaneous human migraine attacks. Nat Med 1995;1:658-60.

15. Bahra A, Matharu MS, Buchel C, Frackowiak RSJ, Goadsby PJ. Brainstem activation specific to migraine headache. Lancet 2001;367:1016-7.

16. Evans RW, Linder SL. Management of basilar migraine. Headache 2002;42:383-4.

17. Bardwell A, Trott JA. Stroke in migraine as a consequence of propranolol. Headache 1987;27:381-3.