ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Uso da toxina botulínica na permanência de epífora após dacriocistorrinostomias
Use of botulinic toxin in epiphora not solved by dacryocystrhinostomies
Roberto Ferreira de Almeida Araújo1; Leonardo Santos Resende1; Arthur Moreira de Freitas1; Isabella Cristina Tristão Pinto2; Rafael Palucci Calil1; Daniel Bodour Danielian Filho3; Rafaela de Morais Miranda2; Rogério Eustáquio Barbosa II1; Ana Luísa Rodrigues da Silveira1; Luiz Ivan Cardoso Braz2; Larissa Lima Magalhães1; Aymara Janaína Soares Fernandes2
1. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais
2. Instituto de Olhos Ciências Médicas
3. Universidade Federal de Minas Gerais
Roberto Ferreira de Almeida Araújo
E-mail: robertofaaraujo@gmail.com
Resumo
Introdução: A Toxina Botulínica (TB) possui importantes aplicabilidades no tratamento de doenças oftalmológicas. Este trabalho apresenta a aplicação da TB no manejo da epífora, relacionada à obstrução baixa das vias de drenagem lacrimal, refratária à duas dacriocistorrinostomias (DCR). Descrição do caso: Paciente de 70 anos, sexo feminino, comparece ao serviço com queixa de epífora em ambos os olhos (AO) e histórico de dacriocistite aguda. Submetida à sondagem de vias lacrimais (AO), que sugeriu diagnóstico de obstrução baixa de vias lacrimais, e a duas DCR, em cada olho, ambas com resultado precário no controle da epífora. Foi então, realizada aplicação de TB em glândulas lacrimais em AO, com resultado satisfatório e remissão das queixas da paciente. Discussão: A aplicação da TB na glândula lacrimal gera inibição da excreção do conteúdo lacrimal e, consequente, redução dos efeitos da disfunção na drenagem causada pela obstrução baixa de vias lacrimais. Configura-se, portanto, como uma opção terapêutica relevante para o tratamento da epífora - principalmente para casos refratários ao tratamento cirúrgico convencional. O tratamento cirúrgico para epífora apresenta taxas de sucesso variando de 58-68%, já a aplicação de TB apresenta eficácia de 86%. Conclusão: O uso da TB em oftalmologia possui resultados promissores no tratamento de inúmeras doenças, como no caso relatado. Contudo, novos estudos são fundamentais para a definição de protocolos de utilização dessa droga, visando a otimizar sua eficácia e sua segurança para cada condição clínica.
INTRODUÇÃO
O uso da toxina botulínica (TB) em oftalmologia é amplo, com aplicações no tratamento de: estrabismos, blefaroespasmo essencial, discinesias faciais, dentre outros. Sua ação ocorre por meio da inibição da liberação de acetilcolina nas terminações nervosas colinérgicas pré-sinápticas, na sinapse neuromuscular.1 Estudos mostram que a aplicação da TB na glândula lacrimal principal promove a diminuição da produção lacrimal.2,3 Devido a isso, pode ser utilizada em quadros de epífora, como na síndrome de Bogorad, na epífora funcional, nas obstruções lacrimais altas, e nos casos de obstrução lacrimal baixa com permanência da epífora após múltiplas dacriocistorrinostomias (DCR). Contudo, ainda são necessários estudos para padronização da dose requerida, da técnica de aplicação e do intervalo entre as injeções.1,3
A epífora é uma queixa comum em consultas oftalmológicas, podendo gerar olho vermelho, desconforto ocular, visão borrada e constrangimento social.3,4 Frequentemente, está associada à obstrução do ducto nasolacrimal secundária a trauma, infecção ou, mais comumente, idiopática, sendo esta mais comum em mulheres idosas.4 Em geral, a primeira opção para os quadros obstrutivos da via lacrimal baixa é cirúrgica. A TB é uma alternativa para pacientes refratários a repetidos tratamentos cirúrgicos e para situações em que a abordagem cirúrgica é inviável, por contraindicações absolutas ou relativas.4,5
Este relato descreve o uso bem sucedido da TB - em glândulas lacrimais principais - no tratamento dos sintomas de obstrução baixa da via de drenagem lacrimal, com permanência do quadro de epífora mesmo após a realização de duas DCR.
DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente de 70 anos, sexo feminino, avaliada - pela primeira vez - no departamento de Plástica Ocular do Instituto de Olhos Ciências Médicas (IOCM), queixando epífora em ambos os olhos (AO), com quadro pior no olho esquerdo. Informava histórico de três episódios de dacriocistite aguda, tratados com antibioticoterapia. Ao exame oftalmológico, a paciente apresentava, em AO, biomicroscopia sem alterações, ressaltando: pontos lacrimais pérvios e tópicos, ausência de frouxidão de pálpebras inferiores, ausência de refluxo à expressão do saco lacrimal; porém com Milder positivo.
Inicialmente, foi indicada e realizada na paciente a sondagem e a irrigação de vias lacrimais. O procedimento evidenciou a parada dura nos quatro canalículos e o refluxo da solução pelo ponto lacrimal oposto. Durante o exame, a paciente não referiu soro fisiológico em orofaringe, à irrigação dos quatro pontos lacrimais. Assim, foi confirmado o diagnóstico de obstrução baixa de vias lacrimais em AO, sendo indicada DCR bilateral, primeiro à direita.
Seis meses depois, foi realizada a DCR com intubação de via lacrimal com silastic à direita, sem intercorrências. Foram prescritos no pós-operatório (PO) cefalexina, colírio de associação contendo tobramicina e corticoide tópico, budesonida nasal e compressas frias.
No 1º dia pós-operatório (DPO), paciente referiu melhora da dor e da sensibilidade local. Ao exame biomicroscópico do olho direito, o silastic estava bem posicionado, as suturas íntegras e houve presença de equimose e de edema periocular. No 7º DPO, a paciente manteve lacrimejamento em AO, e referiu sangramento nasal. Ao exame, o silastic estava bem posicionado e houve melhora da equimose e do edema periorbitário. As suturas foram removidas e foi realizada nova sondagem com irrigação de vias lacrimais, que evidenciou, em AO, parada dura nos quatro canalículos, ausência de soro fisiológico em orofaringe e refluxo de solução salina pelo canalículo oposto. No 40º DPO, como a queixa de lacrimejamento se manteve, foi solicitada dacriocistografia em AO (Figura 1), que constatou obstrução baixa total da via lacrimal direita e esquerda, com vias lacrimais superiores pérvias.
Após um ano e meio, a paciente foi submetida a nova DRC à direita, com colocação de silastic, sem intercorrências. No 1º DPO evoluiu com sangramento nasal autolimitado, sem outras queixas. Ao exame, não apresentava sinais flogísticos, secreções ou sangramentos e as suturas estavam íntegras. Ao 7º DPO, a paciente negou queixas e as suturas foram retiradas. No 28º DPO, novamente, não apresentou queixas ou alterações ao exame físico.
Entretanto, após três meses da segunda DCR à direita, a paciente relatou episódio de aumento de secreção escura 15 dias antes da consulta. Ao exame, não apresentava sinais flogísticos ou secreções. O silastic foi retirado e, ao irrigar o canalículo inferior, a paciente negou saída de secreção pela orofaringe.
Após 6 meses da operação, a paciente retornou com queixa de epífora. Ao exame biomicroscópico apresentava conjuntivas calmas, ferida cirúrgica em bom aspecto, ausência de sinais flogísticos ou de secreção, pontos lacrimais e tópicos e milder aparentemente positivo. Foi então solicitada nova sondagem de vias lacrimais.
Foi realizada a sondagem dos 4 pontos lacrimais e encontrada parada dura em todos. Foi instilado soro fisiológico com PVPI pelos 4 pontos e observado refluxo pelo canalículo oposto. Nesta data, foi considerada a aplicação de TB em glândula lacrimal.
No mesmo mês, com lacrimejamento ainda presente, a paciente realizou a primeira aplicação de botox de glândula lacrimal com 2UI em OD. Retornou em 2 semanas, satisfeita, apontando melhora do quadro e desejo de aplicação em OE. Ao exame biomicroscópco apresentou córnea clara e BUT > 6 segundos em AO. Foi então realizado a aplicação em OE.
Em sua última consulta, retornou satisfeita com o tratamento, relatando melhora, porém com queixa de lacrimejamento em OE. Ao exame: teste de Schirmer I - 31/20 (30 segundos), teste de Schirmer II - 31/20 (1 minuto e 30 segundos) (Figura 2), teste de lisamina verde negativo e BUT de 5 segundos em AO.
DISCUSSÃO
As glândulas lacrimais principal e acessórias promovem a secreção do componente aquoso do filme lacrimal em duas frações distintas denominadas secreção básica e reflexa. O volume basal do filme lacrimal é diretamente relacionado com as taxas de produção e de drenagem da película líquida. Quando há desarmonia entre essas taxas, como no caso de obstrução baixa das vias lacrimais, ocorre acúmulo progressivo do líquido no saco conjuntival. Assim, quando o excesso transpassa a capacidade volumétrica de armazenamento da fenda palpebral, ocorre o extravasamento do líquido, evidenciando a epífora.7,8
As obstruções baixas da via lacrimal (ao nível do ducto nasolacrimal) possuem diversas causas e podem ser de origem idiopática, congênita, traumática, neoplásica e infecciosa. A idiopática é o tipo mais frequente e o grupo mais acometido são indivíduos do sexo feminino na quinta ou sexta década de vida.7
No caso descrito, a paciente de 70 anos tinha como queixa principal epífora em ambos os olhos e possuía histórico de episódios de dacriocistite. Foi diagnosticada com obstrução baixa das vias lacrimais bilateralmente e submetida a duas dacriocistorrinostomias. O objetivo dessa abordagem consiste em realizar uma anastomose entre o lúmen do saco lacrimal e a cavidade nasal, favorecendo a drenagem do filme lacrimal e, consequentemente, proporcionando melhora do quadro. Entretanto, a paciente não apresentou melhora clínica após tentativas cirúrgicas.
A partir disso, considerou-se como terapia a aplicação da toxina botulínica do tipo A para reduzir a produção lacrimal e, dessa forma, regularizar o balanço das taxas de secreção e drenagem do filme lacrimal. O mecanismo de redução da produção lacrimal com esse tratamento está relacionado com a inervação predominantemente parassimpática das glândulas lacrimais.2
A toxina botulínica, que cada vez mais está sendo empregada no meio oftalmológico para diversas afecções, é capaz de inibir a fusão das vesículas contendo acetilcolina à membrana pré-sináptica, etapa essencial à liberação do neurotransmissor na junção neuromuscular. Assim, as vesículas acumulam-se na porção terminal do axônio e o neurotransmissor não é liberado na junção. Como resultado do bloqueio colinérgico, no tecido glandular exócrino da glândula lacrimal, ocorre inibição da secreção.2,9
Segundo Singh et al., o tratamento cirúrgico apresenta taxas de sucesso variando de 58-68%; já a aplicação de TB, apresenta eficácia de 86%. Com vantagem para o grupo de epífora funcional, mas sem significância estatística para os casos de origem obstrutiva. O caso em estudo é de causa obstrutiva e apresentou eficácia relevante para a paciente. Reforçando a necessidade de novos estudos no futuro para avaliar de forma significativa a eficácia em diferentes causas.1,6
A aplicação de toxina botulínica, neste tipo de caso, ainda demanda diversos estudos, para padronização de doses e técnica de aplicação. Muito se deve a variedade de apresentação da TB, em que de acordo com a técnica de fabricação altera-se o peso e uniformidade das toxinas, além da presença de ingredientes inativos. Permitindo que ocorra alterações de desempenho devido divergências em potência, duração e até perfil de difusão por tecidos adjacentes. A toxina mais utilizada no Brasil, e utilizada no caso em estudo, é a onabotulinumtoxina, que é diluída em 2ml de solução de cloreto de sódio, obtendo concentração de 50 unidades/ml. A dose inicial presente na literatura é de 2,5 UI, que é alterada conforme cada caso, como no exposto em questão, em que 2 UI já surtiram o efeito adequado.1,2,3
Além dos efeitos inerentes da aplicação de TB como equimose, erupção cutânea e dor local, pode ocorrer efeitos primariamente oculares. Dentre eles, os efeitos adversos mais relatados na literatura são de ptose e diplopia, com incidência de 10%. Os efeitos são transitórios e duram de 2 a 4 semanas, sendo causados pela difusão da TB pelos tecidos adjacentes às glândulas lacrimais. A ptose ocorre devido a liberação de TB no músculo elevador da pálpebra superior, já a diplopia por difusão nos músculos retais superior ou lateral. A diplopia pode se relacionar ao estrabismo pelo mesmo mecanismo de ação. Ahn et al. relacionou o aumento de efeitos colaterais com a dificuldade de exposição da glândula lacrimal, fazendo com que a má visualização do tecido glandular, favoreça a distribuição da toxina para as estruturas vizinhas.3
Outro efeito colateral, menos comum, mas importante, é o olho seco. Tal efeito ocorre pela difusão da TB na área cantal lateral, diminuindo a ativação das glândulas de Meibomius pelo bloqueio de liberação de acetilcolina, além de afetar diretamente os músculos orbicular pré-tarsal e músculo de Riolan, comprometendo a excreção glandular. No caso em estudo ficou evidente que tal efeito não ocorreu a partir do teste de Schirmer que confirmou a produção lacrimal fisiológica.2
CONCLUSÃO
Diversos estudos e trabalhos acerca das implicações terapêuticas oftalmológicas da TB têm sido realizados. Para o tratamento de quadros de epífora, as evidências do uso de TB têm se mostrado muito consistentes em termos de eficácia e de melhora na qualidade de vida do paciente, como no caso descrito. Resultados positivos como o evidenciado pelo caso descrito nos fazem crer que tal abordagem com o uso de toxina botulínica poderá ser considerada - ou mesmo preferível - em casos selecionados, já que os tratamentos convencionais, como a DCR, apresentam taxa limitada de eficácia no controle da epífora. A literatura disponível sobre tal tipo de manejo é ainda escassa e informações como padronização de doses e a particularidades de técnicas de aplicação são ainda pouco conhecidas. Além disso, ainda não são plenamente elucidadas informações importantes para o oftalmologista como possíveis complicações pós-operatórias e efeitos adversos do uso da toxina botulínica com essa finalidade. Trabalhos como este são importantes, a fim de enriquecer a literatura disponível acerca do assunto e aumentar a difusão de tal possibilidade terapêutica. Logo, ainda são necessários mais estudos em busca de padronização das doses e das técnicas de aplicação, além de maior conhecimento acerca dos possíveis efeitos colaterais, para que sua aplicação na oftalmologia possa ter resultados ainda melhores.
REFERÊNCIAS
1. Singh S, Ali MJ, Paulsen F. A review on use of botulinum toxin for intractable lacrimal drainage disorders. International ophthalmology. 2018; 38(5):2233-38
2. Alsuhaibani AH, Al Eid S. Botulinum toxin injection and tear production. Current opinion in ophthalmology.2018;29(5): 428-33.
3. Ahn C, Kang S, Sa HS. Repeated injections of botulinum toxin-A for epiphora in lacrimal drainage disorders: qualitative and quantitative assessment. Eye. 2019;33: 995-9.
4. Wojno TH. Results of lacrimal gland botulinum toxin injection for epiphora in lacrimal obstruction and gustatory tearing. Ophthalmic Plastic & Reconstructive Surgery.2011; 27(2):119-21.
5. Ziahosseini K, Al-Abbadi Z, Malhotra R. Botulinum toxin injection for the treatment of epiphora in lacrimal outflow obstruction. Eye. 2015;29(5):656-61.
6. Singh S, Nair AG, Alam MS, Mukherjee B. Outcomes of lacrimal gland injection of botulinum toxin in functional versus nonfunctional epiphora. Oman J Ophthalmol. 2019;12(2):104-7.
7. Coleção CBO. Órbita, sistema lacrimal e oculoplástica. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2013.
8. Coleção CBO. Fisiologia, farmacologia e patologia ocular. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2013.
9. Sandoval MHL, Ayres EL. Toxina botulínica na dermatologia. 1.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016.
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