RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 30. Esp DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20200032

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Relato de Caso

Apresentação atípica de adenocarcinoma pancreático em paciente jovem: relato de caso

Atypical presentation of pancreatic adenocarcinoma in a young patient: case report

Luiz Gustavo Chaves Gomes1; Caio Henrique Bosquetto1; Filipe Raimundi Sampaio de Oliveira1; Iasmin Dantas Sakr Khouri1; Lucas Alves de Almeida1; Luciano Ribeiro Pereira Silva1; Fernando Mendonça Vidigal2

1. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Cirurgia - Juiz de Fora - Minas Gerais - Brasil
2. Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Cirurgia - Juiz de Fora - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência

Luiz Gustavo Chaves Gomes
E-mail: luizgustavocg12@hotmail.com

Recebido em: 01/12/2019
Aprovado em: 13/04/2020

Instituição: Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Cirurgia - Juiz de Fora - Minas Gerais - Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: O adenocarcinoma pancreático é uma condição letal de incidência crescente. Este câncer possui alguns fatores de risco bem definidos, como idade avançada (90% dos diagnósticos são firmados após os 55 anos, sendo a maioria na sétima e oitava décadas de vida), sexo masculino, etnia afro-americana, história familiar, diabetes, tabagismo e obesidade. Seus sintomas são inespecíficos. Neste trabalho, apresentamos um caso de paciente do sexo feminino, 37 anos, negra, obesa e sem história familiar de câncer, diagnosticada com adenocarcinoma de pâncreas de apresentação atípica.
RELATO DE CASO: MLS, feminino, 37 anos, comparece ao ambulatório de cirurgia com forte dor em hipocôndrio direito e epigastro há 30 dias, irradiação lombar e náuseas. Sem história familiar de câncer, negava tabagismo. Apresentava fáscies de dor, hipocorada, com dor à palpação de epigastro, sem demais alterações. Ultrassonografia de abdome evidenciou massa tumoral heterogênea, achado posteriormente corroborado por tomografia computadorizada, que indicou aspecto sugestivo de lesão neoplásica. Biópsia hepática confirmou o diagnóstico de adenocarcinoma de pâncreas, estádio T3bN1M0, irressecável. Optou-se pela transferência da paciente para centro oncológico para tratamento quimioterápico.
CONCLUSÃO: A terapêutica para tumores pancreáticos é especialmente desafiadora quando estes se apresentam em pacientes fora dos principais grupos de risco, como no caso descrito. Este artigo objetiva exibir a propedêutica da equipe do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora frente a um caso atípico de adenocarcinoma pancreático.

Palavras-chave: Neoplasias Pancreáticas; Procedimentos Cirúrgicos do Sistema Digestório; Fatores de risco.

 

INTRODUÇÃO

O adenocarcinoma pancreático (ACP) é uma doença letal e de incidência crescente1. É uma neoplasia relativamente incomum, com 337.872 casos estimados em todo o mundo no ano de 2012, sendo que a maior incidência foi observada na América do Norte e Europa Central e Oriental2. O câncer de pâncreas é classificado como o 14º câncer mais comum e a 7ª maior causa de mortalidade por câncer no mundo1. No Brasil representa 2% de todos os tipos de câncer, sendo responsável por 4% do total de mortes oncológicas, de acordo com a estimativa de 2008 realizada pelo Instituto Nacional do Câncer3.

Os fatores de risco estabelecidos incluem idade, tabagismo, diabetes, histórico familiar de câncer pancreático e obesidade4.

O quadro clínico dessa condição costuma ser inespecífico, sendo que na maioria dos casos o paciente se mantém assintomático até atingir estágios avançados de doença. As principais manifestações observadas são dor no andar superior do abdome que irradia para dorso ("em faixa"), perda de peso e icterícia obstrutiva. Na lesão da cabeça do pâncreas (tumor periampular) é comum existir esteatorreia, perda ponderal, icterícia e Sinal de Curvoisier-Terrier enquanto, em corpo e cauda, há maior ocorrência de perda de peso e dor1.

Exames laboratoriais podem demonstrar valores aumentados de bilirrubina sérica e de atividade da fosfatase alcalina. O marcador tumoral CA 19-9 é o mais utilizado para as neoplasias pancreáticas, com importância no seguimento e prognóstico, porém não deve ser utilizado para rastreamento populacional e diagnóstico, dado seu baixo valor preditivo positivo3. O principal exame de imagem adjuvante ao diagnóstico é a tomografia computadorizada (TC) helicoidal com visualização da lesão e delimitação do avanço da doença (local e metastática). A ultrassonografia (USG), a TC e a ressonância magnética (RM) abdominal são ineficazes para a detecção de tumores menores que 1-2 cm. A ecoendocoscopia é método preciso na identificação de lesões menores que 3,0 cm5, numa tentativa de melhorar resultados para a intervenção terapêutica que é necessariamente cirúrgica (quando não paliativa).

O presente relato tem por objetivo exibir a propedêutica da equipe do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (HU-UFJF) frente a um caso atípico de ACP, destacando, em seu desenvolvimento, a dificuldade terapêutica prevalente perante a anormalidade representada pelo caso.

Questões éticas

A autorização para relato do caso foi obtida após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelo responsável legal.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

MLS, sexo feminino, 37 anos, atendida no ambulatório de cirurgia geral do HU-UFJF com queixa de dor abdominal de forte intensidade em hipocôndrio direito e epigastro há 30 dias, com irradiação para região lombar, associada a náuseas intensas, responsiva a opióides. Sem alterações de hábitos excretores. Paciente previamente hipertensa, sem outras comorbidades e sem antecedentes familiares de câncer. Etilista social, sedentária, negava tabagismo.

Ao exame físico apresentava fáscies de dor, hipocorada +/4+, anictérica, referindo dor à palpação profunda de epigastro, sem outras alterações dignas de nota. Os exames laboratoriais demonstraram aumento de Gama GT (661), Fosfatase Alcalina (285), TGO (60), TGP (90), sem alterações de bilirrubinas, lipase e amilase. Solicitou-se ultrassonografia (USG) de abdome total que evidenciou presença de massa tumoral heterogênea predominantemente hipoecogênica em cabeça de pâncreas, medindo 5,9 cm x 5,6 cm x 5,3 cm, de contornos irregulares e limites imprecisos, sem dilatação do ducto pancreático principal. Procedeu-se com realização de Tomografia Computadorizada (TC) de abdome com contraste, em que foi constatada a tumoração, de medidas 9,0 cm x 7,0 cm x 6,3 cm, e evidenciou-se envolvimento do tronco da veia porta e contatos com artéria hepática comum e veia cava inferior. Também foi evidenciado nódulo hepático sugestivo de implante secundário. Realizou-se biópsia hepática percutânea que confirmou o diagnóstico de adenocarcinoma de pâncreas, estadiado como T3bN1M0, sendo, pois, uma lesão irressecável. Optou-se, assim, pela transferência da paciente para centro oncológico de referência para realização de seguimento com tratamento clínico.

 

DISCUSSÃO

O ACP por si só representa câncer incomum no contexto das principais doenças oncológicas. Todavia, à luz do caso relatado, essa condição adquire um aspecto ainda mais atípico: apesar da etnia negra e da obesidade grau I, a paciente em destaque não apresenta nenhum dos outros fatores de risco (modificáveis ou não) que configuram associação com tal morbidade. Pelo contrário, a sua idade pode ser considerada fator protetor, uma vez que 90% dos pacientes apresentam ACP acima dos 55 anos e, destes, a maioria apresenta essa condição na sétima ou oitava década de vida. Não bastasse isso, esse tipo de câncer é 30% mais comum dentre os homens6.

De fato, o caso se apresentou de maneira tal anômala que motivou a equipe de cirurgiões do HU-UFJF a supor diagnósticos diferenciais ainda mais incomuns. Com isso, passaram a aventar a possibilidade de aquele se tratar de um tumor sólido pseudopapilar, o chamado Tumor de Frantz. Apesar de responder por apenas 1 a 2% das neoplasias exócrinas do pâncreas7, o gênero, a pouca idade, a alteração discreta do CEA e negatividade do CA 19-9, a localização periférica da massa pancreática e a metástase para órgão adjacente falavam a favor da confirmação diagnóstica desse raro tumor, que traria consigo um arsenal terapêutico de maior qualidade e resultaria em um melhor prognóstico para tal paciente. Entretanto, esse não foi o desfecho que se seguiu ao resultado da biópsia hepática, que traduziu o inesperado ao confirmar o ACP.

Fala-se no pior cenário representado pela ACP pelos seus números: a taxa de sobrevida para o ACP em 1 e 5 anos são de menos de 25% e 5%, respectivamente. A maioria dos pacientes com câncer de pâncreas é diagnosticada em estágio avançado quando a doença é irressecável e, portanto, tem uma sobrevida média menor que 1 ano. A sobrevida é maior (16,6%) para tumores localizados, mas menos de 10% dos tumores são detectados precocemente. Com isso, somente 15 a 20% dos pacientes são candidatos à intervenção cirúrgica9. Mesmo em pacientes com tumores localizados e ressecáveis, o prognóstico a longo prazo permanece sombrio devido às altas taxas de recorrência local e metástases a distância1.

Em busca de suporte na literatura que consonasse com o que foi identificado no caso, poucos textos foram encontrados, sobressaindo-se, como o presente, relatos de caso esparsos que também descreviam tal atipia. Dentre estes, é digno de nota uma história semelhante exposta por equipe da Santa Casa de São Paulo8, ainda mais singular por apresentar ACP em paciente jovem e caucasiana.

Contudo, destaca-se, no rol de artigos que versam sobre o tema, uma grande quantidade de novos textos que se debruçam sobre fatores de risco e a identificação precoce dos mesmos para uma resposta terapêutica aquém da que predomina na literatura atual.

Nesse sentido, um estudo publicado em 2019 por Singhi et al.10 discute uma ótica pioneira sobre a possibilidade de se detectar precocemente adenocarcinomas pancreáticos, com esmero importante na tentativa de evitar o termo rastreio, uma vez que, dada a baixa prevalência de tal câncer, não cumpre os critérios específicos para tal denominação. O que Singhi propõe em seu estudo é o esboço para a implementação de um programa de vigilância longitudinal, baseado em biomarcadores e modalidades de imagem, que beneficiasse indivíduos da população geral com elevado risco para o desenvolvimento de neoplasias do pâncreas.

A identificação desse risco aumentado, por sua vez, deveria partir de um conjunto articulado de análises clínicas, genéticas e ambientais. Para exemplificar, Singhi trabalha o conceito de NOD (new-onset diabetes), podendo ser traduzido clinicamente como o paciente que subitamente desenvolve um quadro franco de Diabetes Mellitus. Na sua visão, esse é o paciente candidato ideal à vigilância ativa para neoplasias do pâncreas, uma vez que o início de NOD pode apontar um ACP oculto. Não apenas tal paciente, como também aquele com história familiar positiva, tabagismo inveterado, IMC elevado, escore de risco poligênico aumentado (descoberto por estudo genético) e também indivíduos que descobrem cistos pancreáticos na forma de incidentalomas. Quanto ao método de investigação, Singhi propõe exames que vão desde a TC em baixa dose até imagens moleculares de última geração (e pouco acesso).

A despeito da aplicabilidade irreal que sugere, tal abordagem preventiva parece ser discutida de maneira contumaz no meio científico das Cirurgias Oncológica e do Aparelho Digestivo, por levar em conta os desfechos predominantemente desfavoráveis que cercam o ACP atualmente. De toda forma, o debate envolvendo novas medidas interventivas, que prezem pela precocidade da terapêutica, faz crer que prognósticos menos reservados, como o do caso relatado, sejam mais usuais na prática médica.

 

CONCLUSÃO

Pode-se concluir que a potencial letalidade do adenocarcinoma de pâncreas está relacionada com a dificuldade de diagnóstico precoce deste tumor. Na maioria das vezes, o prognóstico é reservado devido ao estágio avançado em que a doença é diagnosticada, principalmente em pacientes jovens, quando os diagnósticos diferenciais se abrem em um vasto leque. Considerando o quadro dramático da doença, as discussões no meio científico estão voltadas para a criação de novas abordagens para a detecção incipiente da neoplasia, quando ainda existe a possibilidade de intervenção cirúrgica adequada e desfechos mais favoráveis. Resta agora que estudos empíricos envolvendo populações sejam conduzidos a fim de avaliar a aplicabilidade de tais tendências.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao serviço de Cirurgia Geral do HU-UFJF, por fornecer campo favorável à discussão do caso em tela. Principalmente, agradecemos também à paciente MLS, que gentilmente nos permitiu a publicação do seu relato atípico.

 

REFERÊNCIAS

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3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Instituto Nacional de Câncer. [on line] Estimativas 2008: incidência do câncer no Brasil. [Acesso 08 set 2019] Rio de Janeiro: INCA; 2007. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/estimativa_incidencia_cancer_2008.pdf 3.

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7. Naar L., Spanomichou D.A., Mastoraki A., Smyrniotis V., Arkadopoulos N. (2017). Solid Pseudopapillary Neoplasms of the Pancreas: A Surgical and Genetic Enigma. World Journal of Surgery, 41(7), 1871-1881. doi:10.1007/s00268017-3921-y

8. Silva C.S., Lucas S.F., Nakatsu É., Moricz A.D., Silva R.A., Júnior A.M., Campos T.D. (2011). Adenocarcinoma de pâncreas em paciente jovem: relato de caso. Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa São Paulo, 2011; 56(1):36-9

9. Fogel Evan, Shahda Safi, Sandrasegaran Kumar, Dewitt John, Easler Jeffrey, M Agarwal David, Eagleson Mackenzie, J Zyromski Nicholas, House, Michael Ellsworth Susannah, El Hajj Ihab, O'Neil Bert, Nakeeb Attila, Sherman Stuart. (2017). A Multidisciplinary Approach to Pancreas Cancer in 2016: A Review. The American journal of gastroenterology. 112. 10.1038/ajg.2016.610.

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