ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Prevalência do uso de psicotrópicos na atenção primária à saúde em um município do interior de Minas Gerais
Prevalence of psychotropic drugs use in primary health care in a city in the interior of Minas Gerais
Elaine de Oliveira Alves; Pâmela D'ielle Almeida Vieira; Radmila Alessandra de Souza Oliveira; Rafael Fernandes Rodrigues; Suelen da Costa Silva; Thiago Piterman Martins; Carlos Eduardo Leal Vidal
Faculdade de Medicina de Barbacena
Endereço para correspondênciaCarlos Eduardo Leal Vidal
Praça Presidente Antônio Carlos, nº 8, Bairro São Sebastião
Barbacena - MG
(32) 3339-2950
celv@uol.com.br
Resumo
Introdução. Desde sua introdução no suporte à saúde mental, o uso de psicotrópicos tem representado uma parcela significativa do total de fármacos prescritos na Atenção Básica à Saúde. Geralmente, a maioria dos usuários de tais drogas não é avaliada por um psiquiatra, indicando que muitos usam sem real necessidade. Objetivo. Verificar a prevalência de uso de psicotrópicos nas áreas de abrangências de Unidades Básicas de Saúde (UBS) de Barbacena. Métodos. Estudo transversal em que foi verificada a prevalência de uso de psicotrópicos entre pacientes atendidos em quatro UBS no município de Barbacena, Minas Gerais. Foram entrevistados 400 usuários, por meio de questionário elaborado pelos autores. Os testes de associações estatísticas utilizados incluíram o teste do qui-quadrado e o teste de Fischer para variáveis categóricas, além do teste t de Student para variáveis contínuas. A força da associação entre as variáveis explicativas e o desfecho estudado foi verificada por meio do cálculo do Odds Ratio. Resultados. O uso de psicotrópicos foi informado por 212 (53%) entrevistados. Entre as mulheres entrevistadas, 163 (59,0%) referiram consumo desses. Dentre os medicamentos, a classe dos benzodiazepínicos foi a mais utilizada - 130 (61,3%), principalmente entre aqueles com idade menor que 60 anos, sendo o clonazepam o mais prescrito desta. Conclusão. A prevalência do uso de psicotrópicos nas UBS pesquisadas foi elevada, indicando a necessidade de melhorar os cuidados na atenção à saúde mental desses pacientes. É provável que muitos desses indivíduos não apresentassem transtorno mental que justificasse o uso de medicamentos psiquiátricos.
Palavras-chave: Psicotrópicos. Atenção Primária à Saúde. Saúde Pública.
INTRODUÇÃO
Desde sua introdução na psiquiatria na década de 1950, o uso de psicofármacos tem representado uma parcela significativa do total de medicamentos prescritos. Assim como qualquer medicação, essas drogas apresentam efeitos adversos, podendo causar dependência e problemas à saúde se usados por períodos prolongados.1 A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que cerca de 90 milhões de pessoas apresentarão alguma desordem devido ao abuso ou dependência de drogas psicotrópicas, no período de 2013-2020,2 independentemente da presença ou não de um transtorno psiquiátrico.
Globalmente, a prevalência de transtornos mentais situase em torno de 12% da população, sendo que a maioria é atendida na Atenção Primária à Saúde (APS), especialmente os portadores de Transtornos Mentais Comuns (TMC).1
No Brasil, os transtornos mentais podem constituir até um terço da demanda na atenção básica,3 chegando a 50% quando se consideram os quadros subsindrômicos, como os TMC.4 Essa categoria abrange sintomas depressivos e ansiosos, tais como insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas, os quais, isoladamente, não preenchem os critérios formais para diagnósticos de depressão e/ou ansiedade.5
Apesar de prevalentes, tais transtornos comumente são pouco identificados ou tratados e tendem a ser subestimados pelos profissionais.3 A ausência de diagnóstico pode fazer com que os pacientes frequentem os diversos serviços de saúde em busca de resposta para seus sintomas, sobrecarregando o sistema. Por outro lado, o excesso diagnóstico tanto de TMC quanto de transtornos mentais específicos, pode estar associado ao aumento das prescrições e consumo de psicofármacos, especialmente os antidepressivos e os benzodiazepínicos.3
A prescrição desses e de outros psicofármacos é regulada pelo Ministério da Saúde.6 Tal regulamentação faz-se necessária, já que esses medicamentos devem ser utilizados de forma racional, devido principalmente ao potencial de abuso, ao desenvolvimento de dependência e ao surgimento de importantes efeitos colaterais.1
No Brasil, o consumo de psicotrópicos é elevado: os estudos até o momento mostram que a prevalência do uso desses medicamentos variou de 7,3% a 38,7%,1,7-10 sendo que um a cada dez adultos recebe prescrição de benzodiazepínicos, majoritariamente indicados pelo clínico geral. Esse dado parece indicar que a maioria desses usuários não é avaliada por psiquiatra, sugerindo que muitos provavelmente utilizam sem real necessidade.11 Diversos trabalhos citados nesse estudo apontam que a prescrição e a utilização de psicofármacos elevaram-se consideravelmente nos últimos anos e essas substâncias passaram a ser um dos grupos de fármacos mais prescritos no mundo.
Especificamente no município de Barbacena foram localizados apenas dois artigos abordando o uso de psicofármacos. No primeiro foi traçado o perfil epidemiológico de pacientes atendidos no Centro de Atenção Psicossocial, incluindo o uso de psicotrópicos.12 O outro artigo verificou o consumo de psicofármacos e a presença de TMC em mulheres atendidas na atenção básica, sendo que cerca de 30% das entrevistadas faziam uso dos referidos medicamentos.3
Considerando sua relevância e a carência de estudos sobre o tema mesmo em nível estadual, o objetivo desse trabalho consistiu em verificar a prevalência de uso de psicotrópicos nas áreas de abrangências de Unidades Básicas de Saúde (UBS) de Barbacena.
MÉTODOS
Local do estudo:
Trata-se de estudo transversal em que foi verificada a prevalência de uso de psicotrópicos entre pacientes atendidos pela Estratégia de Saúde da Família em Barbacena, município do interior de Minas Gerais. A cidade compreende uma população estimada de 140 mil habitantes, e possui atualmente 19 UBS, dispondo de 30 médicos generalistas, 25 enfermeiros, 28 técnicos de saúde e 169 agentes de saúde. Na área da saúde mental, conta com dois ambulatórios de psiquiatria, três CAPS (CAPS III, CAPS-AD e CAPSi) e um Programa de Residência Médica em Psiquiatria, além de mais de 30 Serviços Residenciais Terapêuticos.
Uma vez que a população assistida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade de Barbacena é relativamente homogênea quanto à sua distribuição geográfica, não houve diferenças significativas nas características socioeconômicas dos grupos atendidos nas diferentes UBS pesquisadas.
Amostra:
Foi estabelecida uma amostra por conveniência, sendo entrevistados 400 usuários, por meio de questionário elaborado pelos autores, frequentadores de quatro UBS do município de Barbacena, Minas Gerais, selecionadas por melhor organização, estrutura e fácil acesso para o estudo. Foi estabelecido um número de 100 entrevistados em cada UBS a fim de homogeneizar a amostra em cada região. A amostra foi calculada estimando-se prevalência de 40% de uso de psicotrópicos na população, nível de significância de 5% e poder de 80%, acrescida de 10% de possíveis perdas ou dados incompletos, o que correspondeu a uma amostra final de 400 participantes.
Critérios de inclusão:
Usuários das UBS selecionadas e que faziam tratamento médico, independente da doença; com idade maior de 18 anos.
Critérios de exclusão:
Os que não aceitaram participar da pesquisa; presença de déficit cognitivo que impedisse a compreensão do questionário; portadores de doenças terminais; gestantes.
Procedimentos:
O questionário foi aplicado pelos autores, devidamente treinados para a aplicação do instrumento. Mediante a concordância do participante e depois da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o mesmo foi convidado a acompanhar os pesquisadores até uma sala destinada à entrevista.
Foi feito estudo piloto com alguns pacientes selecionados de forma aleatória para verificar o grau de concordância entre os avaliadores (Kappa=0,79). As entrevistas foram realizadas semanalmente nas unidades de saúde selecionadas, no período de funcionamento do serviço, entre setembro de 2018 a fevereiro de 2019. Os indivíduos cadastrados no serviço e que procuraram a UBS para algum procedimento médico ou de enfermagem foram convidados a participar da pesquisa.
Aspectos éticos:
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Barbacena (Protocolo 2.753.399). Todos participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Análise estatística:
Os dados de cada participante foram registrados em fichas elaboradas especialmente para o estudo e posteriormente digitadas em planilhas do programa Excel. Foram construídas tabelas para distribuição de frequências, médias, medianas e desvio-padrão para cada variável. Foi calculada a prevalência de uso de psicotrópicos. A confiabilidade entre os avaliadores foi realizada por meio do coeficiente Kappa. Foram utilizados testes de associações estatísticas, como o teste do qui-quadrado e o teste de Fischer para variáveis categóricas, além do teste t de Student para variáveis contínuas. A força da associação entre as variáveis explicativas e o desfecho estudado foi verificada por meio do cálculo do Odds Ratio. O nível de significância utilizado foi de 0,05. A análise estatística foi realizada no software SPSS versão 17.0.
RESULTADOS
Foram incluídos no estudo 400 indivíduos atendidos em quatro diferentes UBS de Barbacena. Desse total, 274 (68,5%) eram do sexo feminino, 282 (70,5%) possuíam ensino fundamental e 192 (48,0%) eram casados. A média de idade foi 56,6±12,1 anos, variando de 22 a 83 anos. Quanto aos hábitos sociais, 320 (80,0%) pessoas não consumiam bebidas alcoólicas, 278 (69,5%) não tinham atividade de lazer semanal, 271 (67,8%) não praticavam atividade física e 88 (22,0%) indivíduos eram tabagistas. O uso de psicotrópicos foi informado por 212 (53,0%) entrevistados, não havendo diferença no consumo entre os diferentes locais pesquisados. Ademais, 146 (36,5%) entrevistados alegaram que algum familiar de sua residência também utilizava pelo menos um desses fármacos e, destes, 139 (95,2%) os adquiriram com receita médica. O uso de psicotrópicos foi mais observado entre as mulheres, na faixa etária de 40 a 59 anos, entre os tabagistas e naqueles que não faziam uso de bebidas alcoólicas (Tabela 1).
Com relação aos indivíduos que fizeram uso de psicotrópicos no último ano, alguns relataram mais de uma justificativa, sendo as principais depressão e insônia. A grande maioria das prescrições de psicofármacos foi realizada por psiquiatras e generalistas (40,6% e 34,0%, respectivamente; p=0,27). No entanto, apenas 61 pacientes (28,8%) mantinham tratamento com psiquiatra, a maioria mulheres (70,5%). Quanto à orientação médica, pequena parcela (26,0%) relatou que fora informada sobre possíveis riscos associados à medicação prescrita.
Dentre os medicamentos, a classe dos benzodiazepínicos foi a mais utilizada (130 usuários), principalmente entre aqueles com idade menor que 60 anos, sendo o clonazepam o mais prescrito. Os antidepressivos foram a segunda classe mais prescrita (123), sendo a fluoxetina o fármaco mais receitado, verificando-se um padrão de consumo também maior entre aqueles com idade inferior a 60 anos (Figura 1).
Quanto à quantidade de psicofármacos utilizados, 122 (57,5%) faziam uso de apenas um medicamento, enquanto 68 (32,0%), 15 (7,0%) e sete (3,3%) indivíduos utilizavam, respectivamente, dois, três e quatro psicotrópicos ao dia. Em relação ao tempo de uso dos medicamentos receitados, 34 (16,0%) pessoas os utilizavam a menos de um ano, 72 (34,0%) de um a cinco anos, 48 (22,6%) de seis até 10 anos, 56 (26,4%) há mais de 10 anos e duas pessoas (1,0%) não souberam informar.
Os medicamentos foram obtidos em mais de uma opção de fornecimento, comprando, adquirindo (farmácia popular, UBS, SUS, médico e outras) ou ambas as possibilidades. Reações desagradáveis foram relatadas por 46 indivíduos (21,7%) e 21 (9,9%) relataram esquecimento como principal efeito colateral. Foi identificado, ainda, que 175 pessoas (82,5%) obtiveram melhora dos sintomas com o uso da medicação e que 174 (82,1%) os utilizavam no horário certo. Ademais, 110 pacientes (51,8%) voltaram ao médico que receitou o medicamento, dos quais 39 (35,5%) retornaram mensalmente. Foi verificado ainda, que além dos 212 consumidores de psicotrópicos receitados, sete usuários entrevistados já haviam feito uso de psicofármacos sem prescrição médica. Em adição, observou-se que apesar de não haver relevância estatística (p=0,073) há uma tendência de quem não realiza atividade física fazer mais uso de psicofármacos.
DISCUSSÃO
O alvo do presente estudo foi investigar a prevalência do uso de psicotrópicos nas UBS. A prevalência encontrada se mostrou consideravelmente maior quando comparada com outros estudos brasileiros, os quais evidenciaram uso de psicotrópicos variando de 7,3% a 38,7% entre usuários da atenção básica (Figura 2).1,7-10
Uma revisão realizada em 2016 sugere que o aumento da frequência do uso de psicofármacos pode ter relação com a pressão da indústria farmacêutica, influenciando a prescrição de novos medicamentos.13 Junto a isso, acrescenta-se o uso de alguns medicamentos além das indicações especificas do fármaco, prática denominada uso off-label, e o aumento dos diagnósticos psiquiátricos na atualidade.1,9,14,15 Iniciativas como o Too much Medicine, Choosing Wisely, e a Slow Medicine também abordam essas questões, enfatizando a necessidade da redução do número de procedimentos diagnósticos e de tratamentos desnecessários.16,17,18
Por outro lado, deve ser considerado o anseio do médico em resolver as queixas do paciente, frequentemente apenas de cunho emocional, o que leva a medidas de efeito imediato, como a prescrição de drogas psicoativas como se fossem "calmantes". Além disso, há ainda a busca do paciente por tais soluções instantâneas em detrimento de medidas não farmacológicas, como atividade física ou tratamento psicológico. Isso contribui para prescrições despropositadas, conforme corroborado pela literatura.19,20,21
As principais justificativas para o uso eram justamente queixas que se enquadram nos TMC, sendo as principais depressão e insônia, como já era esperado.3 Isso leva ao consumo crônico de fármacos, inclusive os empregados em patologias que possuem tempo de tratamento já estabelecido em protocolos clínicos. Em parte, este fato pode ser explicado pela dificuldade do paciente em retornar ao especialista que prescreveu o medicamento, além da questão ética enfrentada pelo médico da atenção primária em retirar ou mesmo mudar o tratamento outrora instituído pelo prescritor.19
Outra vertente observada é a insistência por parte de alguns pacientes para a continuidade do tratamento, gerada pela possível dependência, física ou psicológica, associada a determinados fármacos, ou mesmo a um possível ganho secundário associado ao uso da medicação e ao papel de doente. Ao nível da atenção primária, observa-se também que há frequente renovação de receitas, sem a reavaliação do paciente.22,23 Em suma, a manutenção das drogas psicotrópicas é conveniente para ambos, médico e paciente, considerando a dificuldade em encontrar um equilíbrio entre prescrição racional e empatia com os problemas de cada indivíduo.24
As mulheres representaram a maioria dos usuários de psicofármacos. Vários estudos confirmam tal achado: mulheres possuem tendência a apresentar mais transtornos de ansiedade e do humor que homens, enquanto estes apresentam maior prevalência de transtornos associados ao uso de substâncias psicoativas, tais como tabaco, álcool e drogas.25,26
A prevalência de transtornos de humor na mulher pode ser aproximadamente o dobro da dos homens ao longo da vida, o que pode estar relacionado a uma maior susceptibilidade biológica feminina. Segundo Steiner et al. (2003), os esteroides sexuais, particularmente o estrógeno, agem na modulação do humor, o que poderia explicar a marcante vulnerabilidade a sintomas ansiosos e depressivos na mulher.27 Urgell et al. (2005) apontam para um maior consumo de psicofármacos no sexo feminino, o que parece estar associado à maior prevalência de transtornos psiquiátricos deste gênero, além destas terem uma maior preocupação com o seu bem-estar e frequentarem mais os serviços de saúde.28 Já Luna et al. (2000) sugerem que a abordagem dos médicos diante de pacientes com sintomas ansiosos ou depressivos varia de acordo com o gênero: prescreve-se mais drogas psicotrópicas e concede-se maior apoio psicológico quando o paciente em questão é uma mulher.29
Quanto à idade, os idosos utilizavam menos psicofármacos, sendo a faixa etária dos adultos de meia-idade a que exibiu maior prevalência de uso, apesar de o estudo mostrar uma quantidade alarmante de jovens usando esse tipo de medicamentos. Tal achado difere de outros estudos, que indicam que o consumo aumenta conforme a idade.7,30,31 Isso pode ser explicado por uma maior racionalização ao prescrever esse tipo de fármaco para idosos que geralmente usam diversos medicamentos que podem interagir entre si, além de risco de quedas, confusão mental, incontinências, alterações semelhantes à demência e ao fato de serem preditores de incapacidade funcional em idosos.32,33
A maioria das pessoas que afirmaram consumo de bebida alcoólica, mesmo que em finais de semana esporádicos, não faziam uso de psicofármacos concomitantemente. Por serem acessíveis e de baixo custo, as bebidas alcoólicas podem ser utilizadas na tentativa de aliviar os sintomas psíquicos, reduzindo assim o uso de psicofármacos.3 Outro fato é que muitas drogas podem interagir com o álcool, mesmo em doses moderadas, alterando seus efeitos pela modificação da farmacocinética e farmacodinâmica. No que tange aos benzodiazepínicos, além da tolerância e dependência esperadas, sabe-se que há potencialização do efeito depressor respiratório e psicomotor a partir da interação com o álcool.À vista disso, há uma maior orientação médica acerca dessa associação, o que pode explicar um menor uso de álcool por indivíduos em uso de psicotrópicos.34,35
Em contrapartida, verificou-se que entre os entrevistados que declararam ser tabagistas, a maioria fazia uso de psicotrópicos. A explicação mais plausível para tal achado é que o cigarro pode aliviar os efeitos colaterais dos psicofármacos, já que a nicotina diminui a concentração dos psicofármacos no plasma. Além de poder contribuir para a melhoria de sintomas de ansiedade, apesar de causar dependência.36,37
Acerca das classes terapêuticas utilizadas, os benzodiazepínicos aparecem como principal classe de psicofármacos consumida, mesmo resultado encontrado em dois estudos realizados em municípios da região nordeste, no qual a prevalência variou de 33,5% a 44%.38,39 Entretanto, outros estudos apontam para a classe dos antidepressivos como a mais prescrita.1,40,41 Foi visto ainda que quase metade dos pacientes usava mais de um psicotrópico, o que é consideravelmente superior à média nacional, em que 18% a 30,6% dos pacientes estavam em tratamento combinado para transtornos mentais.42,43
Foi verificado que mais da metade dos pacientes que usavam psicofármacos tomava clonazepam e/ou fluoxetina, provavelmente pelo fato de os dois medicamentos serem fornecidos gratuitamente pelo SUS e dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina apresentarem uma maior segurança em relação a outros antidepressivos.43 Mesmo sendo drogas de fácil manejo, essas duas classes devem ser utilizadas de forma racional, visto que possuem um alto potencial de causar efeitos adversos, como dependência e outros agravos à saúde, mesmo em doses terapêuticas, quando usadas por um período prolongado.44,45
Nesse sentido, o uso contínuo de benzodiazepínicos não é recomendado, preconizando sua utilização por até três meses, prática contrária à achada neste estudo, visto que a maioria dos entrevistados estavam em uso de psicofármacos há mais de um ano, aumentando o risco de falha terapêutica a longo prazo e de abstinência medicamentosa.44
Além disso, é sabido que a melhora do condicionamento físico proporcionada pelas atividades físicas é considerada uma das maneiras mais eficazes para se reduzir os riscos de doenças, tanto de origem orgânica quanto de origem psicológica. Este fato pode sugerir o achado no presente estudo uma tendência a um menor consumo de drogas psicoativas em praticantes de atividades físicas regulares.46
Dessa forma, percebe-se a importância de limitar as prescrições psicotrópicas para pacientes que não se beneficiam claramente delas e evitar medicamentos desnecessários.19,47 O acesso a outras modalidades terapêuticas às vezes é limitado pela dificuldade de encontrar outros profissionais, por exemplo, o que agrava o excesso de medicalização.19 A utilização racional dos psicofármacos está intimamente relacionada com o controle da prescrição dos mesmos, que somente será realizada de forma adequada com a utilização de protocolos clínicos e terapêuticos, além de capacitação dos profissionais nas UBS. A consulta médica deve ser valorizada por médicos e pacientes, para que seja prescrito um psicofármaco a partir de uma indicação adequada, promovendo o seu uso racional. Devem ser estimuladas algumas estratégias, como a capacitação continuada de profissionais, o trabalho em equipes multidisciplinares e a educação da população.1
Esse estudo apresenta algumas limitações que podem ser destacadas. Em primeiro lugar, a elevada prevalência encontrada pode ser devido ao fato de as entrevistas terem sido realizadas com população clínica. Em seguida, não foram utilizados instrumentos específicos para avaliar volume ingerido e frequência de consumo de bebidas alcoólicas e tabaco. O mesmo ocorreu quanto aos psicofármacos, para os quais não foi possível obter dados objetivos como dosagem diária, substituição de fármacos, uso anterior e regularidade no consumo. E, por se tratar de um estudo transversal, não é possível assegurar a relação de causalidade entre os atributos avaliados.
CONCLUSÃO
A prevalência do uso de psicotrópicos nas UBS pesquisadas foi elevada, indicando a necessidade de melhorar os cuidados na atenção à saúde mental desses pacientes, tanto nos aspectos preventivos quanto de tratamento.
É provável que muitos desses indivíduos não apresentassem transtorno mental que justificasse o uso de medicamentos psiquiátricos. É importante lembrar que as intervenções terapêuticas não devem se restringir à prescrição de medicamentos, e incluem mudanças de comportamentos, hábitos de vida e abordagens psicossociais.
AGRADECIMENTOS
Aos nossos familiares, por serem base e apoio nos momentos necessários. Ao Professor Carlos Eduardo Leal Vidal pela idealização do projeto, pelo imenso auxílio durante todo o processo de pesquisa, na assistência estatística e pela confiança que foi depositada ao grupo. À Secretaria de Saúde de Barbacena e aos enfermeiros-chefe e equipe de saúde das UBS, pela colaboração na obtenção de dados. Aos pacientes entrevistados, pela disponibilidade em atender aos questionamentos. Ao Professor Márcio Heitor Stelmo da Silva pela ajuda na conformação da coleta de dados das entrevistas. À Professora Leda Marília Fonseca Lucinda e ao Professor Mauro Eduardo Jurno, pela disponibilidade e atenção sempre que solicitados, além das críticas que em muito ajudaram a melhorar este trabalho. À bibliotecária Letícia Miranda, pela ajuda na busca ativa pelas referências bibliográficas. Às Professoras Dulcilene Mayrink de Oliveira e Janine Mayra da Silva por aceitarem o convite de participar da banca avaliadora.
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