RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 30. Esp DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20200050

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Relato de Caso

Síndrome da Acardia Fetal em Gêmeos Monozigóticos: Relato de Caso

Fetal Acardia Syndrome in Monozygotic Twins: Case Report

Débora de Oliveira Sampaio1; Anderson de Azevedo Andrade2; Vinicius Willian Costa Dumont3; Amanda Rossi Poncio Vita1; Bruno Bittencourt Procópio1; Ramon Rabelo Neves4; Cirilo José Ferreira Neto1; Crisellen Delogo Sinete1; Jamile Gonçalves Nacur Nagem1

1. Instituto Metropolitano de Ensino Superior, Graduação em Medicina - Ipatinga - MG - Brasil
2. Instituto Metropolitano de Ensino Superior, Médico e Professor de Emergências Obstétricas no Instituto Metropolitano de Ensino Superior - Ipatinga - MG - Brasil
3. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Graduação em Medicina - Betim - Minas Gerais - Brasil
4. Universidade José do Rosário Velano, Graduação em Medicina - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência

Débora de Oliveira Sampaio
E-mail: deborasa@icloud.com

Recebido em: 10/06/2019
Aprovado em: 10/05/2020

Instituição: Instituto Metropolitano de Ensino Superior - Ipatinga, MG - Brasil.

Resumo

A síndrome da acardia fetal ou sequência de perfusão arterial inversa gemelar (SPAIG) é uma complicação incomum de gestações gemelares monozigóticas. Um estudo realizado em 2015 estimou a incidência de SPAIG em 2,6% das gestações monocoriônicas.1 Tal patologia é caracterizada por um feto fisiologicamente normal que bombeia sangue para o gemelar acárdico ou pseudocárdico, através de anastomoses arterioarteriais. O presente artigo relata o caso de uma síndrome da acardia fetal diagnosticada em gestante de 16 anos, a qual foi acompanhada com avaliações periódicas até a vigência do trabalho de parto, sem intercorrências para a mesma ou para o feto do doador.

Palavras-chave: Gêmeos Monozigóticos; Doenças Placentárias; Transfusão Feto-Fetal; Desenvolvimento Fetal; Coração Fetal.

 

INTRODUÇÃO

A gestação acárdica ou sequência de perfusão arterial inversa gemelar (SPAIG) refere-se a uma complicação rara, única das gravidezes gemelares monocoriônicas, em que um gêmeo com um coração ausente ou rudimentar, denominado gêmeo acárdico, é perfundido por sangue desoxigenado pelo feto fisiologicamente normal, via anastomoses arterio-arteriais.

A incidência de malformações congênitas é consideravelmente aumentada em gestações múltiplas quando comparadas às gestações únicas, com cerca de 2% de ocorrência.2 De acordo com van Gemert e colaboradores, a incidência de SPAIG foi de 1 em 9500 a 11.000 gestações, com estimativa de 2,6 por cento das gestações monocoriônicas.1

Após o diagnóstico da SPAIG, as pacientes necessitam de acompanhamento especializado e a conduta deve ser discutida individualmente. Uma vez estabelecido a continuação da gravidez, até o momento, não há estratégia especifica baseada em evidência clínica, entretanto, estudos sugerem exames ultrassonográficos seriados, a cada uma ou duas semanas, para otimizar o tempo de intervenção terapêutica, caso haja deterioração do feto doador. Além do mais, a corticoterapia deve ser considerada, respeitando a idade gestacional adequada, dado o risco aumentado de trabalho de parto prematuro.3

O prognóstico é fatal para o gêmeo acárdico e a taxa de mortalidade para o gêmeo sadio corresponde a 55% devido a complicações relacionadas à falência da bomba cardíaca.2 O diagnóstico dessa patologia pode aumentar a sobrevida do gemelar anatomicamente normal, evidenciando a importância do pré-natal adequado.

Assim sendo, esse artigo foi escrito com o objetivo de relatar o caso de uma síndrome da acardia fetal, em que a paciente optou por manutenção da gestação. A mesma foi acompanhada através de avaliações e exames ultrassonográficos regulares até a vigência do trabalho de parto, sem intercorrências para o feto sadio ou para a mãe.

 

RELATO DE CASO

Trata-se de uma paciente de 16 anos, G3PN2A0 com história pregressa de um natimorto devido à cardiopatia e uma criança portadora de Síndrome de Down. Apresentava exame ultrassonográfico morfológico revelando gestação gemelar monocoriônica, de 18 semanas, com a presença de anastomoses arterio-arteriais entre os fetos: feto A com boa evolução e feto B em decesso, com sinais de hidropsia, ausência de imagem que evidenciasse tecido cardíaco e fluxo reverso no cordão umbilical e aorta descendente. Com tais alterações, foram preenchidos todos os critérios para o diagnóstico de Síndrome de Acardia Fetal em gestação gemelar. Feita a correlação clínica com os resultados do exame, optou-se pela conduta conservadora, sendo realizados ultrassons (US) quinzenais.

Ao completar 28 semanas, a gestante apresentou lombalgia e dor em baixo ventre, sem perdas vaginais. Foi realizada dinâmica uterina que demonstrou ausência de contrações e US evidenciando: feto A cefálico, BCF 141 bpm, Peso Fetal Estimado (PFE) de 1.130 gramas, Índice de Líquido Amniótico (ILA) de 17,2 e doppler sem alterações; feto B mantendo padrão anômalo. Foi administrada betametasona e optou-se por prosseguir ainda com conduta conservadora.

Com 36 semanas e um dia de gestação, a paciente evoluiu com parto vaginal do feto A que, ao nascer, apresentou-se com boa vitalidade e APGAR 7 e 9, no primeiro e quinto minutos, respectivamente. No decorrer do trabalho de parto, não houve descida do feto B/acárdico, sendo realizado o encaminhamento da parturiente ao bloco cirúrgico. Ao exame de toque, o feto B apresentava-se pélvico e, após manobras específicas, houve progressão e expulsão do natimorto, que apresentava malformação importante, com pescoço e face sem limites precisos (figura 1). Ao fim do trabalho de parto, mãe e feto viável evoluíram sem intercorrências.

 


Figure 1. Feto acárdico com apresentação acardius acephalus Fonte: Acervo pessoal

 

DISCUSSÃO

As taxas das gestações múltiplas têm avançado em proporção crescente, principalmente nos países desenvolvidos, em decorrência de idade materna mais avançada (maior incidência a partir dos 40 anos de idade) e a utilização técnicas de reprodução assistida. Tais dados são divergentes em relação ao relato, que trata de uma paciente de 16 anos, sem história de métodos artificiais de inseminação.4

A incidência de parto prematuro é maior nos extremos da menacme (adolescentes e maiores de 35 anos) e em gestações múltiplas, com aumento do risco a cada criança adicional.5 A prematuridade associa-se a eventos adversos fetais como baixo peso ao nascer, complicações respiratórias e Apgar abaixo do esperado, entre outros. Tais alterações se correlacionam com o aumento da mortalidade perinatal e da morbidade a curto e longo prazo. As informações são concordantes com o relato, pelo fato de este retratar uma gestante de 16 anos, com fetos múltiplos e início do trabalho de parto fora do termo (< 37 semanas). Todavia, mesmo com o risco de desfechos desfavoráveis associados a gestações múltiplas e partos prematuros, mãe e recém-nascido morfologicamente saudável, evoluíram de maneira positiva, sem intercorrências.6

As anomalias congênitas são mais comuns nos nascimentos múltiplos e monozigóticos, com algumas complicações exclusivas da monocorionicidade, sendo elas: Sequência TRAP (Twin Reversed Arterial Perfusion) ou Sequência de Perfusão Arterial Inversa Gemelar (SPAIG), originária de uma anastomose arterio-arterial entre os gemelares, sendo um deles acárdico; Síndrome de Transfusão Gêmelo-Gemelar (STGG), oriunda de anastomoses arterio-venosas placentárias; e Sequência TAPS (Twin Anemia - Polycythemia sequence), que se caracteriza por ser uma manifestação crônica da STGG, com níveis diferentes de hemoglobina entre os gêmeos, mas, com ausência da sequência oligo-polidrâmnio. Deste modo, o caso apresentado corrobora os dados da literatura, pelo fato de se tratar de uma gemelaridade monozigótica associada à Sequência TRAP com um dos fetos acárdico.7

Em uma circulação fetal fisiológica, o sangue rico em oxigênio proveniente da placenta, flui através da veia umbilical para o feto. Posteriormente, o ducto venoso desvia a maior parte do fluxo sanguíneo para a veia cava inferior onde mescla com o retorno venoso das extremidades inferiores e rins para adentrar no átrio direito. A partir desse momento, o coração fetal atua em paralelo através da segunda e terceira derivação (forame oval e canal arterial, respectivamente) enviando o sangue para artéria aorta, fornecendo assim, circulação ao restante do corpo.8 Physiologic transition from intrauterine to extrauterine life Physiologic transition from intrauterine to extrauterine life

Porém, na gestação com SPAIG, apesar de ter sua fisiopatologia ainda pouco esclarecida, acredita-se que o feto saudável bombeia sangue com pequenas concentrações de oxigênio para o feto acárdico, através das anastomoses arterio-arteriais placentárias (figura 2). Por sua vez, o gemelar malformado devolve o sangue desoxigenado para o feto saudável, através da artéria umbilical, o que faz com que este possa desenvolver insuficiência cardíaca, restrição de crescimento, hidropsia, e polidrâmnio, ao passo que aquele geralmente se apresenta com malformações cerebrais, pulmonares e de outros órgãos (além do coração), bem como extremidades apicais inexistentes ou formadas de maneira errônea. Assim como nas fontes bibliográficas, o quadro retratado pelo estudo revela um feto acárdico com extremidades superiores de limites imprecisos, devido à anomalia. Todavia, o gemelar viável não apresentou quaisquer complicações possíveis abordadas na literatura.2

 


Figure 2. Esquema demonstrando a circulação entre o gêmeo doador ("pump twin") através de anastomoses placentárias ao feto acárdico ("acardic twin") Fonte: US Davis Health Children's Hospital

 

O diagnóstico é feito pela ultrassonografia morfológica fetal de primeiro trimestre ao se identificar os seguintes parâmetros: gestação com gemelares monocoriônicos com fluxo de cordão umbilical e aorta descendente com padrão reverso, ausência parcial ou inexistência do coração em um dos conceptos e presença de anastomoses arterio-arteriais. Tais critérios contemplados na literatura convergem com aqueles apresentados no momento da ultrassonografia morfológica realizada pela gestante com 18 semanas de idade gestacional.9

O tratamento ainda é controverso e pode-se optar tanto por medida expectante quanto por métodos cirúrgicos. A primeira tem uma taxa de mortalidade de 50 a 75% para o feto saudável, devendo ser manejada com avaliações frequentes. Já a segunda, geralmente indicada se houver comprometimento do concepto viável, consiste em ocluir o cordão umbilical, através de intervenção cirúrgica, que pode proporcionar uma sobrevida de até 75% ao gemelar normal. As principais alternativas cirúrgicas compreendem a ligadura com fio, a fotocoagulação, a secção do cordão ou o álcool absoluto.2 O manejo da paciente abordada no relato ocorreu de forma expectante, já que o feto não comprometido apresentava-se com boa vitalidade em exames subsequentes ao diagnóstico.9

 

CONCLUSÃO

A síndrome da acardia fetal é uma rara complicação das gestações múltiplas monocoriônicas, necessitando de manejo específico. O ultrassom morfológico no primeiro trimestre é o método diagnóstico de escolha e pode ser feito precocemente, abstendo-se assim, de um desfecho negativo para o gêmeo sadio, reforçando a importância de um pré-natal regular e adequado.

 

REFERÊNCIAS

1. van Gemert MJ, van den Wijngaard JP, Vandenbussche FP. Twin reversed arterial perfusion sequence is more common than generally accepted. Birth Defects Res A Clin Mol Teratol. 2015 Jul;103(7):641-3.

2. Oliveira AS, Elito Junior J. Complicações fetais na Gemelaridade Monocoriônica: quadro clínico, fisiopatologia, diagnóstico e conduta. Rev Femina. 2014;42(2):95-100.

3. Miller R. Diagnosis and management of twin reversed arterial perfusion (TRAP) sequence. 2020 jan 02 [ citado em 2020 marc 18]. In: UpToDate [Internet]. Filadélfia (PA): Wolters Kluwer Health. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/diagnosis-and-management-of-twin-reversed-arterial-perfusion-trap-sequence

4. Soares AMR, Silva FB, Porto GCL, Almeida LC, Justiniano VB, Esteves APVS. Complicações materno-fetais de gestações gemelares. Rev Caderno de Medicina. 2019;2(1):74-84.

5. Veiga LLP. Gestações nos extremos de idade reprodutiva e resultados perinatais adversos em uma maternidade escola de Maceió, Alagoas [dissertação]. Maceió: Universidade Federal de Alagoas; 2017.

6. Nascimento JS, Fonseca SMSM, Santos CA, Oliveira LB, Menezes MO. Gestação gemelar e trabalho de parto prematuro. In: Congresso Internacional de Enfermagem; 9-12 maio 2017; Aracaju. Aracaju (SE): Universidade Tiradentes; 2017. p. 1-4.

7. Maternidade Escola UFRJ [Internet]. Rio de Janeiro: Portal Maternidade Escola UFRJ; 2020 [citado em 2020 marc 17]. Disponível em: http://www.me.ufrj.br/index.php/atencao-asaude/protocolos-assistenciais/obstetricia

8. Caraciolo JF. Physiologic transition from intrauterine to extrauterine life. 2019 dez 11 [citado em 2020 marc 17]. In: UpToDate [Internet]. Filadélfia (PA): Wolters Kluwer Health. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/physiologic-transition-from-intrauterine-to-extrauterine-life#

9. Gerado J, Trippia CR, Caboclo MFFS, Lima RR, Nicolodi GC. Radiol Bras. 2018;51(2):123-138.