RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 30. (Suppl.5) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v30supl.5.05

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Artigo de Revisão

Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica em crianças e adolescentes

Non-alcoholic fatty liver disease in childhood and adolescence

Sérgio Henrique Viegas Ladeira1; Eleonora Druve Tavares Fagundes2; Priscila Menezes Ferri Liu3; Alexandre Rodrigues Ferreira4

1. Gastroenterologista Pediátrica
2. Doutora, Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Membro do Setor de Gastroenterologia Pediátrica, Hospital das Clínicas,UFMG, Belo Horizonte, MG
3. Doutora, Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Membro do Setor de Gastroenterologia Pediátrica, Hospital das Clínicas,UFMG, Belo Horizonte, MG
4. Doutor, Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Membro do Setor de Gastroenterologia Pediátrica, Hospital das Clínicas,UFMG, Belo Horizonte, MG

Endereço para correspondência

Eleonora Druve Tavares Fagundes
Faculdade de Medicina da UFMG - Departamento de Pediatria
Avenida Alfredo Balena 190, 2º andar - Santa Efigênia
Belo Horizonte Minas Gerais - CEP 30.130.100

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil.

Resumo

A obesidade infantil é uma epidemia mundial. São várias as comorbidades associadas à obesidade, destacando-se a doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA), um termo abrangente que envolve desde a esteatose hepatocelular simples até quadros mais avançados de esteato-hepatite, fibrose e cirrose hepática. Atualmente, é a segunda maior causa de transplante hepático em adultos nos Estados Unidos, com potencial de se tornar a primeira nas próximas décadas. Associado a este panorama, ainda existe o desafio do diagnóstico, uma vez que os critérios clínicos e laboratoriais ainda são controversos, especialmente em crianças. A biópsia é o padrão ouro, entretanto é um procedimento invasivo e sujeito a riscos. Por isso, a dosagem de enzimas hepáticas e a ultrassonografia abdominal são utilizadas para triagem e avaliação, apesar de suas limitações. O tratamento de DHGNA deve obrigatoriamente incluir a abordagem da obesidade. Por isso, os pilares do tratamento envolvem a mudança do estilo de vida e dos hábitos alimentares. Embora a eficácia de várias medicações venha sendo estudada, a alimentação saudável e a atividade física permanecem como a mais importante estratégia de prevenção e tratamento da DHGNA na infância e adolescência. A equipe multidisciplinar deve, junto ao paciente e a família, construir uma rotina de hábitos alimentares e atividades físicas adequadas para cada caso.

Palavras-chave: doença hepática gordurosa não alcoólica. esteatose hepática. esteatohepatite. Criança. adolescente

 

INTRODUÇÃO

Com o aumento da incidência e da prevalência dos casos de obesidade infantil, observa-se o aumento concomitante de várias comorbidades relacionadas, destacando-se a hipertensão arterial, síndrome metabólica, dislipidemias e a doença hepática gordurosa não alcoólica / nonalcoholic fatty liver disease (DHGNA / NAFLD).1 A epidemia de obesidade tornou a DHGNA uma causa comum de doença hepática em crianças e adultos constituindo tema de saúde pública. Devido à possibilidade de progressão para cirrose hepática, a DHGNA é a segunda causa de indicação de transplante hepático em adultos nos Estados Unidos, perdendo apenas para a hepatite C.2 Estima-se que a prevalência da DHGNA em crianças e adolescentes no mundo ocidental, seja de 5 a 15%.3

DHGNA é o termo utilizado para se referir a um amplo espectro de doenças hepáticas, que vão desde o acúmulo de gordura hepática até formas variadas de inflamação, fibrose e necrose hepatocelular, em indivíduos sem história prévia de consumo de álcool. A DHGNA é definida como esteatose hepática crônica não secundária a causas genéticas nem desordens metabólicas, infecciosas, uso de medicações, consumo de etanol ou mal nutrição, consistindo então em um diagnóstico de exclusão.4,5

Por outro lado, existe o desafio do diagnóstico, uma vez que os critérios clínicos e laboratoriais ainda são controversos, especialmente em crianças. A biópsia é o padrão ouro, entretanto é um procedimento invasivo e sujeito a riscos. Novos exames laboratoriais e de imagem têm sido desenvolvidos com objetivo de melhorar a acurácia diagnóstica, no entanto, em geral, envolvem custos elevados e ainda não estão amplamente disponíveis. Por isso, ainda se utiliza frequentemente a dosagem de enzimas hepáticas e a ultrassonografia (USG) abdominal para triagem e avaliação apesar de suas limitações.4,6

Como a DHGNA é consequência da obesidade, seu tratamento deve envolver necessariamente a mudança do estilo de vida e dos hábitos alimentares. Devido à relevância do tema em pediatria, este trabalho tem como objetivo elaborar uma revisão de literatura sobre a DHGNA na criança e no adolescente, com foco na abordagem diagnóstica e terapêutica.

 

REVISÃO DA LITERATURA

Trata-se de uma revisão narrativa com pesquisa bibliográfica nas bases de dados PubMed e Medline e sites que sumarizam as evidências disponíveis na literatura como o Uptodate por artigos em português e inglês publicados nos últimos 20 anos. Foram incluídos artigos originais, de revisão e séries de casos encontrados através das palavras-chave:doença hepática gordurosa não alcoolica (non-alcoholicfatty liver disease), obesidade (obesity), esteatose hepática (hepatic steatosis), esteato-hepatite (steatohepatitis),crianças (children), pediatria (pediatrics).

Além disso, foram incluídos outros artigos relacionados nas referências dos artigos pesquisados.

 

TERMOS E DEFINIÇÕES

DHGNA é o termo genérico utilizado para se referir a um amplo espectro de apresentações, não secundárias a causas genéticas nem desordens metabólicas, infecciosas, uso de medicações, consumo de etanol ou desnutrição, que vão desde a esteatose hepatocelular simples até quadros mais avançados de esteato-hepatite, fibrose e cirrose hepática. É um diagnóstico de exclusão. A forma mais comum de apresentação é representada pela esteatose hepática sem inflamação nem fibrose. Estes vários estágios descritos podem apresentar caráter regressivo ou progressivo.5

A esteatose hepática simples consiste no acúmulo de lipídio em pelo menos 5% dos hepatócitos, sem necro-inflamação associada à lesão hepatocelular.7 A esteatose hepática pode ser classificada como primária ou secundária, sendo que a primária ocorre como parte da síndrome metabólica, ondenão há outro diagnóstico subjacente. É o caso da DHGNA, objeto de estudo desta revisão. A secundária é subjacente a diversas outras condições que levam a esteatose hepática, destacando-se a fibrose cística, hemocromatose, doença de Wilson, uso de corticoides, antirretrovirais, quimioterapia, nutrição parenteral, álcool, dentre outras.4

A esteato-hepatite não alcóolica (EHNA) está associada a processo inflamatório, com ou sem fibrose. Esta condição apresenta maior risco para o desenvolvimento de cirrose e carcinoma hepatocelular.7 Cerca de 20-40% dos adultos com DHGNA evoluem para EHNA e, destes, 20-50% desenvolverão fibrose e subsequentemente cirrose, num período médio de 15 anos.8 Embora a história natural da doença na criança ainda não seja claramente conhecida, evidências indicam que o potencial de desenvolvimento de fibrose e cirrose é preocupante quando a DHGNA tem início na infância.6

O uso do termo DHGNA para crianças também é discutido, sendo sugerido o termo "paediatric fatty liver disease" (PeFLD), como mais apropriado, uma vez que o consumo de álcool usualmente não é um fator de doença hepática nesta faixa etária.9 No entanto, seguindo a tendência da maior parte das publicações nacionais e internacionais, optamos por manter os termos DHGNA e EHNA até que haja consenso sobre a terminologia.4,5

 

EPIDEMIOLOGIA

Atualmente é bem estabelecida a associação entre a obesidade e a DHGNA que tem sido considerada como a sintomatologia hepática da síndrome metabólica. O aumento da incidência e prevalência de obesidade nas crianças e adolescentes, em decorrência do estilo de vida sedentário associado à ingestão alimentar hipercalórica,está associado ao aumento dos casos de DHGNA. No Brasil este fenômeno também é observado. Em 2013, a Pesquisa Nacional de Saúde contabilizou que 56,9% da população brasileira apresentava excesso de peso e a obesidade acometia quase 30 milhões de adultos. Segundo dados do Ministério da Saúde, na faixa etária de 5 a 9 anos o aumento do sobrepeso em meninos foi de 10,9% em 1974 para 34,8% em 2009; para as meninas, foi de 8,6% para 32% neste mesmo período. Em relação à obesidade em meninos, neste mesmo período, variou de 2,9% para 16,6% e nas meninas foi de 8,6 para 11,8% nesta faixa etária.10

Nas crianças norte-americanas, a prevalência de DHGNA quase triplicou no período de 2007 a 2010 (10,7%) em relação ao período de 1988 a 1994 (3,9%) e continua aumentando.11 Da mesma forma, a prevalência da DHGNA vem aumentando na Europa, com taxas variando entre 3 até 10% da população pediátrica em geral.6 Entretanto, é importante ressaltar que os critérios diagnósticos de DHGNA variam na literatura, o que pode explicar, em parte, as diferenças de incidência e prevalência entre os diversos estudos.

Os fatores de risco, tanto para criançascomo para adultos são aqueles associados à obesidade, destacando-se os hábitos alimentares pouco saudáveis, com ingestão de alimentos com alto nível calórico e lipídico,associado ao estilo de vida sedentário. A gordura visceral é um preditor independente de necroinflamação e fibrose na DHGNA em adultos.1 Há ainda a influência da origem étnica, sendo descrita maior susceptibilidade em hispânicos. Acredita-se que esta diferença esteja relacionada a fatores genéticos e ambientais, incluindo tipo de dieta. Sexo masculino também apresenta maior risco, tanto antes como após a puberdade.4,6

O mecanismo da lesão hepática na DHGNA parece ser um "processo de múltiplos hits" em que vários insultos agem juntos em indivíduos predispostos, entre eles: disfunção do tecido adiposo, resistência insulínica, estresse oxidativo, alteração nos níveis de adipocinas, dentre tantos outros. Evidências recentes sugerem que a microbiota intestinalpossui papel no desenvolvimento da obesidade e de suas complicações, incluindo DHGNA. O microbioma do obeso está modificado de modo a aumentar a eficiência em absorver os nutrientes. O melhor entendimento de todos estes fatores é necessário para explicar porque apenas uma pequena porcentagem dos pacientes progride da esteatose à esteato-hepatite e cirrose.4,5

 

DIAGNÓSTICO DE DOENÇA HEPÁTICA GORDUROSA NÃO ALCOÓLICA

O estabelecimento de critérios diagnósticos para DHGNA, especialmente em pacientes pediátricos e adolescentes, é um desafio por ser uma doença insidiosa e assintomática na maioria dos casos. Sintomas vagos como fadiga e dor abdominal inespecífica são relatados. A hepatomegalia foi o achado mais comum (51%), mas é importante destacar a dificuldade em palpar o fígado nestes pacientes em decorrência da obesidade associada. A acantose nigricans, sinal relacionado à hiperinsulinemia, foi relatada em 49% dos pacientes. Assim, o diagnóstico, pode decorrer de achados incidentais, como alteração em exames de imagem ou exames laboratoriais hepáticos realizados por razões diversas.5

A presunção clínica por meio de sinais, tais como obesidade central, elevação de enzimas hepáticas, especialmente a alanina aminotransferase (ALT), e/ou evidência ultrassonográfica, associado à exclusão de outras causas de hepatopatias, é que muitas vezes leva ao diagnóstico de DHGNA. No entanto, apesar de ser tentador assumir o diagnóstico de DHGNA em crianças obesas com ALT elevada, erros podem advir deste raciocínio.4,6 Causas metabólicas secundárias são muito mais prováveis em crianças com menos de três anos de idade e a DHGNA ainda é relativamente rara em pacientes abaixo de 10 anos de idade.9

Por se tratar de uma doença cujo diagnóstico é de exclusão, ao se avaliar um paciente com suspeita de DHGNA deve-se excluir outras etiologias para elevação da ALT e/ou esteatose hepática e investigar a presença de doenças crônicas hepáticas coexistentes, como doenças genético-metabólicas e uso de drogas hepatotóxicas. Assim, a avaliação clínica criteriosa, com anamnese bem elaborada e exame físico completo, associado à avaliação laboratorial complementar constituem ferramentas fundamentais para o diagnostico desta condição.5 A presença de icterícia, atraso do desenvolvimento psicomotor e acometimento de outros órgãos deve levantar a suspeição de esteatose secundária.12 Também é importante realizar avaliação nutricional completa destes pacientes, incluindo diário alimentar.

Exames laboratoriais

A indicação de exames laboratoriais deve ser racional considerando acurácia e relação custo-benefício. Dentre as enzimas hepáticas, a que apresenta melhor sensibilidade para o diagnóstico de DHGNA é a ALT, apesar de sua limitação na diferenciação entre a gravidade dos casos. Pacientes com fibrose hepática podem apresentar valores normais a moderadamente aumentados de ALT com flutuações ao longo do tempo.4,5

Os valores de normalidade utilizados ainda são controversos, especialmente em crianças, com tendência de utilizar valores de corte cada vez mais baixos. Nos Estados Unidos, os pontos de corte específicos baseados no sexo foram determinados a partir de dados nacionalmente representativos e validados em uma coorte bastante diversa, sendo de 22 mg/dL para meninas e 26 mg/dL para meninos.12 Em estudo canadense, o limite superior de normalidade para ALT encontrado foi de 30 mg/dL em crianças de um a 12 anos de idade e 24 mg/dL entre 13 e 19 anos.13

Devido a estas limitações, a elevação persistente da ALT (além de três meses) e acima de duas vezes o maior valor de referência para idade deve ser investigada diante da possibilidade de DHGNA. ALT maior que 80 U/L requer pronta investigação devido a maior probabilidade de doença hepática significativa.4 Por outro lado, é importante ressaltar que na suspeita de DHGNA é recomendado excluir outras causas de esteatose hepática ou do aumento de ALT ou a presença de doença hepática coexistente.4-6

A Sociedade Norte-americana de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica (NASPGHAN, em inglês) recomenda que a triagem para DHGNA deva ser realizada entre 9 e 11 anos para todas as crianças obesas (percentil de IMC acima de 95) e para crianças com sobrepeso (percentil de IMC entre 85 e 94) associado a fatores de risco adicionais (adiposidade central, resistência à insulina, pré-diabetes, diabetes, dislipidemia, apneia do sono ou história familiar de EHNA). A triagem precoce deve ser considerada em pacientes mais jovens que apresentem fatores de risco como obesidade grave ou história familiar de DHGNA.4

Na abordagem geral da criança com obesidade, considerar ainda a verificação do perfil lipídico (colesterol total, HDL, LDL e triglicerídeos), glicemia, hemoglobina glicada, insulina sérica e teste de tolerância oral a glicose.

Vários escores combinando dados clínicos e laboratoriais foram estudados como ferramentas para o auxílio no diagnóstico de esteatose e fibrose hepática em adultos, mas ainda não foram validados para crianças.4,6

Exames de imagem

A USG apresenta grande aplicabilidade no estudo do abdome, consistindo em exame debaixo custo, de fácil realização e não invasivo.No entanto, vários estudos demonstram que a USG subestima a prevalência de esteatose hepática quando menor que 20%, não apresentando sensibilidade suficiente para detectar esteatose leve.14,15 A sensibilidade para detectar graus moderados de esteatose varia de 55% a 90%.15 A USG também apresenta limitação em estimar o grau de fibrose demonstrando correlação fraca entre os achados ultrassonográficos e o estágio histológico da fibrose na biópsia. Desta forma, apesar de ser um exame amplamente disponível, apresenta desempenho insatisfatório na detecção e quantificação de esteatose, o que limita seu uso como exame de triagem. Pode ser útil na detecção de massas, colelitíase e alterações associadas à hipertensão porta.4,5

A elastografia hepática representa um método promissor sendo cada vez mais utilizada para avaliar a fibrose hepática em adultos, no entanto, apresenta custo elevado reduzindo sua disponibilidade e evidências limitadas em crianças.16

A ressonância magnética é considerada a referência na avaliação da esteatose hepática com sensibilidade de 92,6% e especificidade de 95,7%.4 Porém, apresenta limitações - tempo prolongado para sua realização, alto custo,necessidade de experiência do operador- tornando-se seu uso limitado na prática clínica rotineira e monitoramento de tratamento.4,5

A tomografia computadorizada não é recomendada para diagnóstico e monitoração da resposta ao tratamento devido ao uso de radiação ionizante, o que é especialmente importante nas crianças. A tomografia apresenta sensibilidade entre 54 e 93% e especificidade de 90 a 100%.4,17

Biópsia hepática

A biópsia hepática é considerada o padrão ouro para o diagnóstico e avaliação histológica da DHGNA. Entretanto, sua indicação de rotina na prática clínica ainda é controversa. Se for realizada somente nas crianças com níveis elevados de aminotransferases pode subestimar o diagnóstico da DHGNA e identificar apenas os casos avançados. Por outro lado, sua realização de rotina deve ser questionada, uma vez que se trata de procedimento invasivo com baixo, mas não desprezível, risco de complicação. Outra limitação da biópsia consiste na amostragem do tecido obtida aleatoriamente, que nem sempre reflete o que ocorre no restante do órgão.5 Embora asaminotransferases e os exames de imagemsejam testes não invasivos aceitáveis para o rastreamento de pacientes com DHGNA, a identificação dainflamação e fibroserequer abiópsia hepática. Infelizmente, até o momento, não existe correlação confiável entre os níveis de aminotransferases com a histologia hepática na DHGNA.8

Dentre as vantagens de se realizar a biópsia hepática, destaca-se a possibilidade de diagnosticar e estadiar a DHGNA, descrevendo a esteatose, o tipo de acúmulo de gordura (macro ou microvesicular), a presença de inflamação, necrose e o grau de fibrose. A principal característica histológica da DHGNA é a presença de gordura macrovesicular no interior dos hepatócitos, com deslocamento do núcleo celular para a periferia.7 O infiltrado inflamatório da esteato-hepatite não alcoólica é caracteristicamente leve, consistindo principalmente de linfócitos e histiócitos e/ou células de Kupffer. Outro marcador histológico de dano hepático crônico é a fibrose.5,7

As diretrizes da NASPGHAN orientam que a biópsia deva ser considerada quando há incerteza diagnóstica (particularmente em crianças menores de 10 anos ou não obesas), maior risco de doença avançada com esteatohepatite e fibrose (ALT persistentemente aumentada e > 80U/L, esplenomegalia e relação aspartato aminotransferase -AST/ALT > 1).4

 

TRATAMENTO

O tratamento de DHGNA deve obrigatoriamente incluir a abordagem da obesidade com mudança do estilo de vida e dos hábitos alimentares.18

A perda de peso é, sem dúvida, o tratamento mais benéfico para pacientes com DHGNA. Idealmente, a perda de peso deve ser gradual, pois a restrição dietética excessiva pode agravar o distúrbio metabólico e aumentar a lesão hepática, além de não se obter uma adesão satisfatória a longo prazo. Como controle do peso, observa-se melhora das aminotransferases, triglicérides,colesterol total e frações. A perda de peso de 7 a 10% está associada à melhora da esteatose hepática e até mesmo regressão de fibrose, justificando assim a abordagem dos hábitos dietéticos dos pacientes.4-6,18

O aconselhamento dietético pode parecer confuso e avassalador para as famílias, especialmente se isso desafiar seus hábitos alimentares e práticas culturais. Por esse motivo, a participação do pediatra, gastroenterologista pediátrico, nutricionista e educador físico é vital. A dieta deve ser individualizada para cada paciente, respeitando sua cultura. Um ponto estratégico fundamental para o sucesso do tratamento é o envolvimento familiar que também deve aderir às mudanças propostas, pois é frequente encontrarmos outros membros também com sobrepeso ou obesidade, e por isso a dieta deve estar adaptada a realidade dos envolvidos.4,6,18

Assim como em adultos, não há evidências suficientes para sustentar uma dieta específica para todas as crianças. Há diversos estudos, inclusive em crianças, comparando dietas com baixo teor glicídico e/ou lipídico, dietas com restrição de frutose e dieta mediterrânica. Os resultados são controversos e o que parece ser mais importante é que qualquer dieta que possibilite a perda de peso, respeitando as necessidades específicas de cada faixa etária e contexto sociocultural, pode efetivamente reduzir a esteatose hepática. Por outro lado, evitar bebidas açucaradas e doces em geral é consenso como estratégia para diminuir a obesidade.4,19

Um ponto a ser destacado é a importância da prevenção deste quadro, por meio das consultas de seguimento pediátrico ambulatorial. Nestas consultas, o pediatra deverá, em conjunto com a família, estabelecer a alimentação saudável da criança, desde o início da introdução da alimentação complementar, pois ospadrões alimentares que se formam na infância tendem a ser mantidos na fase adulta. O segundo pilar do tratamento consiste na prática de atividade física regular. Observa-se que o exercício físico regular, independente da modalidade, está associado a reduções significativas daadiposidade visceral, doacúmulo lipídico intra-hepático e da resistência à insulina.20

Método prático de aumentar os níveis gerais de atividade é reduzir o tempo de tela sedentário, especialmente para crianças e adolescentes. Os especialistas recomendam um tempo máximo de tela de umaou duas horas por dia. Entretanto, cabe destacar que a atividade física para crianças deve assumir um caráter lúdico. Ao submeter a criança ou o adolescente a rotinas repetitivas de exercícios físicos, observa-se que esta atividade está fadada ao fracasso. Assim, é importante aliar atividades que reforcem a importância do brincar, para, assim, conseguir maior adesão e sucesso no tratamento. Além disto, o reforço positivo da equipe e da família é importante para que o paciente consiga manter-se dentro da nova rotina de atividades e hábitos alimentares instituídos.4,5

Para pacientes adultos obesos com DHGNA que não respondem à dieta, exercício e terapia comportamental, a farmacoterapia pode ser utilizada. A vitamina E e a metformina são os principais agentes terapêuticos testados no tratamento da DHGNA. em crianças. No entanto,os estudos contam com amostras pequenas de pacientes. Outros agentes também têm sido testados, mas ainda sem resultados comprovados, como, por exemplo,os poliácidos graxos modificados (PUFAs), probióticos, ácido ursodesoxicólico e vitamina D. Desta forma, até o momento, nenhuma medicação mostrou benefício significativo para o uso rotineiro em crianças com DHGNA.4

Finalmente, a cirurgia bariátrica não é recomendada atualmente como terapia específica para DHGNA, devido à falta de dados sobre resultados em crianças e em adolescentes. Entretanto, ela vem sendo considerada em casos específi cos, principalmente em adolescentes com IMC = 35 kg / m2 que não melhoraram com as medidas dietéticas, e que apresentem DHGNA não-cirrótica associada a comorbidades graves (por exemplo, diabetes mellitus tipo 2 e apneiagrave do sono) que provavelmente melhorarão com o procedimento.4

 

CONCLUSÕES

A epidemia de obesidade é o resultado de mudanças culturais e sociais ocorridas ao longo do último século. A DHGNA é considerada a manifestação hepática da síndrome metabólica associada à obesidade com possibilidade de tornar-se importante fator de risco de transplante hepático dentro de algumas décadas. O melhor entendimento sobre a fisiopatologia desta condição éfundamental para o manejo adequado. O diagnóstico ainda é um desafio devido à ausência de exames com acurácia adequada, por isso deve se basear em exame clínico completo, triagem laboratorial inicial com dosagem de ALT e extensão da propedêutica se necessário (Figura 1).

 


Figura 1 - Proposta de abordagem da criança e adolescente com obesidade

 

Por ser uma doença secundária à obesidade, tornase imperativo medidas efetivas de combate e prevenção à obesidade. Para isso, a família da criança deve ser abordada e atuar de forma ativa no tratamento, que não deve se restringir apenas ao paciente obeso. Os pediatras, educadores, educadores físicos e nutricionistas exercem papel fundamental no combate à obesidade infantil, seja por meio da orientação como no desenvolvimento de programas de incentivo a prática de atividades físicas e hábitos alimentares saudáveis. A eficácia do tratamento medicamentoso, principalmente em crianças, ainda é controversa, não sendo este indicado na rotina até o presente momento.

A obesidade é reconhecida como um problema de saúde pública. Infelizmente, a DHGNA ainda não o é. Assim, os pediatras devem ficar atentos a esta condição e avaliar a necessidade de exames quando necessário. É importante destacar a importância que o pediatra geral assume quanto ao controle desta doença, uma vez que é ele quem primeiro vai reconhecer esta condição, e assim orientar o paciente e seus familiares encaminhando-o à equipe multidisciplinar quando for necessário.

 

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