RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 30. (Suppl.6) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v30supl.5.02

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Relato de Caso

"Piggyback": uma alternativa de sucesso para caso desafiador de adaptação de lentes de contato

Carolina Serpa Braga1*; Frederico de Miranda Cordeiro1; Mariela Grossi Donato1; Matheus de Souza Ramos2; Gabriel Felipe Gonzaga Silveira3; Alice Martins da Costa Souza1,4; Rodrigo Fernandes Godinho1,4

1. Instituto de Olhos Ciências Médicas (IOCM) - Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais, Medicina - Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) - Belo Horizonte,MG - Brasil
4. Instituto de Olhos de Belo Horizonte (IOBH)

Endereço para correspondência

Carolina Serpa Braga
Rua Pouso Alegre 407, Floresta, Belo Horizonte
Telefone: +55 (31) 98385-2300
Email: carolinasbraga@hotmail.com

Resumo

As distrofias corneanas são alterações bilaterais e geneticamente determinadas, sem associação com quadros inflamatórios, doenças oculares e/ou sistêmicas prévias. A distrofia estromal macular é caracterizada por opacidades superficiais esbranquiçadas, irregulares que se iniciam na região central na primeira década de vida e, gradualmente, se estendem para região posterior e periferia, tornando-se difusas, com ausência de áreas claras entre elas. As opacidades levam à redução importante da visão. O objetivo deste trabalho é relatar o sucesso de uma adaptação de lentes de contato pelo sistema piggyback, que usa concomitantemente uma lente gelatinosa e uma lente de contato rígida gás permeável (LCRGP), em um caso desafiador de reabilitação visual de jovem com baixa de acuidade visual secundária a distrofia corneana possivelmente do tipo macular que já havia sido submetida a ceratectomia fototerapêutica e transplante de córnea sem recuperação visual satisfatória. O sistema piggyback, frente ao quadro clínico de superfície corneana irregular e episódios de erosões frequentes, foi uma alternativa de sucesso para reabilitação visual, pois possibilitou a união da capacidade de correção visual da LCRGP com o conforto e proteção propiciadas pela lente gelatinosa.

 

INTRODUÇÃO

As distrofias corneanas podem ser classificadas como um grupo de alterações bilaterais e geneticamente determinadas, sem associação com quadros inflamatórios, doenças oculares e/ ou sistêmicas prévias. Podem ser divididas em 3 grupos com base na localização anatômica predominante das alterações: distrofias corneanas anteriores (epitélio, membrana de Bowman e estroma superficial), estromais e posteriores (membrana de Descemet e endotélio). Caracterizam-se por opacidades corneanas de formas variáveis, erosões epiteliais recorrentes, fotofobia, dor ocular e afetam a acuidade visual em diferentes graus. 1

A distrofia macular ou Groenow tipo II é a mais rara das distrofias estromais e possui herança autossômica recessiva envolvendo o gene CHST6. Ela é caracterizada por opacidades superficiais esbranquiçadas, irregulares que se iniciam na região central na primeira década de vida e gradualmente, se estendem para região posterior e periferia, tornando-se difusas, com ausência de áreas clara entre elas. O estroma posterior, a membrana de Descemet e o endotélio também podem ser envolvidos. As opacidades levam à redução importante da visão, geralmente entre 10 e 30 anos de idade. Na histopatologia nota-se acúmulo de glicosaminoglicanos intra e extracelular no estroma da córnea, membrana de Descemet e endotélio. Além disso, a região central da córnea se torna afinada devido à compactação das fibras de colágeno. Os mucopolissacarídeos são corados pelo Alcian Blue e Ferro Coloidal.1,2,3

Dentre as opções terapêuticas, as lentes de contato, são possibilidades viáveis no caso de distrofias corneanas que cursam com redução da acuidade visual, mas as erosões recorrentes podem tornar o processo de adaptação mais complicado. O sistema piggyback, também chamado de adaptação à cavaleiro, foi introduzido no ano de 1970 por Baldone e Clark, e consiste na colocação de uma lente macia gelatinosa, geralmente uma lente descartável de silicone hidrogel, sob uma lente rígida, de alta permeabilidade ao oxigênio (DK)4. Essa combinação tem como função aliviar o desconforto, melhorar o posicionamento e auxiliar a estabilidade da lente rígida, além de proteger a córnea em caso de erosões por toque excessivo da LCRGP sobre a córnea. Sendo assim, permite ao paciente uma melhor qualidade visual aliada ao maior conforto ocular. 5

O objetivo deste trabalho é relatar o sucesso do sistema piggyback em um caso desafiador de adaptação de lente de contato em paciente jovem com distrofia corneana de provável subtipo macular.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente feminina, 28 anos, hígida, com queixa de baixa acuidade visual (AV) em ambos os olhos (AO) e relatos de dor ocular recorrente associada a fotofobia e hiperemia. Informa opacidade corneana bilateral desde os 6 meses de idade. Realizou ceratoplastia lamelar anterior (ALK) no olho direito (OD) em 2010 e ceratoplastia lamelar anterior profunda (DALK) no olho esquerdo (OE) em 2012, na qual evoluiu com a síndrome de Urrets-Zavalia. Após ambos os procedimentos, considera que a melhora visual ocorreu, mas foi transitória. Nega uso de óculos e refere pequena experiência com lentes de contato, mas sem boa adaptação ou melhora visual significativa. Apresenta história familiar de baixa AV (irmão), mas desconhece detalhes.

Ao exame oftalmológico apresentou: AV sem correção (AVSC) 20/70 no OD e 20/200 no OE; AV com pinhole (AVPH) 20/40 no OD e 20/80 no OE e AV com refração de 20/60 (-1,00 -2,00 x 80º) no OD e 20/200 (+3,00 -3,00 x 155º) no OE. À biomicroscopia: opacidade corneana superficial, pupila 3.5mm, enxerto lamelar anterior com bom aspecto, cristalino transparente no OD e opacidade corneana superficial, pupila midriática fixa 7.5mm e cristalino transparente no OE; fundoscopia sem alterações e pressão intraocular: 18 no OD e 14 mmHg no OE. Paquimetria 656 no OD e 572 no OE.

Inicialmente, foi realizada uma ceratectomia fototerapêutica (PTK) com ablação transepitelial de 100 micra no OE (Figura 1). Houve melhora da AV no OE, com AVSC de 20/125 e AVPH de 20/60 com evidência à biomicroscopia de área central corneana mais clara do que observado anteriormente.

 


Figura 1: Topografia de córnea de ambos os olhos. É possível avaliar irregularidade corneana em ambos os olhos. No olho esquerdo, observa-se um aplanamento central assimétrico, resultado após a ceratectomia fototerapêutica (PTK).

 

Após a melhora com a PTK, foi realizado o teste de lente. Este foi iniciado com LCRGP multicurvas, modelo Rose K2 e Rose K2 IC, ambas da empresa Mediphacos. Entretanto, elas se mostraram instáveis e descentradas, com pontos de toque sobre a córnea e subsequente aumento do desconforto. O teste foi então continuado com os modelos de lente esclerais (Esclera) e corneoesclerais (Rose K2 XL), também da empresa Mediphacos, mas estas apresentaram entrada de bolhas na borda inferior, devido a uma possível toricidade escleral. Posteriormente, em novo teste, em outro serviço, foi feita adaptação com o uso da lente asférica corneana Cléber Godinho (CG - Mediphacos), curva base 44.00 D no OD e 43.00 D no OE, em que foi observado uma boa centralização da lente com troca lacrimal e boa AV, 20/30 AO. Nesse momento, a paciente foi orientada a usar a lente por 1 semana, sendo que no último dia, antes do retorno, deveria dormir com a mesma.

No retorno, queixou-se de dor, fotofobia e embaçamento visual. À biomicroscopia o OD apresentava cisto central, córnea sem áreas coradas pela fluoresceína, com ausência de hiperemia ocular e no OE hiperemia conjuntival leve com área de erosão temporal superior corada pela fluoresceína (Figura 2). Prescrito Regencel e lubrificante ocular para AO, orientado oclusão ocular noturna e colocada lente gelatinosa hidrofílica no OE. Após 10 dias, apresentou melhora dos sintomas, AVSC 20/60 no OD e 20/200 no OE e biomicroscopia do OD com pequenas puntatas temporais superiores e no OE ponto único corável.

 


Figura 2: A e B - Biomicroscopia do olho direito mostrando opacidade corneana superficial, enxerto lamelar anterior com bom aspecto, presença de cisto central e ausência de lesões coraveis a fluoresceína. C - Biomicroscopia do olho esquerdo revelando presença de hiperemia ocular leve,opacidade corneana superficial e pupila midriática fixa 7.5mm. D - Olho esquerdo com área de erosão temporal superior corada pela fluoresceína.
Fonte: acervo dos autores

 

Após tratamento da superfície ocular, foi optado pelo teste de lente com o sistema piggyback, no qual foi observado um bom padrão com a utilização da LCRGP modelo CG 44.0 D no OD e 43.5 D no OE, ambas com poder de -2,50 dioptrias, sobre lentes de contato gelatinosas (Figura 3) e AV final de 20/25 AO. Paciente segue em acompanhamento regular, realiza a troca das lentes gelatinosas a cada 10 dias e está muito satisfeita com a AV.

 


Figura 3: Adaptação, no olho direito (A) e no olho esquerdo (B), do sistema piggyback no qual uma lente gelatinosa foi colocada sob uma LCRGP modelo CG (Mediphacos).
Fonte: acervo dos autores

 

DISCUSSÃO

Os pacientes com distrofia macular que apresentam pouco ou nenhum sintoma geralmente não necessitam de tratamento específico, sendo acompanhados com exames oftalmológicos periódicos. No caso de erosões corneanas recorrentes, colírios lubrificantes, pomadas, antibióticos e lentes de contato especiais podem ser usados. Em casos leves com opacidades superficiais, a ceratectomia fototerapêutica (PTK) com o uso do excimer laser pode ser usado para remoção de algumas anormalidades no tecido corneano superficial. Porém, no caso das distrofias com alteração importante da regularidade e transparência corneana em camadas mais internas, os pacientes normalmente necessitam do transplante de córnea. Na maioria das vezes, uma ceratoplastia penetrante, devido à redução visual severa por volta da terceira década de vida se faz necessária. A recorrência da distrofia macular na córnea doadora é rara, mas pode ocorrer após alguns anos, assim como no caso relatado. 1,3,6,7

Desse modo, apesar da melhora visual relatada pela nossa paciente após a realização dos transplantes de córnea, a recidiva das opacidades corneanas, o quadro de erosões frequentes e a irregularidade corneana não permitiam qualidade visual satisfatória, sendo necessário nova abordagem para a reabilitação visual. Diante de tal desafio, foi optado pela adaptação de lentes e o sistema piggyback apresentou-se como uma alternativa eficaz para garantir boa visão e adaptação com conforto pela paciente.

O sistema piggyback normalmente é indicado em pacientes que apresentam intolerância ou desconforto à LCRGP, instabilidade destas, ou presença de toque frequente da LCRGP sobre a córnea. Esse sistema permite aos pacientes maior conforto, mas suas desvantagens são uma maior dificuldade de manejo devido ao uso simultâneo de duas lentes e a presença de uma barreira dupla nos olhos, com maior risco de hipóxia e complicações que levam ao edema corneano. No entanto, essas complicações podem ser minimizadas escolhendo os parâmetros apropriados (permeabilidade de oxigênio e design asférico disponível) e permitindo que ambas as lentes tenham alguma mobilidade durante o piscar. 8,9

 

CONCLUSÃO

Por ser um tratamento descrito há 50 anos4 o sistema piggyback por muitas vezes é esquecido durante as adaptações de lentes de contato. No entanto, em casos semelhantes ao da paciente, em que há presença de córnea com superfície irregular e quadro de erosões frequentes, tal adaptação possibilitou a união da capacidade de correção visual da LCRGP com o conforto e proteção propiciadas pela lente gelatinosa.

Apesar dos riscos atribuídos ao uso de duas lentes no sistema piggyback, a indicação individualizada do modelo, o treinamento, as orientações adequadas ao paciente, o acompanhamento oftalmológico frequente e a troca regular, tornam esse sistema uma alternativa viável, interessante e confortável para reabilitação visual em casos desafiadores como o descrito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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