RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 30. (Suppl.6) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v30supl.5.06

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Relato de Caso

Tuberculose extrapulmonar ocular: um relato de caso

Eye extra pulmonary tuberculosis: a case report

Bernardo Franco de Carvalho Tom Back1; Carolina Miranda Hannas2; Maria Isabel Passos Simões Dias Sampaio Tom Back3; Isabella Cristina Tristão Pinto2; Isadora Vieira Menicucci Ferri4; Lucas Brandão Damasceno Goés4

1. Centro Oftalmologico de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
2. Residentes em Oftalmologia do Instituto de Olhos Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
3. Oftalmologista e preceptora da residencia médica do Instituto de Olhos do Hospital Universitário Ciências Médicas. Belo Horizonte - MG, Brasil
4. Acadêmicos de medicina da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil

Instituição: Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, MG -Brasil

Resumo

A tuberculose é uma doença sistêmica que pode cursar com acometimento ocular em cerca de 1-2% dos casos. A clínica da oftalmopatia é pouco específica e de difícil reconhecimento, pois o achado microscópico do patógeno nas lesões é incomum. Além disso, pode levar a perda de visão de forma irreversível, se não tratada precocemente. O presente trabalho tem como objetivo relatar um caso de acometimento ocular da doença, mostrando a dificuldade diagnóstica e as medidas farmacológicas adotadas em cada momento, até o diagnóstico final.

Palavras-chave: Tuberculose Ocular. Tuberculose. Uveíte. Mycobacterium tuberculosis.

 

INTRODUÇÃO

A tuberculose é uma doença sistêmica, causada pelo Mycobacterium tuberculosis. O principal foco de ação do patógeno é o pulmão, porém há possibilidade de acometimento extrapulmonar. Não frequente, em 1 a 2% dos casos, a bactéria pode atingir os olhos, seja por via hematogênica ou por infecção direta. A lesão ocular ocorre majoritariamente pela inflamação gerada em resposta imune exacerbada, diferente da lesão pulmonar, que é causada pela ação direta do microorganismo.1

A manifestação ocular da tuberculose é ampla, sendo a sua principal forma de acometimento através das uveítes. No entanto, pode se manifestar como endoftalmite, tuberculoma, alterações em coróide e retina, entre outros. O fato da sua apresentação clínica ser pouco específica, associado a dificuldade da visualização de bacilos na análise direta da lesão, torna o seu diagnóstico desafiador.1,2

Não existem até o momento, exames clínicos ou laboratoriais definitivos para a doença, apesar de alguns exames nortearem o pensamento clínico do médico, tais como biópsia da lesão ocular, exame bacteriológico, radiografia de tórax, prova tuberculínica (PPD), dentre outros. O mais utilizado, principalmente em países endêmicos, como o Brasil, é a presunção através dos sinais e sintomas oftalmológicos, associado a uma história prévia ou exames positivos de tuberculose.3

O Brasil está entre os 22 países mais atingidos pela tuberculose, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. A dificuldade diagnóstica e o contexto de endemia reforçam a importância do conhecimento sobre a doença. As lesões geradas pela doença podem evoluir, se não tratadas, para uma amaurose súbita e definitiva, que impacta de forma intensa tanto a saúde do indivíduo quanto a saúde pública nacional.3

Considerando a raridade da tuberculose extrapulmonar ocular na atualidade, o objetivo deste artigo é relatar o caso de um paciente com os achados clássicos da doença. Além disso, mostrará a dificuldade diagnóstica da patologia e as medidas farmacológicas e propedêuticas adotadas em cada momento, até o diagnóstico final.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 56 anos, procurou atendimento oftalmológico queixando-se de baixa acuidade visual em olho esquerdo (OE), de início súbito e piora progressiva há 3 dias, sem outros sintomas oculares ou sistêmicos. Nega histórico de traumas, uso de medicações, doenças oculares ou sistêmicas, contato com animais e internações.

Ao exame oftalmológico, apresentava: melhor acuidade visual (AV) de 20/20 no olho direito (OD) e conta dedos (CD) a 2m no OE. Biomicroscopia sem achados significativos no OD e com precipitados ceráticos granulomatosos inferiores e reação de câmara anterior (1/4+) no OE. A fundoscopia revelava no OD: vítreo claro, disco normocorado, retina aplicada com uma lesão perimacular focal, localizada temporal superior, sugestiva de coroidite (Figura 1A). No OE foi visto: celularidade vítrea (1+/4+), edema de papila, hemorragia peripapilar, descolamento seroso de retina atingindo polo posterior e dois pontos focais de coroidite nasal superior (Figura 1B). A pressão intraocular era de 20 mmHg em ambos os olhos (AO). A angiofluoresceinografia apresentou hipofluorescência por bloqueio em região da lesão temporal superior à direita (Figura 2A); Hiperfluorescência de disco e macular difusa por vazamento à esquerda (Figura 2B). Foi realizada Ecografia B, com evidência de massas subrretinianas em OE.

 


Figura 1 - Retinografi a (A - Olho Direito; B - Olho Esquerdo)
Fonte: acervo dos autores

 

 


Figura 2 - Angiofl uoresceinografi a (A - Olho direito; B - Olho esquerdo)
Fonte: acervo dos autores

 

Após exame, foi aventada a hipótese de coroidite a esclarecer, sendo as etiologias sugeridas: retinocoroidite herpética, sarcoidose, linfoma, metástase ocular, tuberculose ocular e HIV. Foi realizada a internação da paciente para propedêutica (Tabela 1), e iniciado uso de Aciclovir endovenoso (EV), corticóide e tropicamida tópicos. A prova tuberculínica (PPD) foi solicitada, porém não havia sido realizada devido à indisponibilidade do teste no momento, e foi então agendada para data posterior.

 

 

No sétimo dia de internação, apresentou redução da AV para 20/50 no OD, mantendo AV prévia no OE. Ao exame, houve aumento da lesão de coroidite temporal superior, atingindo a mácula do OD.

Diante da piora clínica e laboratorial, associada a não resposta ao uso da terapêutica vigente, optou-se pelo início de tratamento empírico com esquema RIPE (Rifampicina + Isoniazida + Pirazinamida + Etambutol), baseado no diagnóstico presumido de tuberculose ocular, com manutenção das demais medicações.

Nos 8 dias seguintes do uso do esquema medicamentoso para tuberculose ocular, houve estabilização da AV no OD, com AV de 20/100 e CD a 2m no OE. Ao exame fundoscópico era possível ver a estabilidade da lesão de coroidite, sem sinais de expansão. O PPD foi realizado e apresentou-se não reativo. Foi feita a suspensão do Aciclovir EV, e manutenção do esquema RIPE para tratamento de tuberculose ocular. Considerando a estabilidade geral alcançada, a paciente recebeu alta hospitalar com manutenção do tratamento para tuberculose a nível ambulatorial.

Em acompanhamento posterior, houve melhora progressiva da AV no olho direito e cicatrização completa das lesões de coroidite em AO. Foi realizado tratamento completo do esquema RIPE para tuberculose, de acordo com o período preconizado pelo Ministério da Saúde. Em seu último exame registrado, apresentava AV de 20/25 no OD e CD a 2m no OE. A campimetria computadorizada mostrou perda importante de sensibilidade coincidente com as regiões de coroidite em AO, com destaque para a grave perda em região foveal no OE (Figura 3 e 4). A fundoscopia evidenciou ausência de vitreíte (AO); disco normocorado, atrofia perimacular, temporal superior, correspondendo a lesão previa (OD) e disco pálido, área de atrofia em torno do disco óptico e na mácula (OE).

 


Figura 3 - Campimetria de Olho Direito
Fonte: acervo dos autores

 

 


Figura 4 - Campimetria de Olho Esquerdo
Fonte: acervo dos autores

 

DISCUSSÃO

A tuberculose ocular pode acometer em tese todos os segmentos oculares, sendo, dessa forma, um importante diagnóstico diferencial de vários acometimentos oftalmológicos. A uveíte posterior é a apresentação mais comum da tuberculose ocular. Os padrões comuns incluem lesões solitárias, lesões múltiplas, lesão coroidal miliar e coroidite multifocal.4

Conforme ilustrado no caso, o acometimento ocular pode se manifestar com ou sem a presença de doença sistêmica e, de certa forma, apresenta-se inespecificamente como baixa acuidade visual. A reação tecidual descrita como coroidite temporal superior com extensão para região foveolar está relacionada à invasão bacilar ou à reação de hipersensibilidade tipo IV. Acrescenta-se que a gravidade da lesão ocular influenciou nas condutas tomadas, como a internação precoce e as medidas terapêuticas instituídas.

Devido a importância de um diagnóstico preciso, devem ser excluídos os diagnósticos diferenciais. O exame histopatológico direto é uma ferramenta útil, mas possui baixa sensibilidade, uma vez que as culturas, ocasionalmente, são inconclusivas. Considerando o caso apresentado, o diagnóstico foi presumido, pois o esquema RIPE obteve controle da doença retiniana.6

Para excluir os outros diagnósticos foram solicitados sorologia para infecções sexualmente transmissíveis, função renal e hepática, PPD, mamografia, tomografia computadorizada de tórax e crânio, ressonância magnética de encéfalo, avaliação liquórica. Apesar da necessidade de ampliar a propedêutica, é fundamental a exclusão de outros fatores que possam estar relacionados diretamente ou indiretamente com a coroidite do presente caso.

As técnicas moleculares e bioquímicas já foram muito utilizadas, como a realização de cadeia da polimerase dos fluidos intra oculares, porém, da mesma forma, possuem baixa sensibilidade para o diagnóstico. Acredita-se que o teste de liberação de interferon-gama (IGRA) tem melhor sensibilidade e especificidade do que os outros testes, embora nenhum teste possa dar o diagnóstico definitivo.5

O tratamento da tuberculose ocular é semelhante ao da tuberculose pulmonar. Em geral, consiste na associação de quatro medicações: Rifampicina, Isoniazida, Pirazinamida e Etambutol (RIPE), por dois meses. Na segunda fase, utiliza-se rifampicina e isoniazida, por quatro meses. Se houver refratariedade ao tratamento, deve-se considerar multirresistência, dessa forma, as ações em conjunto de oftalmologistas com especialistas em doenças infecciosas é fundamental.4,7

O uso de glicocorticóides não possui um fundamento estabelecido e deve ser usado de forma criteriosa. Todavia, existe a possibilidade da ação antiinflamatória reduzir a progressão de danos retinianos. Entretanto, é de suma importância o uso em terapia combinada com o esquema RIPE, devido a possibilidade de reativação da tuberculose latente no olho ou em outras estruturas devido a imunossupressão, se utilizado em altas doses. Outro fenômeno que deve ser considerado é o efeito da rifampicina como indutor da enzima metabolizadora de esteroides hepáticos, que, reduz o efeito terapêutico dos esteróides sistêmicos.3,8

No presente caso, a utilização do esquema RIPE foi orientada conforme as recomendações do Ministério da Saúde, de forma ambulatorial, devido a estabilização das lesões bilateralmente. O acompanhamento próximo do paciente com reavaliações frequentes é de suma relevância, visando a detecção de novos sintomas visuais ou dos efeitos colaterais às medicações. Dessa maneira, houve melhora progressiva da acuidade visual no OD e cicatrização completa das lesões de coroidite em AO.

Deve-se ressaltar a possibilidade de acometimento em qualquer compartimento do globo ocular, com início precoce do esquema RIPE, possibilitando melhores desfechos visuais. A resposta adequada à terapêutica, reforça a concordância com o diagnóstico presumido de tuberculose intraocular, como no caso apresentado.

Os oftalmologistas sempre devem estar em contato com médicos infectologistas, que possam auxiliar no manejo das medicações, devido ao risco elevado dos efeitos colaterais do etambutol e da rifampicina, além dos glicocorticóides sistêmicos, caso sejam utilizados.

Por fim, mais estudos são necessários para esclarecer métodos mais eficientes e acurados para firmar o diagnóstico e estabelecer um tratamento direcionado para casos específicos de acometimento ocular.

 

REFERÊNCIAS

1. Trad S, Saadoun D, Errera MH, Abad S, Bielefeld P, Terrada C, et al. [Ocular tuberculosis]. Rev Med Interne. 2018 Sep;39(9):755-764.

2. Koubaa M, Smaoui F, Gargouri S, Ben Ayed H, Rekik K, Abid I, et al. [Ocular tuberculosis: A case series]. Rev Med Interne. 2018 May;39(5):326-331.

3. Câmara SN, Barbosa Júnior JB, Barbosa KCR. Anterior uveitis as a manifestation of ocular tuberculosis. Rev Bras Oftalmol. 2019; 78(3):195-8.

4. Neuhouser AJ, Sallam A. Ocular Tuberculosis. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2020.

5. Varma D, Anand S, Reddy AR, Das A, Watson JP, Currie DC, et al. Tuberculosis: an under-diagnosed aetiological agent in uveitis with an eff ective treatment. Eye (Lond). 2006 Sep;20(9):1068-73.

6. Gupta A, Bansal R, Gupta V, Sharma A, Bambery P. Ocular signs predictive of tubercular uveitis. Am J Ophthalmol. 2010 Apr;149(4):562-70.

7. Koller K, Ricci LH, Lindoso JAL, Lindoso AABP, Muccioli C. Aspectos clínicos e tratamento de pacientes com tuberculose ocular presumida em centro de referência de São Paulo, Brasil. Rev Bras Oftalmol. 2019; 78 (6): 384-8.

8. Souissi S, David T, Beral L. Steroid treatment in ocular tuberculosis: A double-edged sword? J Fr Ophtalmol. 2017 Feb;40(2):126-132.