RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 30. (Suppl.6) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v30supl.5.08

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Artigo de Revisão

O uso do colírio de atropina como estratégia terapêutica para retardar o desenvolvimento de miopia em crianças

The use of atropine eye drops as a therapeutic strategy to delay myopia development in children

Isabella Barony Macedo1; Henrique Dias Coelho Cunha2; Julien Kraemer Bastos2; Priscilla Sá de Carvalho Almeida 2; Reinaldo de Oliveira Sieiro3

1. Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG
2. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG
3. Professor adjunto da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

Endereço para correspondência

Isabella Barony Macedo
Email: isabellabm19@gmail. com

Resumo

Introdução: A miopia é o principal distúrbio refrativo e causa da perda visual para longe mundialmente. Estima-se que até 2050 metade da população mundial será míope, dobrando os atuais números relativos a condição.1 Para combater a progressão dessa epidemia, discute-se a aplicação tópica de diferentes doses de atropina.6,7,8,9 Objetivos: Evidenciar na literatura a eficácia do uso de colírio de atropina para retardar a miopia em crianças, considerando as diferenças nas dosagens. Métodos: Realizou-se uma revisão de literatura sistemática nas bases de dados PubMed e Lilacs com as palavras-chave "myopia AND atropine AND children AND treatment". Encontraram-se 103 artigos. Destes, excluíram-se revisões de literatura, meta-análises, estudos observacionais, artigos sobre a etiologia da doença específica pelo título. Incluíram-se estudos com estudo clínico randomizado. Além disso, artigos com até 5 anos de publicação foram aceitos, resultando em 4 estudos utilizados. Discussão: O uso do colírio de atropina é vantajoso por ser um tratamento não invasivo, indolor e de baixo custo.6 O uso da atropina em diferentes concentrações foi testado nos três ensaios experimentais inclusos no presente trabalho. Neles, foram utilizadas as respectivas concentrações da substância no colírio, sendo: 0,5%, 0,1%, 0,01% no estudo de Chia et al (2016), 0,05%, 0,025% e 0,01% no estudo de Yam et al (2019), 0,01% no estudo de Diaz- Llopis et al (2018) e de 0,5% no estudo de Polling et al (2016). O primeiro ensaio clínico demonstrou que a média de progressão da miopia foi de -1,38+0,98 D para 0,01%, sendo menor do que em 0,1% e 0,5% de atropina. Já nos dados obtidos por Yam et al (2019), a concentração de 0,05% foi a considerada a melhor para redução do equivalente esférico (SE). Os dados obtidos por Yam (2019) concluíram que o melhor custo-benefício também está na concentração de 0,05%, ainda propondo a utilização de concentrações menores mais vezes ao dia. Diaz-Llopis (2018) provou que a diluição 0,01% reduziu a progressão da miopia para -0,14+0,35 D em relação ao controle, que foi de -0,65+0,54 D. Finalmente, Polling et al (2016) demonstraram que o uso de atropina a 0,5% por 1 ano reduziu a progressão para -0,1D/ano em relação ao grupo que abandonou o tratamento, que foi de -0,5D/ano. Conclusão: A atropina em baixas doses parece ser eficaz para retardar a progressão da miopia em crianças. Todavia, os estudos, ainda que cientificamente relevantes e que tenham amostras significativas, apresentam algumas limitações por não conseguirem abranger diversas populações. Portanto, são necessárias mais pesquisas para acessar resultados dessa substância em outros grupos.

Palavras-chave: Miopia. Tratamento. Atropina. Crianças.

 

INTRODUÇÃO

A miopia é o distúrbio refrativo mais comum do mundo. Ela gera uma focalização das imagens anterior à retina - seja por uma deficiência da córnea, seja pelo aumento exagerado do diâmetro do olho. Com isso, imagens distantes não são focalizadas adequadamente, em oposição às imagens próximas, que efetivamente o são.

A sua prevalência vem aumentando drasticamente com o tempo. No ano 2000 haviam 1.406 bilhão de míopes globalmente. Em 2010, 1.950 bilhão. O valor previsto para 2020, 2.620 bilhões, continua crescendo consideravelmente até 2050, com previsão de 4.758 bilhões de míopes. Proporcionalmente à população, a mudança também é significativa, acometendo 22,9% da população global em 2000 e 49,8% em 2050, segundo a mesma previsão.1

Mais preocupante que isso é a prevalência da "miopia alta", isso é, distúrbio refratário acima de 6,0D e que compromete seriamente a visão. Em 2000, 163 milhões de pessoas apresentavam esse distúrbio. Em 2050, são esperados 938 milhões.1

A sua epidemiologia varia conforme diferentes populações e conforme a idade de seus habitantes. Estudos mostram uma prevalência aumentada em asiáticos e diminuída em negros. A prevalência em crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos em Hong Kong é de 62%, ao passo que nos EUA, em uma população com entre 12 e 17 anos, essa prevalência é de 25,7%. No Brasil, essa prevalência oscila entre 11 e 36%, podendo alcançar 50% até 2050.2,3

Três pontos se destacam na patogenia da miopia: A predisposição hereditária, a debilidade escleral e fatores ambientais. Destes, apenas os fatores ambientais sãomodificáveis. É sabido que o esforço visual para perto é fator desencadeante para o desenvolvimento da miopia. Da mesma forma, é sabido que a exposição à luz solar durante atividades ao ar livre desempenha papel protetor nessa doença.4

Para combater a progressão desta doença, há muito se discute o uso terapêutico "off -label" do colírio de atropina para retardar a progressão da miopia em crianças. Diferentes teorias explicam a efetividade da atropina nesse tratamento. A principal delas propõe que a atropina atue nos receptores M1/4 das células amácrinas da retina, promovendo uma cascata neuroquímica que resulta na liberação de dopamina. Esta, por retardar a elongação do globo ocular, diminui o desenvolvimento de miopia.5

O objetivo deste trabalho é evidenciar na literatura a eficácia do uso do colírio de atropina para retardar a miopia em crianças, considerando suas diferentes dosagens, efeitos colaterais, indicações e contraindicações.

 

REVISÃO DA LITERATURA

Foi realizada uma revisão sistemática de literatura. A pergunta PICO que guiou o presente trabalho foi: "Crianças míopes submetidas ao tratamento tópico com colírio de atropina em baixas concentrações apresentaram redução na progressão da miopia?". As seguintes palavras-chave foram utilizadas: "myopia AND atropina AND children AND treatment" nas bases de dado PubMed e BVS, sendo considerados artigos publicados entre 2015 e 2020

Foram encontrados 103 estudos, sendo 50 excluídos por: 9 apresentarem o texto em língua além da inglesa, espanhola ou portuguesa; 9 não apresentarem resumo disponível; 19 conterem algum termo da pesquisa, mas não ser relacionado com o tema do trabalho; 10 que combinavam o tratamento com colírio de atropina com outro tratamento ou medicação; 3 terem miopia especificada no título.

Restaram, assim, 53 estudos a serem avaliados. Destes, 49 foram descartados pelas seguintes características: 33 serem revisões; 4 serem estudos de coorte; 4 serem meta- análise; 3 serem protocolos de estudo; 2 serem caso-controle; 1 ser uma série de casos- controle observacionais; 1 ser relatório; 1 relato de caso.

Sendo assim, os 4 estudos eleitos foram incluídos por serem ensaios clínicos randomizados.

 

DISCUSSÃO

O uso do colírio de atropina é vantajoso por ser um tratamento não invasivo, indolor e de baixo custo.6

Diferentes concentrações de atropina foram avaliadas pelos trabalhos selecionados, sendo: 0,5%, 0,1%, 0,01% no estudo de Chia et al (2016), 0,05%, 0,025% e 0,01% no estudo de Yam et al (2019), 0,01% no estudo de Diaz-Llopis et al (2018) e 0,5% no estudo de Polling (2016), como compila a Tabela 1.

 

 

Polling e colaboradores, em seu trabalho de 2016, analisaram 77 crianças portadoras de miopia, das quais 60 completaram o estudo. Elas possuíam média de idade de 10.3±3,2 anos e foram distribuídas uniformemente por gênero. Dois-terços delas apresentavam ancestralidade europeia, e metade delas apresentava, ao início do estudo, miopia alta (>- 6,0D). 84,7% relatavam ao menos um dos pais com miopia. A média da progressão da miopia no ano anterior ao estudo era de -1,0D/ano.

As 60 crianças que permaneceram no estudo por 1 ano foram tratadas com atropina 0,5% e apresentaram progressão da miopia de -0,1D/ano contra -0,5D/ano naquelas crianças que abandonaram o estudo (P = 0,03). Quando divididas por idade, crianças menores de 9 anos apresentaram pior resposta ao tratamento (progressão de -0,49D/ano, intervalo de confiança de -0,9 a -0,08). Crianças entre 9-12 anos apresentaram resposta intermediária (progressão de -0,06D/ ano, intervalo de confiança de -0,47 a +0,35) e, maiores de 12 anos, melhor, com+0,02D/ano, com intervalo de confiança entre -0,27 a +0,3. Das crianças que abandonaram o estudo, os motivos foram, principalmente, efeitos colaterais. Dentre eles, destacam-se a fotofobia, dificuldade de leitura e cefaleia, respectivamente.

Chia e colaboradores, no estudo publicado em 2016, analisaram 400 crianças asiáticas míopes entre 6 e 12 anos, das quais 345 completaram o estudo. Elas foram randomizadas para receber atropina a 0,01%, 0,1% e 0,5%, nas proporções 1:2:2. Essas crianças foram submetidas a tratamento por 24 meses e avaliadas sem medicação por 12 meses.Àquelas que apresentaram uma progressão de mais de -0,5 dioptria (D) nesse ano foi administrada atropina 0,01% por mais 24 meses. As crianças que receberam atropina a 0,01% apresentaram, ao final dos 5 anos do estudo, uma progressão da miopia de -1,38±0,98 D, sendo comparativamente menor que a dos grupos que utilizaram a substância a 0,1% (- 1,83±1,16D) e 0,5%, (-1,98±1,10 D), P<0,001. O efeito rebote, que aponta para a necessidade de reintrodução do tratamento, foi também menor na população que recebeu a atropina a 0,01%, com 24,3% desse grupo necessitando de 2ª intervenção contra 58,9% e 68,4% nos grupos de 0,1 e 0,5%, respectivamente.

Ademais, as crianças que receberam esse 2º tratamento apresentaram uma progressão maior da miopia nos 24 meses finais (-0,38 a -0,52D/ano) do que as crianças que não tiveram o efeito rebote - e, portanto, não receberam medicação alguma nos 36 meses finais do estudo, e apresentaram uma progressão que variou entre -0,30 a -0,38D/ano.

Por fim, a progressão da miopia no grupo submetido a tratamento do efeito rebote com atropina 0,01% nos 24 meses finais (-0,86 a -0,90D, independente da dosagem inicial) foi semelhante à progressão desta doença nos 2 anos iniciais daquelas tratadas primariamente com atropina 0,01% (-0,77D), sugerindo que o tratamento do efeito rebote seja tão efetivo quando o tratamento primário.

Diaz-Llopis e colaboradores, no estudo publicado em 2018, avaliaram por 5 anos 200 crianças míopes entre 9 e 12 anos, divididas entre 2 grupos de 100 participantes: um tratado com atropina diluída a 0,01% e o outro sem nenhum tratamento. A taxa de progressão da miopia no grupo controle foi -0,65±0,54D/ano e, no grupo tratado com atropina, -0,14±0,35 D/ano.

Considerando uma progressão inferior a -0,25D/ ano como sucesso, esse número foi atingido por 80% dos participantes do grupo da atropina e 12% daqueles do grupo controle.

Considerando uma progressão superior a -0,50D/ano como fracasso, esse número foi superado por 2% do grupo da atropina e 21% do controle.

Os efeitos colaterais que levaram a abandono do tratamento, como fotofobia, dificuldade de leitura e midríase foram sentidos por apenas 2% dos participantes.

O estudo de Yam e colaboradores, de 2019, avaliou por 1 ano 438 crianças de idade entre 4 e 12 anos, proporcionalmente divididas entre 4 subgrupos e que receberam atropina a 0,05%, 0,025%, 0,01% ou placebo. Nesse período de 12 meses, elas passaram por 5 avaliações oftalmológicas. A taxa de progressão da miopia no grupo tratado com o placebo foi de - 0,81±0,53D/ano, -0,59±0,61D/ano naquele tratado com atropina 0,01%, -0,46±0,45D/ano no subgrupo com 0,025% e -0,27±0,61D/ano naquele com 0,05% (P<0,001). Dentre os efeitos colaterais apresentados pelos pacientes, o único com P<0,001 foi a fotofobia após 2 semanas de tratamento, manifestada por 5,5%, 18,5%, 31,2% e 12,6% das crianças tratadas com atropina a 0,01%, 0,025%, 0,05% e placebo, respectivamente. Após 1 ano de tratamento, essas porcentagens caíram para, respectivamente, 2,1%, 6,6%, 7,8% e 4,3%.

Dessa forma, Chia e colaboradores (2016) demonstraram que a média de progressão da miopia foi menor a com atropina a 0,01%, do que com 0,1% e 0,5%. Ademais, por apresentar as menores taxas de efeito rebote, essa concentração foi tida como de escolha. Já nos dados obtidos por Yam et al (2019), a concentração de 0,05% foi a melhor para redução da elongação do equivalente esférico (SE). Esse equivalente, que cresceu -0,27+0,61D/ano com essa concentração, aumentou -0,46+0,45, -0,59+0,61 e -0,81+0,53D/ano, respectivamente com 0,025%, 0,01% e no grupo controle. Foi, também, proposta a utilização de concentrações menores mais vezes ao dia. Já Diaz-Llopis et al (2018) também encontraram com o uso do colírio de atropina diluído a 0,01% um retardo satisfatório na progressão da miopia. Por fim, Polling et al (2016), testaram somente uma concentração de atropina - consideravelmente maior que as utilizadas por seus pares. Isso, todavia, se justifica pelo fato de seu estudo ter sido pioneiro, em uma época em que faltavam informações sobre as dosagens de atropina a serem utilizadas. Mesmo assim, ele concluiu que a atropina é efetiva para retardar a progressão da miopia em crianças, e que a melhor faixa de idade para se usar o colírio de atropina de 0,5% é em maiores de 12 anos.

Pode-se observar que tanto o efeito rebote quanto outros efeitos colaterais dependem da concentração da atropina, tornando assim ainda mais justificável a realização de mais estudos objetivando a concentração dessa substância mais idealmente possível.

O colírio de atropina tem um potencial considerável como tratamento a ser implementado clinicamente no futuro, já que a miopia é uma doença em franca expansão. Considerando a praticidade e facilidade no uso, além do baixo custo6, essa pode se tornar uma alternativa de tratamento com grande aceitação mundial.

 

CONCLUSÃO

A atropina como tratamento alternativo para a redução da progressão da miopia, especialmente em baixas doses, como a de 0,01%, tem se mostrado promissora. Resultados apresentam uma clara redução no avanço da miopia em crianças asiáticas. Estudos como o CHAMP-UK10 e o WA-ATOM11, atualmente conduzidos na Inglaterra e na Austrália ocidental, são ensaios clínicos randomizados com um considerável número de pacientes inclusos. Estes são trabalhos promissores utilizando o colírio de atropina em populações além da população asiática. Para que esse tratamento seja cada vez mais seguro e eficaz, mais estudos devem ser feitos em mais populações de países diversos, objetivando observar o efeito da substância em cada uma delas.

 

REFERÊNCIAS

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