RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 30. (Suppl.6) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v30supl.5.10

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Relato de Caso

Abordagem cirúrgica em casos refratários de hidropsia corneana - série de casos

Surgery approach in refractory cases of cornean hydropsy - case series

Isadora Vieira Menicucci Ferri1; Camila Dias Medeiros2; Guilherme Malta Pio2; Carolina Serpa Braga2; Frederico Bicalho Dias Da Silva3

1. Acadêmica de medicina da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais
2. Especializando em Oftalmologia no Instituto de Olhos Ciências Médicas -IOCM
3. Preceptor do setor de Córnea no Hospital São Geraldo - UFMG

Trabalho realizado na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A hidropsia corneana aguda (HCA) é uma complicação rara do ceratocone (2,5 a 3%), que cursa com ruptura da membrana de Descemet e passagem de humor aquoso para o estroma e epitélio corneano. O tratamento cirúrgico da HCA não é bem estabelecido pela literatura e permanece como alternativa pouco utilizada. Paciente A, feminino, 38 anos, acuidade visual (AV) de conta dedos (CD) a 50 cm no olho esquerdo (OE). Houve piora durante tratamento clínico: AV de movimento de mãos (MM) (16º dia) e já não andava sem ajuda (33º). Tomografia de Coerência Óptica (OCT) com espessura corneana de 1,69mm (33º dia). Três dias após tratamento cirúrgico tinha 0,68mm à OCT, opacidade discreta, MD aderida e AV corrigida final de 20/400. Paciente B, feminino, 20 anos, ceratocone prévio e redução aguda da AV no olho direito: CD a 50cm. Sem melhora ao tratamento clínico, foi realizado tratamento cirúrgico com intervenção no 14º dia, sem melhora, OCT com espessura de 1,67mm. Acrescentou-se 4 pontos de suturas compressivas na córnea e após 5 dias OCT com 0,60mm, MD aderida e AV corrigida final de 20/150. O objetivo deste trabalho é apresentar, através de dois relatos de caso, o tratamento cirúrgico da HCA como método eficaz, alternativo e de resultados precoces. O tratamento clínico é usualmente eficaz, porém em caso de insucesso, o cirúrgico pode ser satisfatório. A adição de suturas de compressão corneana acelera ainda mais a recuperação e previne repetidas intervenções.

Palavras-chave: Ceratocone; Córnea; Hidropsia.

 

INTRODUÇÃO

A Hidropsia Corneana Aguda (HCA) consiste num quadro de edema corneano súbito devido a uma ruptura da Membrana de Descemet (MD) com a entrada de humor aquoso no estroma. É considerada uma alteração autolimitada, geralmente se resolve em 3 meses, mas pode durar de 5 a 36 semanas. Grandes descolamentos da MD ou fissuras estromais podem atrasar a resolução do quadro. 1,2,3,4

Os sintomas característicos são redução súbita da acuidade visual (AV), dor, irritação ocular, lacrimejamento e fotofobia, sendo a opacidade corneana frequentemente vista a olho nú. Os principais fatores de risco são trauma (prurido ocular), tosse, ceratoconjuntivite vernal, atopia e síndrome de Down e ocorrem principalmente nos pacientes que possuem ectasias e espessura corneana reduzida. A melhora é lenta, muitos permanecem com cicatrizes que, dependendo do tamanho e opacidade, podem levar à intolerância às lentes de contato e quase 60% requerem ceratoplastia penetrante posterior para reabilitação visual. Apesar de raras, podem ocorrer complicações como infecção, perfuração, neovascularização corneana e fissura intraestromal. 1,3,5,6

Em casos mais severos, com grandes áreas de descolamento da MD e múltiplas fissuras intra estromais, a conduta conservadora com colírios hiperosmóticos, hipotensores e corticóides não se mostra eficaz e, ainda, aumenta o risco de complicações. Nesses casos, a ceratoplastia penetrante é comumente indicada para melhorar a visão, porém apresenta risco de rejeição e neovascularização. Portanto, para fornecer uma recuperação mais rápida, intervenções cirúrgicas alternativas têm sido propostas. 4,6

Nesse trabalho serão relatados dois casos de pacientes portadores de HCA que não obtiveram resposta ao tratamento clínico inicial (colírios hiperosmótico, hipotensor e corticoide) e que foram selecionados para tratamento cirúrgico visando reduzir a morbidade e as complicações de um seguimento prolongado.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

A primeira paciente é do sexo feminino,com 38 anos, hígida, iniciou surto psicótico após demissão do emprego. O primeiro órgão-alvo do surto foram os dentes, em que vários foram quebrados por ranger e apertar fortemente. Iniciou tratamento psiquiátrico e obteve controle do quadro. Após 6 meses, foi reprovada em uma prova de concurso e teve novo surto psicótico, porém desta vez os órgãos-alvo foram os olhos, com prurido intenso e incontrolável. Foi admitida com queixa de redução aguda da AV no olho esquerdo: conta dedos (CD) a 50cm. Ao exame, verificou-se edema corneano intenso e diagnosticada com HCA. Iniciado tratamento clínico, porém sua AV piorou para movimento de mãos junto ao corpo no 16º dia e manteve-se no 33º, quando já não andava sem ajuda e a OCT apresentava uma espessura corneana de 1,69µc. Optou-se pelo tratamento cirúrgico e, após três dias, exame clínico com opacidade discreta e AV corrigida de 20/400, com OCT de espessura 0,68µc e MD aderida. (Figura 1)

A segunda paciente é do sexo feminino, com 20 anos de idade, portadora de ceratocone. Após episódio de prurido ocular intenso em ambos os olhos, principalmente no olho direito (OD), foi admitida com queixa de perda súbita da visão no OD apresentando AV de CD a 50 cm e intenso edema corneano. Foi diagnosticada com HCA e iniciado tratamento clínico. Sem resposta inicial, foi submetida ao tratamento cirúrgico, porém ainda no 7º dia continuava sem melhora, por isso foi realizada nova drenagem de líquido corneano. Retornou dois dias após (9º dia) sem melhora do edema e foi realizada OCT - espessura corneana de 1,67µc, com ruptura em fenda vertical da MD. No 14º dia optou-se por complementar o tratamento cirúrgico com quatro suturas corneanas verticais, de espessura total, com entrada e saída a 2mm do limbo. As suturas foram feitas após injeção de ar para aprofundar a câmara e proteger as estruturas internas. No quinto dia após as suturas, houve melhora significativa do edema, com boa transparência e um novo OCT revelou 0,60µc de espessura corneana, MD aderida. No pós operatório tardio apresentava pequenas cicatrizes no local das suturas e a AV com refração foi de 20/150 e com lente de contato rígida gás permeável foi de 20/40 (Figura 2).

O exame com lâmpada de fenda foi utilizado inicialmente para o diagnóstico da HCA nas duas pacientes, pois permite a visualização de edema estromal e epitelial acentuado, cisto ou fissura intraestromal. A OCT de segmento anterior demonstrou a presença do edema epitelial e estromal, com dimensões das fissuras estromais e das rupturas da MD, sendo ainda utilizada no acompanhamento seriado da resposta às intervenções.

A cirurgia inicial realizada em ambas as pacientes teve seu preparo cirúrgico realizado com nitrato de pilocarpina 2% uma hora antes do procedimento para evitar lesões do cristalino. O procedimento seguiu com anestesia tópica com proximetacaína, paracentese e injeção de gás na câmara anterior. Em seguida, foram realizadas 4 incisões corneanas na região das bolsas estromais, sendo a profundidade da incisão definida pelo momento de saída do líquido. Por fim, manteve-se posição supina por 10 minutos e, em seguida, removeu-se parcialmente, aproximadamente um terço do gás injetado para evitar o bloqueio pupilar. Foram mantidas as medicações tópicas e acrescentado antibiótico tópico.

 

DISCUSSÃO

Durante a fase aguda da HCA, o tratamento clínico com colírios de solução salina hipertônica e esteróides tópicos é considerado o tratamento de primeira linha e reduz a dor e a inflamação. A resolução do edema leva em média 3 meses, podendo se estender por tempo ainda maior. Períodos mais prolongados reduzem a qualidade de vida dos pacientes, dificultam a adesão ao tratamento e ainda propiciam risco de perfuração ou vascularização corneana. 3,7

Pacientes com grandes fissuras e com edema grave e persistente podem se beneficiar de intervenções cirúrgicas. Eles têm o objetivo de proporcionar recuperação mais rápida e minimizar complicações. A injeção de gás de C3F8 11%, associada ou não a suturas compressivas da córnea, pode ser utilizada. Estudos demonstraram que a injeção intracameral de ar reduz o período de duração do edema corneano e também o tempo decorrido até a possibilidade do uso de lentes de contato. Isso se deve ao efeito de tamponamento gerado pelo ar que previne a entrada do humor aquoso no estroma e também a possibilidade do ar esticar as extremidades da MD que foram rompidas facilitando a cicatrização. No entanto, essas terapêuticas também apresentam limitações dependendo da localização e extensão da ruptura da MD e do envolvimento intraestromal. Além disso, suturas corneanas compressivas não fornecem transparência corneana. 3,8

Assim, em casos mais graves ou com insucesso no tratamento clínico, intervenções cirúrgicas podem ser benéfi cas para a redução da duração da HCA e, consequentemente, da sua morbidade e seu risco de complicações. A adição de suturas de compressão corneana podem prevenir repetidas intervenções e corroboram, ainda, para uma redução de 1 a 2 semanas na resolução da hidropsia com

Abordagem cirúrgica em casos refratários de hidropsia corneana - série de casos melhora na AV, apesar de gerar uma cicatriz corneana. Dessa forma, apesar de suas limitações e poucas pesquisas na área, é importante considerar as diversas modalidades de tratamento cirúrgico como opções terapêutica da HCA. 9,10,11

 

REFERÊNCIAS

1. Maharana PK, Sharma N, Vajpayee RB, et al. Acute corneal hydrops in keratoconus. Indian J Ophthalmol. 2013; 61(8): 461-4. doi: 10.4103 / 0301-4738.116062

2. Vajpayee RB, Maharana PK, Kaweri L, et al. Intrastromal fl uid drainage with air tamponade: anterior segment optical coherence tomography guided technique for the management of acute corneal hydrops. Br J Ophthalmol. 2013;97(7): 834-6. doi:10.1136/bjophthalmol-2013-303272

3. Grewal S, Laibson PR, Rapuano CJ. Acute hydrops in the corneal ectasias: associated factors and outcomes. Trans Am Ophthalmol Soc. 1999; 97:187-98; discussion 198-203.

4. Sharma N, Maharana PK, Jhanji V, Vajpayee RB. Management of acute corneal hydrops in ectatic corneal disorders. Curr Opin Ophthalmol. 2012;23(4): 317-23. doi:10.1097/ICU.0b013e328354a2a8

5. Miyata K, Tsuji H, Tanabe T, Mimura Y, et al. Intracameral air injection for acute hydrops in keratoconus. Am J Ophthalmol. 2002; 133.6: 750-752.

6. Rajaraman R, Singh S, Raghavan A et al. Effi cacy and safety of intracameral perfl uoropropane (C3F8) tamponade and compression sutures for the management of acute corneal hydrops. Cornea. 2009; 28(3): 317-320.

7. Srinivasan S, Rootman DS. Slit-lamp technique of draining interface fl uid following Descemet's stripping endothelial keratoplasty. Br J Ophthalmol. 2007; 91(9): 1202-1205.

8. Basu S, Vaddavalli PK, Vemuganti GK, et al. Anterior segment optical coherence tomography features of acute corneal hydrops. Cornea. 2012; 31(5): 479-485.

9. Basu, Sayan, et al. "Intracameral perfl uoropropane gas in the treatment of acute corneal hydrops." Ophthalmology. 2011; 118(5): 934-939.

10. Maranhão LVL, Ramalho NRL, Pinto WM P, Dantas PEC, Ventura CV. Descemet's membrane endothelial keratoplasty for acute corneal hydrops: a case report. Arq. Bras. Oftalmol. [Internet]. 2020 Sep [cited 2020 Nov 06] ; 83(5): 430-433. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004- 27492020000500430&lng=en. Epub Aug 07, 2020. https://doi.org/10.5935/0004-2749.20200085.

11. Pena FVS, Pena AS, Araújo PG. Estudo retrospectivo e comparativo de quarenta e três olhos com hidropisia aguda em quinhentos e sessenta e sete casos de ceratocone. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia 66.1 (2003): 39-44.

 

ANEXOS

 


Figura 1 - Comparativo da primeira paciente entre pré-operatório e terceiro dia pós-operatório, por imagens de OCT e de lâmpada de fenda.

 

 


Figura 2 - Comparativo do segundo paciente entre pré-operatório e terceiro dia pós-operatório, por imagens de OCT e de lâmpada de fenda.