RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 31 e-31201 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20210003

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Artigo de Revisão

Cirurgia ortopédica e Covid: quais os riscos e perspectivas?

Orthopedic surgery and Covid: risks and perspectives

Ingrid Morselli Santos1; Carlos Guilherme Alvim Costa Leite2

1. Universidade Federal de São João del-Rei, Divinópolis, Minas Gerais, Brasil
2. Universidade Federal de São João del-Rei, Divinópolis, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

Ingrid Morselli Santos
E-mail: ingridmorselli@yahoo.com.br

Recebido em: 17/07/2020
Aprovado em: 03/01/2021

Instituição: Universidade Federal de São João del-Rei, Divinópolis, Minas Gerais, Brasil

Resumo

A pandemia revolucionou a assistência médica global de uma maneira sem precedentes e com repercussões inimagináveis. A prática diária ortopédica foi significativamente afetada. O trauma e a ortopedia estão na linha de frente do coronavírus, uma vez que as operações ortopédicas de emergência ainda estão entre os procedimentos cirúrgicos de emergência mais comuns. No entanto, as indicações cirúrgicas foram reformuladas, com casos eletivos sendo adiados. De acordo com as diretrizes propostas pela Academia Americana de Cirurgiões Ortopédicos (AAOS) e Colégio Americano de Cirurgiões (ACS) as cirurgias eletivas devem ser criteriosamente adiadas, dependendo do local, prevalência de COVID-19 e disponibilidade de recursos. Estudos demonstraram que a chance do paciente que será operado ser portador assintomático do SARS-Cov-2 é de 0,07%, cerca de 1 em 1.400. A partir dessa informação, calcula-se que a chance de um paciente assintomático evoluir a óbito devido a COVID-19 após cirurgia ortopédica é de 1 em 7.000 casos. O risco de morte em cirurgia eletiva em um contexto de pandemia por COVID-19 serão cumulativos; no entanto, o risco do COVID-19 será menor do que o risco de morte por todas as causas em um determinado ano.

Palavras-chave: Coronavirus; Ortopedia; Procedimentos Cirúrgicos Operatórios.

 

INTRODUÇÃO

Em dezembro de 2019, o coronavírus 2 da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2) eclodiu em Wuhan, China, causando aglomerados de doenças respiratórias graves e se espalhando rapidamente por todo o país.1,2. Em questão de semanas, vários surtos foram reconhecidos na Itália, Espanha, França e EUA até 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a doença de coronavírus 2019 (COVID-19) uma pandemia global, com mais de 100.000 casos e 100 países infectados. No momento da redação deste artigo, os pacientes afetados pelo COVID-19 ultrapassavam 13 milhões em todo o mundo, com mais de 500.000 mortes.3

A necessidade de controlar a disseminação do COVID-19 forçou governos nacionais e internacionais a implementar medidas socioeconômicas, incluindo isolamento social, suspensão de atividades não essenciais e realocação de recursos financeiros.1 A pandemia revolucionou também a assistência médica global de uma maneira sem precedentes e com repercussões inimagináveis. Uma infecção por COVID-19 de apenas um profissional de saúde pode ter um efeito dramático para o cuidados de saúde em si. Sabe-se que, em média, a pessoa infectada com COVID-19 é provável que infecte 1,5 a 3,5 outros.4

Os hospitais foram reestruturados para oferecer o melhor atendimento aos pacientes com COVID-19, adotando estratégias preventivas para não espalhar a infecção entre os profissionais de saúde e os pacientes afetados por outras doenças.4

Como consequência, a prática diária ortopédica foi significativamente afetada pela pandemia. O trauma e a ortopedia estão na linha de frente do coronavírus, uma vez que as operações ortopédicas de emergência ainda estão entre os procedimentos cirúrgicos de emergência mais comuns. No entanto, as indicações cirúrgicas foram reformuladas, com casos eletivos sendo adiados. Isso causou um forte impacto no gerenciamento de pacientes internados, com a necessidade de uma equipe dedicada, isolamento do paciente e políticas restritivas de horário de visitas. Consultas ambulatoriais foram limitadas para reduzir os contatos entre os pacientes e profissionais de saúde, com consequências consideráveis no lado humano da prática médica.5,6

Nesta revisão, objetivamos analisar o efeito da pandemia de COVID-19 na prática ortopédica com atenção especial nos cuidados perioperatórios e no risco de morte.

 

METODOLOGIA

Foi realizada uma revisão narrativa da literatura nas bases de dados Scielo e PubMed. Foram incluídas estudos publicados no período de janeiro de 2020 a julho de 2020, escritos nos idiomas inglês, português e espanhol. Esta inclusão foi realizada por dois investigadores independentes, além de um terceiro, responsável pela revisão de casos de desacordo. Foram utilizados os seguintes descritores: "COVID-19", "coronavirus", "orthopaedic" e "trauma". Artigos repetidos, dissertações, teses, artigos de validação, e aqueles que não apresentaram o texto disponível completo foram excluídos. O presente trabalho é uma revisão da literatura e não envolve pacientes, portanto não passa por comitê de ética. Como existe uma enorme heterogeneidade de artigos e estudos sobre COVID-19, mas uma escassez de trabalhos específicos da área ortopédica, decidiu-se por apresentar a revisão de maneira narrativa. Efetivamente, foram utilizados como base 15 artigos, todos de língua inglesa. Os resultados encontrados mostram que não há artigos com níveis de evidência adequados, sendo sua maioria de revisão da literatura.

 

DISCUSSÃO

Medidas de proteção

As principais rotas de transmissão do SARS-CoV-2 são através de gotículas respiratórias e contato com superfícies contaminadas. Assim a expiração das secreções respiratórias durante procedimentos geradores de aerossóis como intubação traqueal, ventilação não invasiva, traqueotomia, ressuscitação cardiopulmonar, ventilação manual antes da intubação e broncoscopia pode produzir partículas transportadas pelo ar altamente virulentas. Embora pacientes sintomáticos sejam a principal fonte de infecção, indivíduos assintomáticos também podem espalhar a doença e não devem ser negligenciados. Portanto, manter uma distância interpessoal de pelo menos 1 metro é essencial para minimizar a disseminação de partículas virais durante encontros sociais e clínicos. O COVID-19 pode persistir até 3 h em aerossóis, logo a aeração de ambientes fechados, o uso adequado de equipamentos de proteção individual (EPI), a higiene frequente das mãos e a descontaminação da superfície são obrigatórios. Segundo a OMS, as precauções padrão devem ser aplicadas universalmente e todos os pacientes devem usar uma máscara médica em áreas públicas.1

As máscaras cirúrgicas são projetadas para evitar a contaminação intraoperatória e não demonstraram proteger da propagação de gotículas em condições de laboratório. No entanto, o uso de máscaras cirúrgicas demonstrou reduzir o risco de transmissão de influenza e SARS-CoV, provavelmente interrompendo a difusão de gotículas maiores. Em um estudo da Kangqi Ng em 2020 sobre pacientes com diagnóstico de pneumonia e COVID-19, 85% dos profissionais de saúde em contato próximo com um paciente com COVID-19 usavam máscara cirúrgica e nenhum foi infectado.7 Os respiradores são projetados para proteger contra gotículas e aerossóis e são classificados com base na porcentagem de partículas filtradas. Devido ao maior potencial protetor, a OMS recomenda que todos os profissionais de saúde usem um respirador (≥FFP2 / N95) ao realizar procedimentos geradores de aerossóis (AGPs). Em todas as outras situações, o uso de uma máscara cirúrgica é razoavelmente seguro ao prestar cuidados diretos a pacientes com COVID-19, especialmente em caso de escassez de respirador.8

Indicação cirúrgica

De acordo com as diretrizes propostas pela Academia Americana de Cirurgiões Ortopédicos (AAOS) e Colégio Americano de Cirurgiões (ACS) as cirurgias eletivas devem ser criteriosamente adiadas, dependendo do local, prevalência de COVID-19 e disponibilidade de recursos (EPI, leitos na unidade de terapia intensiva e respiradores).

Por definição, um procedimento é considerado eletivo quando nenhum impacto negativo a curto ou longo prazo for esperado se o tratamento cirúrgico for atrasado. No entanto, essa denotação é de natureza subjetiva, pois a dor e a incapacidade relatadas podem variar significativamente entre os pacientes ortopédicos, influenciando assim o processo decisório. Portanto, determinar quais procedimentos são estritamente eletivos e quais devem ser realizados permanece desafiador. Os Centros de Serviços Medicare e Medicaid (CMS) propuseram um sistema em três níveis, considerando a complexidade do procedimento cirúrgico e a condição subjacente do paciente.9 As camadas 1, 2 e 3 definem tratamentos de baixa, intermediária e alta complexidade que, se não fornecidos, podem resultar em um aumento nulo, parcial ou significativo na morbimortalidade do paciente, respectivamente. Os pacientes são ainda designados como "a" se saudáveis ??ou "b" quando não saudáveis. O CMS recomenda adiar as operações de Nível 1ª, como a cirurgia de liberação do túnel do carpo, considerar o adiamento dos procedimentos de Nível 2ª, como a substituição da articulação e cirurgia da coluna vertebral, e continuar a operar as condições de Nível 3ª, por exemplo, câncer, trauma grave e "pacientes altamente sintomáticos". Para evitar qualquer equívoco, a Ohio Hospital Association impôs o cancelamento de operações que não correspondiam aos seguintes critérios: "ameaça à vida do paciente se a cirurgia ou procedimento não for realizado, ameaça de disfunção permanente de uma extremidade ou sistema orgânico, risco de metástase ou progressão do estadiamento, risco de piora rápida para sintomas graves''.10 Tais princípios podem ser úteis no planejamento da restrição de indicações cirúrgicas em caso de escassez de recursos durante o pico da pandemia.

De acordo com diferentes indicações cirúrgicas e medidas socioeconômicas adotadas durante a pandemia, deve-se esperar uma diversificação geral dos casos ortopédicos em comparação à rotina cirúrgica normal. Quarentena, trabalho remoto e restrição de atividades recreativas provavelmente resultarão em uma redução de acidentes com veículos e traumas relacionados ao trabalho, enquanto o fechamento da escola pode aumentar a taxa de lesões pediátricas. Por outro lado, como os idosos estarão mais propensos em casa sem o auxílio de cuidadores, também deve ser previsto um incremento de fraturas devido a quedas domésticas.11 Em um estudo retrospectivo de 10 pacientes afetados pelo COVID-19 e hospitalizados por fraturas ósseas, Mi et al. relataram maior gravidade clínica e mortalidade após cirurgia de redução e fixação interna de fraturas.12 Portanto, os autores concluem que o tratamento não operatório de fraturas em idosos deve ser considerado em primeiro lugar, quando apropriado.

É aconselhável que a decisão final, proceda ou não à cirurgia, seja tomada por um comitê multidisciplinar, considerando cuidadosamente a prevalência local de COVID-19, suprimento de EPI, disponibilidade de força de trabalho, ventiladores e leitos (incluindo UTI), bem como idade e comorbidades do paciente.

Período perioperatório

Imediatamente após a admissão do paciente, o perfil de risco para COVID-19 e o histórico de exposição devem ser cuidadosamente avaliados. Para minimizar a chance de infecções nosocomiais a admissão no mesmo dia deve ser incentivada. Na chegada, a temperatura deve ser verificada e uma máscara cirúrgica fornecida a todos os pacientes. De acordo com os recursos locais, todos os pacientes submetidos à cirurgia eletiva devem ser testados no pré-operatório para COVID-19.

Os casos suspeitos ou confirmados de COVID-19 devem ser tratados em um espaço dedicado, longe de zonas movimentadas e com número de profissionais reduzido. Em um ambiente ideal, espera-se uma sala cirúrgica com pressão negativa para evitar a disseminação do vírus no ambiente cirúrgico. No entanto, se não for possível obter pressão negativa, a pressão positiva deve ser desligada e instalado um sistema portátil de filtragem de ar.13

Após a cirurgia, pacientes suspeitos ou positivos para COVID-19 devem ser transferidos para uma sala de isolamento com precauções de contato e gotículas ou para a UTI, se necessário. No caso de um teste negativo, os pacientes podem ser rotineiramente tratados com precauções padrão. Algumas estratégias para reduzir o contato com pacientes internados foram propostas: uso de curativos de longa duração pode reduzir a necessidade de visitas repetidas, posicionar monitores e máquinas para administração de drogas intravenosas fora dos quartos dos pacientes, restringir a um visitante por quarto com horário limitado.

- Risco do paciente ser assintomático e risco de morte

Kader et. Al em estudos baseados na prevalência da doença em maio de 2020 na Inglaterra revelou que a chance do paciente que será operado ser portador assintomático do SARS-Cov-2 é de 0,07%, cerca de 1 em 1.400. No entanto, deve-se observar que esse cálculo não leva em consideração o risco de aquisição do COVID-19 perioperatório. Com base na taxa de mortalidade e em um risco calculado de 1 em 1.400 falsos negativos, calculou que a chance de um paciente assintomático evoluir a óbito devido a COVID-19 após cirurgia ortopédica é de 1 em 7.000 casos. O melhor cenário, por mais improvável que seja, é que um paciente submetido a cirurgia ortopédica eletiva tem o mesmo risco de morte que uma pessoa na comunidade.14

Para contextualizar o risco teórico de morte, os ortopedistas podem usar o risco de morte de um procedimento eletivo para comparação. Por exemplo, a artroplastia total do quadril tem mortalidade de 0,30% (IC95% 0,22% a 0,38%) nos 30 dias ou 1 em 333; em 90 dias a mortalidade é de 0,65% (IC 95% 0,5% a 0,81%) ou 1 em 153,28.15 Além disso, outras variáveis devem ser consideradas como idade, sexo e morbidade. Assim, os riscos da cirurgia eletiva em um contexto de pandemia por COVID-19 serão cumulativos; no entanto, o risco do COVID-19 será menor do que o risco de morte por todas as causas em um determinado ano.

Os estudos feitos até agora também não levaram em consideração o risco adicional de infecção nosocomial por SARS-CoV-2 adquiridos da equipe de saúde durante a internação. Esta situação tem o potencial de ser o maior risco para o paciente, dada a alta prevalência entre os profissionais de saúde.

Claramente, os cirurgiões devem estar atentos na interpretação dos riscos de infecção viral com a mudança na prevalência. Ademais, prováveis fatores que contribuem para a alta taxa de complicações incluem protocolos subdesenvolvidos de assistência ao paciente e curva de aprendizado enfrentada ao lidar com o COVID-19 no início do pandemia.

 

CONCLUSÃO

A crise do COVID-19 nos alertou para rever as práticas atuais e a evidência de segurança de equipamentos de proteção individual para cirurgiões ortopédicos e de trauma. É preciso protocolar as medidas para fornecer o mais alto nível de segurança para o paciente, equipe ortopédica, incluindo equipe administrativa e enfermeiros. Estudos sugeriram que o risco dos pacientes serem inadvertidamente admitidos com uma infecção por SARS-CoV-2 não detectada para cirurgia ortopédica eletiva é relativamente baixo.

 

CONFLITO DE INTERESSES:

Declaramos não haver qualquer conflito de interesse com essa publicação.

 

REFERÊNCIAS

1. Ambrosio L, Vadalà G, Russo F. The role of the orthopaedic surgeon in the COVID-19 era: cautions and perspectives. J EXP ORTOP. 2020;7:35.

2. Huang C, Wang Y, Li X, Ren L, Zhao J, Hu Y, et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. Lancet. 2020;395(10223):497-506.

3. Culp WC. Coronavirus Disease 2019. A A Pract. 2020;14(6):e01218.

4. Hirschmann MT, Hart A, Henckel J, Sadoghi P, Seil R, Mouton C. COVID-19 coronavirus: recommended personal protective equipment for the orthopaedic and trauma surgeon. Knee Surgery, Sport Traumatol Arthrosc [Internet]. 2020;28(6):1690-8. Available from: https://doi.org/10.1007/s00167-020-06022-4

5. de Caro F, Hirschmann TM, Verdonk P. Returning to orthopaedic business as usual after COVID-19: strategies and options. Knee Surgery, Sport Traumatol Arthrosc [Internet]. 2020;28(6):1699-704. Available from: https://doi.org/10.1007/s00167-020-06031-3

6. Haddad FS. COVID-19 and orthopaedic and trauma surgery. Bone Jt J. 2020;B102(5):545-6.

7. Ng K, Poon BH, Puar THK, Quah JLS, Loh WL. COVID-19 and the risk to health care workers: a case report. Ann Intern Med. 2020;

8. Viswanath A, Monga P. Working through the COVID-19 outbreak: Rapid review and recommendations for MSK and allied heath personnel. J Clin Orthop Trauma [Internet]. 2020;11(3):500-3. Available from: https://doi.org/10.1016/j.jcot.2020.03.014

9. Non-Emergent, Elective Medical Services, and Treatment Recommendations. Centers Medicare Medicaid Serv [Internet]. 2020; Available from: https://www.cms.gov/files/document/31820-cms-adult-elective-surgery-and-procedures-recommendations.pdf