ISSN (on-line): 2238-3182
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CAPES/Qualis: B2
Paracoccidioidomicose com acometimento da glândula supra-renal e do sistema nervoso central
Paracoccidioidomycosis with adrenal gland and central nervous system involvement
Antonio Vaz de Macedo1; Ana Flávia Madureira de Pádua2; Rafaela Rabelo Maciel3; Renato Maciel4
1. Médico-residente em Clínica Médica do Hospital Governador Israel Pinheiro (HGIP) do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (IPSEMG)
2. Médica-rResidente em Clínica Médica do HGIP/IPSEMG
3. Acadêmica de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais
4. Médico Pneumologista e Preceptor de Residência do HGIP/IPSEMG
Dr Renato Maciel
Rua DomingosVieira, 343 - Sala 708 Santa Efigênia
CEP 30150-240 Belo Horizonte - MG
E-mail: renatomaciel@task.com.br
Hospital Governador Israel Pinheiro / Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais
Resumo
Descreveu-se um caso de paracoccidioidomicose em paciente com história de tosse seca, dispnéia, febre, sudorese noturna, hiporrexia e emagrecimento, com três meses de evolução. Apresentava lesão de pele ulcerada em região malar esquerda. A telerradiografia de tórax evidenciou imagem com padrão em "asa de borboleta". Biópsia de lesão na face foi compatível com paracoccidioidomicose. À tomografia computadorizada (TC) de encéfalo, verificou-se lesão expansiva em núcleos da base à direita. A ressonância nuclear magnética do encéfalo constatou lesão parenquimatosa no nível do tálamo direito. A TC abdominal revelou supra-renal esquerda aumentada, sugerindo acometimento pelo P.brasiliensis. A sorologia para o fungo, pelo método de imunodifusão radial dupla, foi reagente (1:4). A biópsia estereotáxica de lesão encefálica evidenciou numerosas formações fúngicas arredondadas, com cápsula birrefringente e esporulação em roda de leme. O paciente evoluiu com melhora do quadro geral com o uso de itraconazol.
Palavras-chave: Paracoccidioidomicose. Sistema nervoso central. Glândulas supra-renais.
INTRODUÇÃO
Paracoccidioidomicose, também conhecida como blastomicose sul-americana, é a micose sistêmica de maior prevalência na América Latina.1 No Brasil, entre os anos de 1980 e 1995, foi a micose sistêmica com a mais alta taxa de mortalidade.2,3 A doença é causada pelo Paracoccidioides brasiliensis, um fungo assexuado e dimórfico que existe sob a forma de micélias saprófitas na temperatura ambiente e de leveduras patogênicas no homem.4 A via inalatória é a forma pela qual esse fungo penetra no organismo, havendo, então, disseminação linfática, hematogênica e canalicular.1,5,6 Em casos excepcionais, pode haver inoculação traumática em pele ou mucosa. 7 Não se comprovou a transmissão inter-humana da doença.
A paracoccidioidomicose geralmente afeta homens rurais entre 30 e 50 anos de idade.8 O quadro clínico apresenta-se sob duas formas principais: aguda-subaguda, desenvolvendo-se em semanas a meses, com tendência à disseminação pelo sistema linfático; e crônica, que é mais localizada, progride lentamente e acomete preferencialmente o pulmão e as vias respiratórias.9 Esta última é responsável por mais de 90% dos casos diagnosticados.10
DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente de 48 anos, masculino, lavrador, natural e procedente de Guanhães-MG, admitido no Hospital Governador Israel Pinheiro/IPSEMG em 22/10/04 com história de tosse seca, dispnéia aos médios esforços, febre não-termometrada, sudorese noturna, hiporexia e emagrecimento aproximado de 8kg, com três meses de evolução. Queixava-se também de cefaléia contínua, mal-definida, iniciada na semana precedente. Tabagista, etilista. Relato de crises convulsivas nos últimos quatro anos; fazia uso de fenobarbital 100mg MID.
O paciente encontrava-se orientado, corado, hidratado, emagrecido, sem edemas ou linfadenomegalia periférica. Apresentava lesão de pele ulcerada em região malar esquerda, com crosta amarelada, eritema ao redor e drenagem de secreção purulenta em moderada quantidade. Hemiparesia esquerda leve. Eupnéico, com ausculta pulmonar revelando som vesicular levemente diminuído difusamente, com crepitações bibasais. Ausculta cardíaca e exame do abdome sem alterações. Exames realizados em sua localidade: BAAR no escarro (24/09/04): três amostras negativas; PPD (24/09/04): não-reator.
A telerradiografia de tórax em PA (23/09/04) evidenciou infiltrado retículo-nodular bilateral, predominando em terços médios (Fig. 1).
Exames laboratoriais de 22/10/04 revelaram: leucometria 18.640/mm3 (neutrófilos segmentados 77,5%, linfócitos 11,5%, monócitos 8,5%, eosinófilos 1,9%, basófilos 0,6%), hemoglobina 12,6g/dl, hematócrito 36,8%, hematimetria 4,38 milhões, contagem de plaquetas 443.000/mm3; TGO 26g/dl, TGP 14g/dL, GGT 93g/dl, creatinina 0,7g/dl, glicemia de jejum 81mg/dl; albumina 3,2g/dl; urinálise e gram de gota de urina não-centrifugada normais. A sorologia para HIV-1 e HIV-2 foi negativa.
A biópsia de lesão de pele na face (24/10/04) evidenciou processo inflamatório crônico, granulomatoso, contendo formações fúngicas esféricas, de membrana espessa, refringente, sugestiva de paracoccidioidomicose. Iniciado itraconazol 100mg de 12/12 horas.
Mantinha quadro de tosse seca, dispnéia, febre (38,0ºC a 39,0ºC) e cefaléia. A baciloscopia de escarro (três amostras) para pesquisa de BAAR foi negativa (26 a 28/10/04).
A broncoscopia flexível (26/10/04) com coleta de lavado broncoalveolar revelou pesquisa para fungos e BAAR negativos.
A TC de encéfalo com contraste (26/10/04) mostrou lesão expansiva em núcleos da base à direita (área central de aproximadamente 18mm), com captação anelar do contraste e edema perilesional importante, sem desvio de estruturas da linha média, além de lesão da cabeça do núcleo caudado e lesão anelar não captante de núcleos da base à esquerda (Fig. 2).
TC abdominal (05/11/04) evidenciou supra-renal esquerda globosa, com dimensões aumentadas (2,8 x 1,9cm), coeficiente de atenuação reduzido e captação levemente heterogênea, sugerindo acometimento pela paracoccidioidomicose (Fig. 3). A dosagem de cortisol basal foi normal (22,2mcg/dl).
A sorologia para o fungo (08/11/04) pelo método de imunodifusão radial dupla foi reagente 1:4 (valor de referência: negativo/não-reagente).
Em 10/11/04, a ressonância nuclear magnética do encéfalo constatou lesão parenquimatosa no nível do tálamo direito, com hipercaptação periférica do contraste, sugerindo tratar-se de abscesso. Observadas, também, após administração endovenosa de contraste diversas pequenas lesões hipercaptantes anelares situadas na região periventricular esquerda, no lobo temporal esquerdo e no lobo frontal direito, com áreas de discreto edema circunjacente, compatível com processo inflamatório intracerebral secundário à infecção fúngica (Fig. 4).
Procedeu-se, em 12/11/04, à biópsia estereotáxica da lesão em núcleo da base à direita. A baciloscopia (pesquisa de BAAR) foi negativa em 100 campos examinados e a análise citológica revelou numerosas formações fúngicas arredondadas, com cápsula birrefringente e esporulação em roda de leme, sugerindo paracoccidioidomicose (Fig. 5).
O paciente manteve quadro geral estável durante toda a internação, evoluindo com melhora com o uso de itraconazol 100mg de 12/12 horas por 38 dias. Houve resolução da tosse, febre e dispnéia, e melhora do apetite e da disposição geral. O paciente não apresentou episódios convulsivos ou déficits focais; a cefaléia foi autolimitada. Obteve alta hospitalar em 03/12/04, encaminhado para controle ambulatorial e orientado a seguir o tratamento antifúngico prescrito (itraconazol 100mg por dia) até completar 12 meses.
DISCUSSÃO
O paciente procurou assistência medica devido a sintomas inespecíficos, como febre, emagrecimento e tosse seca. Na paracoccidioidomicose pulmonar, a dispnéia é a queixa mais freqüente e a tosse é observada em quase 60% dos casos, com expectoração em cerca de metade dos pacientes.
Os achados radiológicos, em geral, concentram-se nas regiões perihilares e peribrônquicas, poupando os ápices, as bases e a periferia dos pulmões.11 A disseminação por via linfática, de maneira retrógrada, dos hilos pulmonares até a periferia do pulmão, pode explicar o padrão tipo "asa de borboleta" visto à telerradiografia de tórax do paciente em estudo.
A pele se reveste de especial importância na paracoccidioidomicose, devido à freqüência de seu acometimento e à facilidade de acesso para diagnóstico, tendo sido o primeiro foco isolado do P. brasiliensis no caso descrito. A inoculação traumática do fungo na pele da face do paciente, como porta de entrada, é pouco provável, diante do acometimento pulmonar associado.
O padrão característico de resposta inflamatória à presença do P. brasiliensis é o granuloma, formado por células gigantes e epitelióides, em torno das leveduras, podendo haver processo supurativo central, como se pode constatar na biópsia de pele deste caso.12
A freqüência de acometimento do sistema nervoso central (SNC) é discutida em vários estudos. Almeida et al.13 encontraram envolvimento em 13,9% dos pacientes com paracoccidioidomicose. A incidência variou de zero a 27% em diversas casuísticas.14-16
A lesão pseudotumoral do encéfalo pode ser única ou múltipla, com região central hipodensa e imagem em anel, podendo evoluir para abscesso.14,17,18 Lesões calcificadas com anel evidente e lesões multiloculadas são menos comuns, porém mais sugestivas de paracoccidioidomicose.10 No caso em discussão, o paciente apresentava lesões pseudotumorais múltiplas, já com evolução da lesão no tálamo para abscesso.
A doença costuma acometer com elevada freqüência as glândulas supra-renais. As lesões granulomatosas comprometem usualmente ambas as glândulas.19 Neste caso, o acometimento parece ter sido apenas unilateral e a função glandular ficou preservada. Em estudo de 15 pacientes, a TC de abdome revelou-se alterada em 40% dos casos, evidenciando irregularidade de contornos e alterações de volume e densidade das supra-renais.20
A sorologia pelo método de imunodifusão dupla apresenta boa sensibilidade, variando de 65% a 100%, e especificidade em torno de 100%.21-23
Del Negro et al. (1982)24 demonstraram associação entre tuberculose e paracoccidioidomicose em 5,4% a 10% dos casos, o que não foi observado neste caso aqui relatado.
CONCLUSÃO
Foi aqui apresentado um caso de paracoccidioidomicose envolvendo a pele, pulmão, supra-renal e sistema nervoso central e que ilustra o elevado potencial de acometimento sistêmico pelo P.brasiliensis, o diagnóstico e tratamento oportunos permitiram que se minimizasse o risco de seqüelas e incapacidade decorrentes da doença.
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