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CAPES/Qualis: B2
Doença da arranhadura do gato: relato de caso
Cat scratch disease: case report
Guenael Freire de Souza
Professor - Disciplina de Infectologia - Curso de Medicina da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana - FASEH. Vespasiano, MG - Brasil. Assessor científico do Hermes Pardini. Belo Horizonte, MG - Brasil
Endereço para correspondênciaAvenida do Contorno, 3.825, 4º andar, Bairro: Funcionários
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30110-021
Email: guenaelfreire@gmail.com
Instituição: Faculdade de Saúde e Ecologia Humana -FASEH Vespasiano, MG - Brasil
Resumo
O diagnóstico diferencial das linfadenomegalias supuradas deve se basear na história clínica e em exames complementares, principalmente na análise histopatológica. A Bartonella henselae, bastonete gram-negativo fastidioso que frequentemente causa bacteriemia em gatos, constitui agente que sempre deve ser associado à linfadenomegalia. Os gatos são reservatórios importantes desse microrganismo. A doença da arranhadura do gato normalmente cursa com poliadenopatias relacionadas ao local de inoculação (por arranhadura ou lambedura) e sintomatologia geral leve, sendo normalmente autolimitada. Raramente a doença complica com acometimento visceral, ocular e neurológico. Em alguns casos, há poliadenopatia persistente e supurada. Este relato apresenta as alterações descritas por mulher de 79 anos, com poliadenopatia cervical ulcerada, surgida após contato próximo com felino. As alterações clínicas e histopatológicas foram sugestivas de doença da arranhadura do gato, de evolução prolongada. Houve boa resposta a antimicrobianos. Este trabalho ilustra o amplo diagnóstico diferencial de linfadenomegalias persistentes, que deve incluir sempre a infecção pela Bartonella henselae entre as prováveis etiologias.
Palavras-chave: Bartonella henselae; Doença da Arranhadura de Gato; Doenças Linfáticas.
INTRODUÇÃO
A linfadenomegalia regional ou disseminada constitui desafio diagnóstico à prática clínica. Seu diagnóstico diferencial é amplo e pode ser dividido em causas infecciosas e não infecciosas. A anamnese cuidadosa aliada ao exame clínico sugere o diagnóstico, na maior parte das vezes. Em algumas situações, o diagnóstico etiológico é complexo, sendo necessários exames sorológicos, histopatológico ou ambos para esclarecimento do caso.
RELATO DE CASO
MLF, feminino, parda, procedente de Nova Lima-MG, foi encaminhada, em outubro de 2008, ao serviço de infectologia da Policlínica Municipal, com tumorações dolorosas na fúrcula e região cervical, iniciados há quatro meses. Evoluíram com aumento progressivo de tamanho, algumas ulceraram e supuraram, exibindo pontos de drenagem de secreção purulenta. Foram prescritos, durante o acompanhamento prévio, os seguintes antibióticos: amoxicilina (14 dias de uso) e cefalexina (30 dias de uso), sem obtenção de melhora clínica. Relatou, ainda, febre vespertina não termometrada, hiporexia, adinamia e emagrecimento de 5 kg desde o início da sintomatologia. Queixou também dificuldade em ingerir alimentos sólidos. Portadora de transtorno bipolar, em uso de quetiapina (25 mg/dia) e nortriptilina (20 mg/dia). Contato com gato errante nos primeiros quatro meses do ano e até o início dos sintomas. Negou tanto contato com outros animais quanto ocorrência de qualquer lesão cutânea traumática prévia. Moradora de área urbanizada com saneamento básico e distante de mata, não tendo se deslocado da cidade nos últimos dois anos. O exame físico revelou tumorações sugestivas de linfadenomegalias cervicais (submentais e submandibulares e em região da fúrcula esternal), móveis, com eritema em pele adjacente, pouco consistentes e levemente dolorosas à palpação. As lesões com drenagem de secreção purulenta apresentavam-se ulceradas em base elevada, com fundo levemente granuloso (Figura 1). Havia comprometimento da nutrição e do estado geral, embora mantivesse estabilidade hemodinâmica, sem outras alterações dignas de nota.
Os exames realizados durante avaliação na atenção básica mostraram anemia microcítica e hipocrômica, sorologia para Toxoplasma gondii negativa (IgG e IgM), VDRL não reagente, reações intradérmicas para leishmaniose (Montenegro) e tuberculose (PPD) negativas.
O tratamento estabelecido foi ciprofloxacino (500 mg BID). Foram solicitadas radiografia de tórax, que não revelou alterações, biópsia do linfonodo supurado e pesquisa de anticorpos antiBartonella henselae (IgM e IgG), que foi negativa. Coletou-se secreção purulenta para realização de gram e cultura para bactérias e fungos, sendo todos negativos.
O exame histopatológico da pele mostrou infiltrado inflamatório inespecífico com granulomas epitelioides e células gigantes multinucleadas, sem necrose. A pesquisa de agentes foi negativa. Foi então solicitada revisão de lâmina (Figura 2).
A paciente apresentou melhora clínica importante após 30 dias de tratamento com ciprofloxacino. Após esse tempo, abandonou o tratamento devido a náuseas. Houve recrudescimento da sintomatologia, sendo prescrito sulfametoxazol (SMT) e trimetoprim (TMP) (800/160 mg BID) para uso prolongado, devido à suspeita clínica de doença da arranhadura do gato (DAG).
Obteve-se regressão quase total das lesões após a introdução do SMT/TMP. Abandonou o tratamento após 45 dias de uso consecutivo, associando-se a nova recrudescência da sintomatologia. Foi então reintroduzido SMT/TMP associado à azitromicina (500 mg/dia por cinco dias) e proposto tratamento supressivo com sulfamídico, com posterior abandono do acompanhamento.
A revisão de lâmina mostrou linfadenite e perilinfadenite crônica granulomatosa (Figura 2).
Baseado nos achados histopatológicos e na história clínica, foi feito o diagnóstico presuntivo da doença da arranhadura do gato (DAG), conforme critérios propostos por Margileth1 em pacientes com quadro clínico compatível (necessária a presença de pelo menos três dos quatro seguintes critérios):
Contato com gatos ou pulgas (mesmo sem lesão de inoculação);
sorologia negativa para outras causas de linfadenopatia e/ou pus estéril aspirado de linfonodo e/ou PCR positivo para B. henselae e/ou lesões hepáticas/esplênicas vistas na TC;
sorologia positiva (ELISA ou RIFI > 1:64);
exame histopatológico mostrando inflamação granulomatosa consistente com DAG ou identificação dos microrganismos pela coloração de Warthin-Starry.
DISCUSSÃO
A DAG é causada pela Bartonella henselae e, menos frequentemente, pela Bartonella quintana. As bartonelas são bactérias que infectam animais, sendo o homem hospedeiro acidental na maioria dos casos, pela inoculação direta (pela arranhadura ou lambedura de gatos). A B. henselae apresenta distribuição ubíqua mais prevalente em locais de clima quente e úmido.2
A doença é mais descrita em crianças, mas há frequentes achados em adultos.3,4 Como não é doença de notificação compulsória, não é possível estimar a magnitude dessa enfermidade em nosso meio.
As manifestações clínicas típicas consistem no surgimento de pápula ou pústula três a 10 dias após o contato com o animal infectado, no sítio de inoculação (geralmente por arranhadura, mordedura ou lambedura), com duração de até três semanas. Essa lesão pode ser precedida por eritema e vesículas. Em 40 a 65% dos pacientes não é possível identificar o sítio de inoculação.5 A linfadenopatia regional no sítio de inoculação (principalmente na cabeça, região cervical e membros superiores) é a manifestação clínica mais importante e surge dentro de uma e sete semanas após a inoculação, sendo o sinal que faz o paciente procurar atenção médica na maioria dos casos. A sintomatologia geral como febre baixa, hiporexia e prostação pode ser observada e, entre exames inespecíficos, podem ser evidenciados aumento da velocidade de hemossedimentação, leucocitose com neutrofilia e, às vezes, eosinofilia.2,3 Já foram descritas osteomielite, púrpura trombocitopênia imune, meningite, parotidite e acometimento visceral (abscessos hepáticos e/ou esplênicos).6-9 O acometimento conjuntival associado à linfonodomegalia pré-auricular, quadro conhecido como síndrome de Parinaud, já foi detectado em nosso meio.10
O envolvimento linfonodal pode ser único ou múltiplo e raramente há supuração local. O aumento de linfonodos pode persistir por até quatro meses, mas, via de regra, resolve-se espontaneamente.3 A linfonodomegalia pode ser expressiva, sugerindo, às vezes, doença linfoproliferativa. Não há associação entre o volume dos linfonodos e o estado geral.11
O diagnóstico é feito com base nos dados clínicos e epidemiológicos, além de exames microbiológicos como gram e cultura de secreção, obtida por punção de linfonodo guiada por ultrassonografia, ou coleta de secreção exteriorizada em linfonodos supurados. Infelizmente, a Bartonella apresenta baixo aproveitamento em cultivo nos métodos de rotina. São necessários meios enriquecidos como ágar chocolate ou ágar sangue, de preferência usando-se sangue de coelho e com longo tempo de incubação.2,5
Os exames sorológicos visam a detectar no soro do paciente anticorpos antiBartonella, diferenciando ainda as espécies B. henselae e B. quintana. Por imunofluorescência indireta, anticorpos das classes IgM e IgG são investigados. A sensibilidade para o IgG varia de 14 a 100% e pode haver reação cruzada com outras bartonelas, gerando resultados falso-positivos.5 Para a IgM, a sensibilidade é inferior a 50%. A detecção utilizando ELISA apresenta sensibilidade e especificidade semelhantes às da imunofluorescência indireta.2,3
O diagnóstico diferencial é amplo e, muitas vezes, o caso só é definido após exclusão de causas mais prevalentes de linfonodomegalias. Entre as doenças infecciosas, tuberculose cutânea (escrofuloderma), leishmaniose tegumentar (forma esporotricoide) e esporotricose, em razão do quadro clínico, são as doenças mais importantes a serem excluídas. O exame histopatológico mostrou inflamação granulomatosa com microabsessos que, embora sugestiva de DAG, não permitiu excluir com segurança tuberculose e micoses profundas. A esporotricose pode ser facilmente diagnosticada pela cultura para fungos, podendo ainda ser identificadas, eventualmente, estruturas fúngicas no exame histopatológico. A leishmaniose tegumentar normalmente não cursa com supuração local e também não responde bem a antibióticos. As reações intradérmicas para leishmaniose e tuberculose foram negativas. Entre as causas não infecciosas, destaca-se o linfoma, que foi descartado pelo exame anatomopatológico. O escrofuloderma, principal diagnóstico diferencial nesse caso, só foi descartado pela melhora clínica importante após antibioticoterapia. O contato próximo com o gato errante, na mesma localização das lesões, associado à histopatologia sugestiva, além da exclusão de outras causas frequentes, permitiu o diagnóstico presuntivo de bartonelose.
Vários antimicrobianos já foram utilizados para o tratamento da DAG, mas ainda há dúvidas quanto à indicação de antibióticos, às drogas de primeira escolha e à duração do tratamento. Antibióticos betalactâmicos como penicilinas e cefalosporinas não apresentam ação contra a Bartonella henselae.12 O tratamento de escolha são medicamentos macrolídeos como azitromicina e eritromicina, podendo ainda ser utilizadas doxicilina, rifampicina, sulfametoxazol+trimeprim e quinolonas.13 Casos com tendência à cronificação demandam tratamento de supressão por tempo elevado.12,14 A opção por SMT/TMP neste caso decorreu da boa tolerância ao medicamento no longo prazo e pela boa disponibilidade para fornecimento pelo sistema de saúde pública.
Em razão das condições climáticas favoráveis, da ampla presença do reservatório animal e da tendência à resolução espontânea, é possível que a doença da arranhadura do gato seja frequente em nosso meio. A falta de exames complementares mais acurados, a dificuldade em cultivar o patógeno e a necessidade de estudo histopatológico dificultam o diagnóstico ágil e contribuem para o não reconhecimento dessa enfermidade.
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